GEOGRAFIA E IMIGRAÇÃO
Pouco se pode dizer sobre o estado catarinense. Ou melhor: é difÃcil falar algo a respeito do estado porque, como tal, ele praticamente inexiste. Explico-me: cheguei a esta conclusão depois de encontrar-me com o crÃtico literário catarinense Celestino Sachet e sua teoria de que Santa Catarina é um estado formado por ilhas culturais. Na verdade, Sachet determina o estado como sendo formado por diversas ilhas geográficas, étnicas e espaciais.
A começar pela geografia, Santa Catarina é um espaço realmente diversificado. Há a grande planÃcie litorânea, os vales da Serra do Mar e Serra Geral, grandes altitudes dos planaltos e os extensos campos do oeste catarinense. Sem dúvida, foram e ainda são os rios e as grandes montanhas que dificultam o contato entre as regiões do Estado, mas há motivos um pouco mais especÃficos.
Os primeiros portugueses chegaram a Santa Catarina ainda na casa dos 1500. Depois, no século XVII, surge a colônia portuguesa de São Francisco. Correntes migratórias oriundas da Europa começaram a chegar no estado no século XIX. É quanto aportam por aqui alemães, italianos, poloneses... Ou seja, depois de 200 anos tendo como habitantes descendentes de portugueses, Ãndios “civilizados†e escravos africanos, os luso-brasileiros tiveram de receber outra espécie de gente: pessoas com lÃnguas estranhas, religiões diferentes e costumes esquisitÃssimos.
É quando começa a divisão de Santa Catarina em regiões próprias e independentes umas das outras. Como de costume, os açorianos permaneceram no litoral. Os alemães, italianos e poloneses estabeleceram-se nos vales e no topo das serras. A região oeste do estado foi colonizada por gaúchos. Ou seja: ainda que fossem simpáticos uns aos outros, o relevo difÃcil de ser transposto acabou por encerrar o que poderia ter sido um contato riquÃssimo entre povos de diferentes culturas.
Tamanha diversidade só teria a acrescentar na formação cultural de um estado. PoderÃamos então dizer: Santa Catarina é um estado de diversas culturas. Mas não. O que temos de dizer, infelizmente é: Santa Catarina não é um, mas vários estados. Desde a criação das colônias européias, cada grupo étnico tratou de se fechar em si mesmo. Assim foi com os alemães, com os italianos e com os poloneses que, para sobreviverem economicamente, tiveram de abrir mão do idioma original e aprender uma nova lÃngua, o português, para conseguirem se comunicar. No entanto, o que se pôde ver nos quase duzentos anos de imigração européia é que a determinação dos primeiros imigrantes estrangeiros no estado deu certo por muito tempo: mantiveram-se os costumes do paÃs de origem e preservou-se a raça; para os alemães, por exemplo, era crime dividir a valiosa herança genética alemã com italianos ou, muito pior, com negros, Ãndios, mulatos, cafuzos etc.
Além do mais, um fator determinante na incomunicabilidade entre colônias de imigrantes é a sua origem. Grande parte dos estrangeiros que chegaram ao Brasil no século XIX (principalmente Rio Grande do Sul e Santa Catarina) fugia de uma Europa em frangalhos. Fugiam da miséria em busca de uma Nova Terra onde pudessem produzir, trabalhar e não passar mais fome. Este fator deve ser sempre levado em conta, uma vez que o exÃlio na América do Sul foi quase uma obrigação. Dessa forma, alemães, italianos e poloneses tiveram de abrir mão da pátria em que nasceram, mas nunca abriram mão da nacionalidade.
Os alemães, por exemplo, viveram o dualismo (muito bem descrito na análise literária de Valburga Huber) da saudade e da esperança. Ou seja: sentiam falta da terra-natal ao mesmo tempo em que esperavam prosperar no Brasil. Esse dualismo tornou confusa a adaptação dos imigrantes na Nova Terra. Como foram praticamente obrigados a deixar a Europa, viviam no conflito subjetivo da busca de uma nacionalidade: eram alemães e italianos na alma, mas socialmente pertenciam a uma nova nação, uma nação que não entendiam muito bem: agora, habitavam o Brasil.
AS COLÔNIAS E SUAS MANIFESTAÇÕES
Por muito tempo, os colonizadores e descendestes destes (depois denominados teuto-brasileiros, Ãtalo-brasileiros e daà por diante) tentaram manter em suas colônias tradições dos paÃses de origem.
No Vale do Itajaà ainda se ouve muita gente falando alemão, da mesma forma como o italiano ainda é a primeira lÃngua de muitos habitantes do estado. Associações foram criadas com o fim de preservar as tradições. Nos núcleos de origem alemã, os Clubes de Caça e Tiro (que não atiram mais em animais, somente em alvos) e nos núcleos itálicos, os Circolos Italianos são responsáveis, hoje, por preservarem e divulgarem danças folclóricas, gastronomia e costumes dos descendentes de europeus.
Mas as manifestações culturais vão além do simples resgate de tradições. O escritor blumenauense Godofredo de Oliveira Neto, uma das poucas amostras de literatura catarinense lida no além das fronteiras regionais, numa entrevista à extinta Revista de Divulgação Cultural da FURB, descreve Santa Catarina como sendo um estado dividido em três partes: o litoral, a região “entre o litoral e o planalto†e o grande oeste:
“O litoral é o espaço marcado por aquela coisa mais portuguesa e negra, o sotaque manezinho, que vai de São Francisco do Sul a Laguna. Essa é uma região com a sua cultura, tradição, indumentária, tipo fÃsico e pensamentos ligados ao mar, ao horizonte. A segunda região não tem nada de peixe, de rede, do horizonte largo, mas também não tem nada de cavalo, ovelha, churrasco. O Vale do Itajaà é da indústria e do pequeno produtor rural, com tudo o que isso significa, com uma culinária diferente, pensamento diferente, meio fechado. (...) No Planalto há o gaúcho, o cavalo, as estâncias, o churrasco. (...) E no grande oeste, além de tudo isso, há uma forte agroindústria, região de empresariado muito rico, mas muito pobre do ponto de vista populacionalâ€.
Ou seja: são regiões que não se comunicam naturalmente. O fazem claro, enquanto partes de um todo institucional, pois são municÃpios de um estado que pertence a um paÃs, isso é óbvio. No entanto, a relação dos próprios catarinenses com o seu maior sÃmbolo institucional, ou seja, a capital Florianópolis, é dificultada por um ou vários motivos. Primeiro, e mais evidente, é a distância da capital em relação a boa parte dos municÃpios do Planalto e do oeste catarinense. Depois, novamente a barreira geográfica: Florianópolis também é, literalmente, uma ilha.
O cientista social Márcio Cubiak vê nas elites burguesas do inÃcio do século XX a origem da polarização do estado catarinense em regiões étnico-culturais. Segundo Cubiak, as diferenças culturais herdadas do tempo na Europa foram trazidas junto. “Se analisarmos a União Européia hoje, veremos que as relações entre os paÃses ainda beiram a hostilidadeâ€. Cubiak ainda analisa a ação de movimentos como o Integralismo — movimento ultra-nacionalista da linha de Getúlio Vargas — tem a ver com o estabelecimento da burguesia catarinense: “Se não se aliassem aos nacionalistas contra os resquÃcios de cultura européia, não teriam o poder nuncaâ€. É bem verdade o que diz o cientista polÃtico, pois os principais movimentadores polÃticos de Santa Catarina têm algum tipo de relação com oligarquias antigas, fundadas sobre o sofrimento de toda uma população.
AS RELAÇÕES CULTURAIS ENTRE OS GUETOS CATARINENSES
Santa Catarina, vista sob o ponto de vista da capital Florianópolis, é o exemplo do que pode ser um estado descentralizado. Descentralização esta tão defendida pelo PMDB que anda por extinguir o que era a FCC – Fundação Catarinense de Cultura. Não será uma grande perda. Até então, quem tinha acesso à FCC era justamente o público da Grande Florianópolis. Não caberia aqui um lamento. No entanto, se em seus tempos de vida saudável a FCC tivesse efetuado o diálogo entre as partes, então tudo bem, lamentarÃamos.
Esse mesmo PMDB descentralizador está à frente das Secretarias Regionais, com sede nos municÃpios macro-regionais, como é o caso de Blumenau, no Vale do ItajaÃ, Joinville, no norte do estado e Chapecó, no meio-oeste. Com a extinção do órgão estadual de cultura, o que se procura mesmo é investir na regionalidade. Assim, cada gueto — ou, eufemismo, região étnica — poderá promover o que lhe for de interesse.
O Governo do Estado, em 2006, criou o portal RIC – Rede Integrada de Cultura, que merece uma matéria própria. O portal, colaborativo, está hospedado em Creative Commons e teria por objetivo justamente integrar o público artÃstico-polÃtico-cultura catarinense. Mas visitando o site, o que se vê é justamente o que já poderia se esperar: faltam colaboradores e a gestão portal vai de encontro à dificuldade enfrentada por qualquer governo numa região poli-cultural como Santa Catarina: é tudo realmente confuso. Tanto que agora o que parece é que o RIC sofreu um upgrade e tornou-se o Cultura em Rede, site com o mesmo propósito integrador.
Afora as doloridas questões governamentais, a integração cultural catarinense acontece mesmo pelas mãos do privado regionalizado. Seja pelos famosos festivais catarinenses, como o Festival de Dança de Joinville, o Festival Universitário de Teatro de Blumenau ou o Festival de Música de ItajaÃ, seja pela ação integradora em que investe o SESC-SC, com eventos itinerantes que transcendem os limites regionais e procuram justamente promover o diálogo entre cidades e culturas catarinenses. São de responsabilidade do SESC-SC os maiores e mais importantes eventos culturais catarinenses, como o EmCena Catarina, o Sonora Brasil, o A Escola Vai Ao Cinema.
Enfim: no âmbito catarinense, é difÃcil proclamar uma identidade: “Somos catarinensesâ€. Antes, somos descendentes de alemães, de italianos, de poloneses, de portugueses, de japonenes... Como pergunta Márcio Cubiak: “Qual é o nosso sotaque? Qual é o sotaque do povo catarinense?†Essa é a pergunta para a qual se deve encontrar uma resposta. Entendendo qual o sotaque do catarinense, se entenderá sua história, a história das suas origens e os rumos que pretende seguir no futuro.
Santa Catarina não é um, mas vários estados. Estados, estes, que reformulam em território brasileiro o que acontece em solo europeu, mas ao contrário: por aqui, o leste é que é desenvolvido e o oeste é agrário. E, por aqui, bem à moda européia, se é xenófobo municipal e regional. E é essa tentativa exacerbada de preservar o local que impede que nos desenvolvamos e criemos uma identidade cultural sólida.
Mas está nas mãos de quem vê essa mudez, começar a falar. E falar até ser ouvido. E ser ouvido até ser interpretado. E ser interpretado até ser compreendido. Se verá, então, que a máxima “a união faz a força†pode prevalecer em território barriga-verde. Se for a sério, claro.
Bibliografia:
>> A fala do crÃtico literário Celestino Sachet é encontrada no livro Saudade e Esperança, de Valburga Huber;
>> Valburga Huber, citada como autora, escreveu o livro Saudade e Esperança - O dualismo do imigrante alemão refletido em sua literatura. Obra de caráter importantÃssimo para, como dissemos, entender as origens e interpretar os futuros. Saiu pela EdiFurb em 1993 e hoje encontra-se em bibliotecas e nos sebos da cidade.
>> A fala do escritor Godofredo de Oliveira Neto é oriunda de uma entrevista à Revista de Divulgação Cultural da Furb. A revista foi extinta no papel e está em tempo de ir ao ar no formato eletrônico. A edição da entrevista é no.87 ano 27 - setembro a dezembro de 2005.
>> A fala de Márcio Cubiak é de uma entrevista que ele me deu e que foi filmada. Por problemas ténicos de edição, esta entrevista não está aqui na Ãntegra.
Belo panorama, Labes. Traga mais para o Overmundo os horizontes catarinenses.
Por coincidência, acabei de ver agora na TV o programa Os Modernos do Sul sobre o movimento literário catarinense do final da década de 40 e grande parte dos 50, em torno da revista Sul, Salim Miguel e amigos.
Conheci Godofredo aqui no Rio mas já há algum tempo não o vejo.
Abraço!
Parabéns. Muito interessante mesmo esse texto. Uma aula. Grande abraço!
Lobodomar · Guarapari, ES 8/9/2007 05:26Ah, nada como ter orgulho de ter nascido num estado com tradição cultural forte. Sou filho dessa terra e um dia hei de voltar, casar e ter filhos aÃ. Sou barriga-verde com imenso orgulho e nao desisto nunca!
wiene · Cuiabá, MT 8/9/2007 13:04
Lbes,
Ainda sobre a revista Sul, interessante seria levantar o diálogo estabelecido na época pela revista com escritores de Portugal e colônicas portuguesas em Ãfrica, principalmente Moçambique, conforme conta Salim Miguel em seu livro Cartas D'Africa e Alguma Poesia, editado em 2005 pela TopBooks.
Veja alguma coisa sobre o assunto aqui.
Caro Labes,
Teu texto me deixou uma pergunta: se estendermos a visão de Sachet de que SC é um "... estado como sendo formado por diversas ilhas geográficas, étnicas e espaciais..." e, por isso, nas tuas palavras um "...estado ..., como tal...praticamente..." inexistente, a constatação a que se chega valeria para o Brasil também?
Parabéns pela iniciativa!!!
Abraço,
Aldo
Nossos estados têm mais em comum que o fato de terem a capital numa ilha. O ES também parece não ter uma cara própria, mas tem, e várias. A imigração, o isolamento histórico e outros fatores contribuÃram pra isso. Bom texto!
Ilhandarilha · Vitória, ES 9/9/2007 16:35
Egeu,
muito obrigado pela visita. Sobre a revista, acho que foi, por assim dizer, o movimento mais percebido por Santa Catarina. Confesso que desconhecia esse contato intercontinental, mas vou atrás, com certeza (já te agradeço pelo link).
Logo aparece um artigo sobre isso por aqui!
E tu, hein, conheces muita gente bacana. No Rio, as pessoas - e isso é que realmente me parece - se deixam conhecer mais fácil do que aqui. Ou eu vou às bodegas erradas? (risos!)
Grande abraço.
Lobo, wiene,
muito obrigado pela visita. E pela leitura. E pela atenção.
Olá Aldo. Que bom te encontrar por aqui. Sobre isso, sim, pensei a respeito e vi que, sem dúvida, o Brasil também inexiste como tal. No entanto, em se tratando de dimensões, os 'guetos brasileiros', conseguem ainda representatividade. Como disse o Márcio Cubiak num trecho de entrevista que não entrou: "em Santa Catarina nós não temos um mito estadual, como acontece com o mito do gaúcho, o mito do baiano"...
É claro que essa divisão ocorre frequentemente. No texto, quis encaixar essa divisão enquanto contato institucional entre municÃpios. Mas se formos analisar, por exemplo, veremos que também por aqui não há o mito do blumenauense, porque depende o bairro de onde vens - terás as caracterÃsticas (inclusive idiomáticas) daquela região da cidade.
Obrigado pelo comentário instigante.
Grande abraço.
Adoro viajar para Santa Catrina , no tempo frio...
LINDA! LINDA! LINDA!
UM BEIJO MINEIRO
SÃLVIA/ Academia de Letras do Brasil em Minas Gerais, em BH.
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