Ela ronca. É a onça.

Luciana Almeida
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lu almeida · Aracaju, SE
23/10/2006 · 323 · 15
 

Não se avexe. Isso é felina, coisa de grande porte com valente tocada. E não tem nada de conversa de bafo ou de traição. Moça de bom grado que sabe aproveitar a folia dum congado ao triângulo do batalhão. É o instrumento que toca e entorta as cadeiras, acompanha bem caixa e tambor. E de roda em roda eis a peça musical, a roncaria da onça.

Do Lambe-sujo, às Caceteiras de Seu Rindú, aos Bacamarteiros de Carmópolis e ao Samba de Pareia. De batuque em batuque, Sergipe vai se cadenciando no vigor do toque. E na dança, essa menina entra no auxílio de instrumentos como a viola, os pandeiros, os triângulos, os agogôs e os puxadores. Às vezes secundária, mas nem por isso menor. “Quem marca a entrada do samba, logo depois da toada? Já pensou quem ia guiar o tambor, sem ela?”, questiona Seu José Francisco Mota de Assis, responsável pelo versar no grupo Samba de Aboio.

Toda Semana Santa, época de festa no povoado Aguada, em Carmópolis, esse homem entoa assim: “Ôoooo rainha, a princesa Isabel / Tambor é oco do pau, cortiço da uruçu/ Ôoooo rainha, a princesa Isabel / Chocalha meus dois ganzás , mais vai ô meu tambor”. Dos versos à apresentação. A onça é um cilindro oco, tendo por tímpano uma pele esticada por meio da qual, pela parte interna, prende-se uma haste de pau que, friccionando-se com a mão molhada, produz um som de ronco dum animal. Daí a associação ao nome do felídeo.

“Na comemoração religiosa, nossos tambores são os mais tradicionais do Estado”, conta Seu José Manuel, primeiro homem da onça. O irmão gêmeo de Seu José Francisco narra a razão do samba, passado há gerações entre sua família. “A festa de Santa Bárbara e o aboio passaram a ser comemorado todo sábado de aleluia e domingo da ressurreição. Quando foi roubada de Angola, na África, a menina chamada Tamashalim Ecuobanker foi vendida ao Brasil. Uma de suas filhas, Maria da Solidade (minha bisavó), quando criança encontrou uma pedra na margem de um tanque em Japaratuba. Sua mãe disse que era Iansã ou como chamamos de Santa Bárbara”, explica. Desde então é realizada homenagem à santa, considerada milagrosa, e à princesa Isabel pela abolição da escravatura em 13 de maio de 1888.

Da fuga ao cavo

“Tava capinando, a princesa me chamou/ Alevanta nêgo, cativeiro se acabô/ Samba, nêgo, branco não vem cá/ Se vier, pau há de levar”. Essa canção marca o segundo domingo de outubro na cidade de Laranjeiras. Homens melados de cabaú e xisto preto sabem que o som não deixa de roncar. E sambam de maneira que pesquisador gosta de abordar como “profana”.

Na luta pela liberdade, a percussão entra como força de batalhão. Quem explica melhor é uma das figuras do teatro popular, o rei dos Lambe-Sujos, mais conhecido como Seu José Rolinha. “A onça tem que ser feita de couro de animal e madeira de árvores do tipo mijadeira e pau pereira. Há quem diga que sua principal parte é confeccionar a calda, justamente por sua resistência e sonoridade”, justifica. Dessa forma é considerado um instrumento bifônico, ou seja, gera dois sons ao mesmo tempo, pois é percussionada com uma baqueta, emitindo o som de um bumbo, friccionada internamente, produzindo som grave.

Já a avaliação do percussionista Pedrinho Mendonça é outra. “A onça não deixa de ser um tambor. Só que adicionaram uma varinha que fica no meio do centro do aro da polegada do instrumento. Os grupos folclóricos, geralmente, usam as onças de 11, 12 ou 13 polegada”, esclarece. O seu instrumento, denominado como onça-cuíca ou cuíca-onça, é de 10 polegadas. Qual a diferença do seu para os dos grupos folclóricos? “As partes são as mesmas. É o corpo, a pele, a varetinha e um pano molhado pra fazer o som. O meu instrumento é uma cuíca também. Se eu apertar afinação fica carioca, se eu folgar fica região Nordeste. A madeira deixa o som mais grave, mais apurado mais bonito, mas no meu caso ela é feita de metal e com couro de cabra”, resume o fundador do grupo Membrana.

Quando questionado sobre a lenda de que a onça é uma avó da cuíca, o músico brinca: “Eu devia ter mais histórias como essas para contar”. E sobre laços de familiaridade, ele prefere mesmo é relatar como desenvolveu a oficina que resultou a banda desde 2000. Juntando cidadania com música, o filho de Tia Lu e Vivaldo Mendonça saiu da Rua Divina Pastora e foi dar aulas para comunidade da Caixa D´Água, no Centro de Criatividade. “Eu subia o morro para tocar, mas o morro tem outros problemas sociais. Procurei interagir com a música para me aproximar”, conta o aracajuano.

Hoje o músico soma no currículo passagem pela SEC Banda, Orquestra Sinfônica de Sergipe, pela banda de artistas sergipanos como Amorosa, Antônio Carlos du Aracaju, Chiko Queiroga, Sulanka e fala do seu mais novo projeto, o Burundanga. Com a intenção de construir um corpo percussivo, composto por uma seqüência de caixas, surdos, onças e outros ronroms, Pedro afirma que “a idéia do bloco é mostrar nossos ritmos das manifestações culturais e sair tocando. Traga seu instrumento e venha ser feliz”.

E como já está no significado do nome Burundanga, “sortimento de remédios caseiros”, escolha sua “medicação” e toque. As aulas-ensaio são na Orlinha do Bairro Industrial na Avenida General Calazans, número 354 (Casarão de Rato). Sempre às quartas-feiras, das 19h às 21h30 e aos sábados de 15h às 18h. E o convite é dele. “Sigo a idéia que se você quer tocar e acha que não pode tocar, agora vai”, provoca Pedro Jorge com o bom tom de vender suas histórias e criar suas futuras “feras”.

Assim segue ela. No controle de mestres e de tradições que se inventam, em meio a circularidade de referências, rearranjos, cheia dos significados, em melodias quase ocas, essa menina vai sendo domada. Sem vergonha na roda , fazendo pé gemer, bulinando de mão nova a calejada. Bicha braba. Ronm-ronm-ronm-ronm-ronm-ronm. Longa vida.

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Joca Oeiras, o anjo andarilho
 

Completamente bronco em termos musicais (só "sei" tocar campainha) a percussão me fascina e convoca em mim o mais primitivo do meu ser. Por isto eu tenho enorme admiração pelos músicos em geral e pelos percussionistas em particular.Parabéns pelo artigo, parabéns pelo título e parabéns pela foto!
beijos e abraços
do Joca Oeiras, o anjo andarilho

Joca Oeiras, o anjo andarilho · Oeiras, PI 22/10/2006 23:23
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Marcelo Uchoa
 

Olha, Parabéns pelo artigo!!!!!!!! Acompanho essas manifestações de perto e sei o quanto artigos assim são importante para a visibilidade dessas tradições.... Quanto ao trabalho de Pedrinho Mendonça......maravilhoso.... Sou fã de carteirinha.....Burundanga, muito bom.

Marcelo Uchoa · Aracaju, SE 23/10/2006 18:52
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Pedro Rocha
 

Muito bom lu almeida. Um ritmo que se confunde com o versar do Seu Francisco Mota de Assis. Um tanto confuso em alguns pontos, mas vale pela sonoridade e pelo ritmo, e também por não abrir mão das palavras que dizem as coisas que você quer dizer, sejam elas gírias de um presídio paulista ou cantos da tradição sergipana.

Pedro Rocha · Fortaleza, CE 23/10/2006 19:09
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Oswaldo Giovannini
 

Por essas e outras, Sergipe só pode ser terra de boa gente. Vou passar por aí no fim de novembro e início de dezembro. O que tem de festejo nessa época? Dá umas dicas...
Bela foto e abertura, belo texto!

Oswaldo Giovannini · Leopoldina, MG 23/10/2006 19:59
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Claudiocareca
 

Lindo! A percussão une os mundos...

Claudiocareca · Cuiabá, MT 24/10/2006 12:06
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lu almeida
 

A onça é um instrumento que rola em outros estados, como no Maranhão, Goiás. Só que em cada manifestação sua importância muda. Por exemplo, nos nossos cacumbis, seja de Mestre Deca ou do finado Mestre Batinga,ela entra mas apoteose sempre é da caixa. E pra quem não tem Sergipe e tiver mais interesse pode dar uma olhada no Projeto Música do Brasil (Hermano Vianna e fotos de Ernesto Baldan). Junto com livro rola uma caixa de cds boa que só o cabrunco.

lu almeida · Aracaju, SE 24/10/2006 12:41
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Alejandro Zambrana
 

Esse texto é o reflexo da comprometida integração da Autora com a Cultura Sergipana!Parabéns Luciana!

Alejandro Zambrana · Aracaju, SE 25/10/2006 02:39
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Alejandro Zambrana
 

E viva a Cultura Popular!

Alejandro Zambrana · Aracaju, SE 25/10/2006 02:40
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Pedro Gontijo
 

Eu tenho raízes em Sergipe mas conheço muito pouco de lá. Há coisas no Brasil que, se fossem reunidas num mesmo Estado em outro continente, certamente seriam consideradas de outra nação e povo. Não me identifico com esses brasis particulares, mas me admiro muito com eles.

Achei muito interessante como os músicos (cujo ofício posso dizer que conheço razoavelmente) descrevem numa linguagem quase universal um instrumento tão particular.

Parabéns pelo artigo! Um abraço!

Pedro Gontijo · Brasília, DF 25/10/2006 10:08
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Balbino
 

Maravilha essa matéria...

Balbino · Cuiabá, MT 26/10/2006 13:37
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galocantô
 

muito bacana a matéria! viva a cultura regional!

galocantô · Rio de Janeiro, RJ 26/10/2006 16:49
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georgesaraiva
 

soberbo, fez com que na hora em que terminei de ler lembrasse-me do Coronel e o Lobisomem... abraços

georgesaraiva · Guarapari, ES 26/10/2006 22:36
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NatashaCorbelino
 

dá uma vontade louca de viajar e ver tudo de perto! parabéns

NatashaCorbelino · Rio de Janeiro, RJ 20/12/2006 20:20
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Tranquera
 

Chegamos aqui através das tags! Ótima colaboração!

Tranquera · São Paulo, SP 18/2/2007 18:27
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Dayse Rocha - DonaDeusa
 

Delicioso, e pensar que no Lariô da Tartaruga, aqui de Pirambu este isntrumento é chamado de Porca; muda o bicho mas não muda o som (rs)

Dayse Rocha - DonaDeusa · Pirambu, SE 26/7/2007 03:37
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Pedro Jorge pensa em notas musicais zoom
Pedro Jorge pensa em notas musicais
José Francisco comanda o samba na toada zoom
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Ela deixa ele todo Pedrinho
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