Uma espécie de nova Revolução Industrial chega ao Brasil e atrai interesse internacional. Chamada ao gosto do freguês de modismo, tendência, hype, cultura, manifesto, tribo urbana, estilo entre outras classificações a verdade é que o steampunk conquista adeptos, ganha forças na Internet, em eventos públicos e até na literatura enos quadrinhos, como uma vertente da ficção cientÃfica. Pelo nome e pelo parentesco com a FC mesmo quem nunca ouviu falar – ou que não tenha ligado o termo à realidade prática – deve imaginar que exista semelhança estética ou filosófica com o cyberpunk, tão popular que praticamente é sinônimo do gênero como um todo para muita gente que consumiu livros, filmes, HQs e jogos de RPG nos últimos vinte anos. De fato, a semelhança é real, se o foco de uma é especular sobre a cibernética em um futuro próximo, a da outra é imaginar tecnologias possÃveis, geralmente movidas a vapor (steam, em inglês), com direito a molas, engrenagens e alavancas, no século retrasado, uma espécie de retrofuturismo. Mas vamos por partes.
Para começar, um bom ponto para conhecer este mundo é o site do Conselho Steampunk, endereço que tem o objetivo manifesto de divulgar, explicar, inspirar, homenagear e produzir cultura dentro deste gênero na forma que for: nas artes, nas vestimentas, em joias, na tecnologia. “Para tanto os idealizadores lançaram mão de conceitos sofisticados que garantissem a possibilidade de qualquer um, em qualquer lugar, independente do poder aquisitivo, idade ou qualquer outro entrave costumeiro, se visse impossibilitado de fruir a cultura Steampunk do seu jeito e sem a necessidade de aderir a qualquer organização burocrática ou centralizadoraâ€, garante o texto de apresentação do projeto criado pelo empresário Bruno Accioly. O conceito que tem apenas dois anos já se difundiu por três estados que também criaram suas representações regionais – São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul – denominadas no jargão do Conselho de Lojas, em uma citação explÃcita a certa Sociedade Secreta, algo que chamou a atenção de um visitante ilustre.
“Lojas. Como lojas maçônicas? Rapaz, isto é terrivelmente século XIX.†Quem fez o comentário foi um escritor fundamental para se entender tanto o punk cibernético quanto o a vapor: Bruce Sterling, autor do romance Piratas de dados e organizador da coletânea Mirrorshades, o homem que ao lado de Willian Gibson – de Neuromancer – criou os paradigmas do cyberpunk em meados dos anos 80. O comentário saiu no dia 20 de julho, no blog que o autor americano mantém no site da Wired, a revista mais respeitada em termos de cultura tecnológica. Foi, na verdade, o segundo post em que ele falou sobre a iniciativa brasileira. Dois dias antes ele havia descoberto a página do Conselho Steampunk e brincara com a ideia, batizando o conceito de “bossa steampunkâ€. Na outra oportunidade, Sterling divulgou uma mensagem enviada por Bruno Accioly, dando conta das atividades do grupo no Brasil, que não se restringem a discussões virtuais, pois a Loja São Paulo, por exemplo, já organizou dois encontros em que os participantes, vestidos como nossos antepassados do século retrasado, passearam em trens a vapor naquele estado. Esta postagem, o blogueiro encerrou com a frase: “O mundo é um lugar vasto e maravilhoso, damas e cavalheiros.â€
Não é um apoio qualquer que as damas e os cavalheiros do Conselho Steampunk atraÃram. Como já disse, Bruce Sterling é um dos criadores da parte literária do movimento cyberpunk, mas ele e seu parceiro Willian Gibson também têm muito a ver com o steampunk como subgênero da FC. Ambos, a quatro mãos, escreveram em 1990 a obra mais representativa do inÃcio desta nova vertente. É bem verdade que já existiam livros anteriores apontando para algumas das caracterÃsticas que seriam aprofundadas mais tarde, escritos por autores como Tim Powers e K. W. Jeter – que, aliás, foi quem cunhou o termo, três anos antes, em uma troca de cartas – mas é praticamente um consenso por parte da crÃtica que The Difference Engine foi o marco inicial do estilo steamer. No romance, a hipótese de partida é que o cientista e matemático inglês Charles Babbage (1791-1871) teria construÃdo uma máquina (que chegou mesmo a projetar): o primeiro computador do mundo, baseado apenas em peças mecânicas. A invenção dá um impulso muito maior ao Império Britânico, que vivia o auge do perÃodo Vitoriano, ou seja, o tempo em que a Rainha Vitória esteve no poder, de 1837 a 1901.
Muitas das convenções do gênero estavam ali, reunidas. O perÃodo histórico definido, a tecnologia capaz de mudar tudo o que conhecemos, e até mesmo a utilização de figuras reais e apropriações de criações literárias estão presentes naquele livro. Este último item é uma tentação e tanto a todos os que se aventuram a seguir os passos de Sterling e Gibson, pois as obras escritas naqueles tempos, como os romances e os personagens mais famosos dos pais da Ficção CientÃfica, Jules Verne, H. G. Wells, por exemplo, estão em domÃnio público, disponÃveis para quem desejar reinterpretá-los. O uso mais radical desta caracterÃstica steampunk foi feito não na literatura, mas nos quadrinhos, com a série de álbuns de A Liga Extraordinária (iniciada em 1999), do inglês Alan Moore, uma combinação de praticamente tudo o que o século XIX tem a oferecer em termos de ficção fantástica ou aventureira. Boa parte do fascÃnio que o gênero evoca atualmente tem como origem tais HQs escritas por Moore e ilustradas por Kevin O’Neill, que podem ter dado origem a um filme desastroso, mas continuam sendo fonte inesgotável de ideias a cada novo lançamento no papel.
Porém, quando eu escrevi que o assunto tomou a Internet não me referia apenas ao diálogo entre o Conselho Steampunk e o blog de Bruce Sterling. O tema também ganhou outros espaços na rede recentemente. Um bom exemplo é o post que a escritora e historiadora Ana Cristina Rodrigues publicou em um de seus blogs no dia 16 de julho. “Ficção a vapor†é o que chamei de verdadeira aula sobre steampunk. Com muito mais propriedade que eu neste espaço e com uma riqueza de detalhes bem maior, ela analisou todo o contexto sobre o qual acabo de escrever e teceu algumas considerações sobre o cenário nacional nesta área. Cito trechos:
“Agora, é de se admirar que um paÃs que nos deu o Barão de Mauá, Augusto Zaluar, D. Pedro II, Santos Dummont… não tenha produzido obras a vapor suficientemente interessantes. Poxa, nosso imperador provavelmente foi o governante mais steampunk de sua época. Seu interesse por gadgets, ciências e novidades era/é notório.
Até esse ano, aconteceram algumas tateadas. Gerson Lodi-Ribeiro, Carlos Orsi Martinho e Octavio Aragão tangenciaram o gênero – os dois primeiros em contos, o último em seu romance, A mão que cria. Mas talvez a primeira obra consciente e declaradamente steampunk do Brasil sejam os quadrinhos de Expresso! de Alexandre Lancaster. O piloto da série foi publicado em um projeto online de curta duração, mas a saga continua, já que novas HQ’s estão previstas e um conto sobre o protagonista vai entrar na primeira coletânea nacional do gênero.â€
Outro escritor e crÃtico de Ficção CientÃfica também tratou desta pauta foi Antonio Luiz M. C. Costa. Ele publicou um longo artigo na coluna que mantém no site da revista em que trabalha a CartaCapital. Datada do dia 11 de agosto, “Steampunk, saudade ou rebeldia?†é outra contribuição para o debate, que igualmente detalhou o histórico do gênero e ponderou sobre a situação em nosso paÃs. Citando novamente:
“É sempre bom fugir um pouco do famoso slogan de Margaret Thatcher e Francis Fukuyama, o TINA, There Is No Alternative – “Não há alternativa (ao status quo neoliberal dos anos 80 e 90)†e considerar como as coisas poderiam ser diferentes. O curioso é que, neste caso, trata-se geralmente de uma alternativa, em muitos aspectos, bem semelhante à realidade atual, com o Império Britânico e os financistas da City no papel dos EUA e de Wall Street.
Pode reforçar a ideia de que as roupas e maneiras podem mudar, mas a essência da sociedade foi e sempre será a mesma. Como também pode funcionar como alegoria ou caricatura de problemas atuais e mostrar o que têm de histórico e contingente, como dependem de desenvolvimentos especÃficos e podem vir a ser superados. É um campo no qual concepções opostas podem se expressar em um ambiente fantástico e de sabor nostálgico, mas ainda assim com uma relação bem clara com a realidade social, polÃtica e ambiental do século XXI.
O pleno desenvolvimento dessas possibilidades no Brasil depende, porém, de que o Steampunk não seja apenas consumido como moda ou como decoração de animês e aventuras hollywoodianas. Para ser criativo, precisa ser produzido e discutido como um subgênero literário e associado ao ponto de vista brasileiro ou à história (real e imaginada) de nosso paÃs. Por enquanto, conta-se apenas com a recém-lançada antologia de contos Steampunk, da Tarja (R$ 39, 184 páginas), que inclui uma colaboração do autor desta coluna. Uma segunda antologia, a ser intitulada Vaporpunk, está sendo organizada pelo escritor Gerson Lodi-Ribeiro e é esperada para breve. Teremos então uma boa ideia de como se imagina, em terras tropicais, essa história paralela.â€
Os dois fizeram referência ao mesmo livro ao final de seus textos, uma coletânea que também foi destaque na seção de cultura da já citada revista CartaCapital, desta semana, chamada Steampunk – Histórias de um passado extraordinário. O livro foi lançado em São Paulo no último final de semana de julho e também participo dele com um dos nove textos. Curiosamente, apesar de não ter sido um pedido expresso da editora, a maioria dos contos longos publicados no livro tratam, sim, de aspectos históricos do Brasil e usam personagens locais entre os principais destaques de suas tramas, alguns deles citados por Ana Cristina. Neste blog, em um mesmo post podemos ler duas resenhas da obra que também ganhou destaque em um respeitado blog português dedicado ao autor Jules Verne, entre outros endereços da rede que repercutiram o lançamento. Alguns desses endereços foram reunidos por mim em um blog que criei para me ajudar a planejar a noveleta escrita para a coletânea.
E de fato ainda há mais por vir. Uma coletânea binacional, com escritores brasileiros e portugueses, está sendo organizada neste momento, com uma visão bem menos purista do gênero mas que pretende ser ainda mais focada na história destes dois paÃses. Um romance também pode ser lançado em breve, chamado de Baronato de Shoah, de autoria de José Roberto Vieira. Fora do terreno da literatura, os quadrinhos também devem apresentar novidades com influência steampunk. O trabalho de Alexandre Lancaster com Expresso!, sua série inspirada nos mangás, pode ser acompanhado na página que o autor mantém no site DeviantART. Também inspirados nos quadrinhos japoneses, Douglas MCT e Ulisses Perez lançarão pela editora NewPop uma série com o nome Hansel&Gretel. Por último, mas não menos importante, no site dedicado a webcomics da DC, o Zuda Comics, é um brasileiro, Igor Noronha, quem desenha a HQ Sidewise que mostra as aventuras de um adolescente deslocado no tempo para um perÃodo vitoriano alternativo.
Como se vê, a agitação em torno da cultura steampunk no Brasil é grande, a ponto de chamar a atenção em outros paÃses e dar ao leitor várias opções para participar ou ao menos experimentar esta nova versão da Revolução Industrial. O carvão queima e as engrenagens se movimentam. Boa viagem.
Gostei muito do texto, Romeu. Reitero meus pedidos para que volte com suas resenhas de livros da FCB, dessa vez enfocando as antologias lançadas nos últimos cinco anos. Seria muito legal!
Octavio · Rio de Janeiro, RJ 17/8/2009 14:04
Textaço muito legal! Estimula ainda mais a curiosidade e, ao que parece, demonstra que nossa atual produção de FC (cada vez mais frutÃfera) é resultado de um verdadeiro caldeirão de influências. Legal mesmo!
Parabéns, Romeu!
Opa, obrigado aos três pela leitura, votos, comentários e incentivos.
Seria mesmo muito interessante, Octavio. Mas eu estou desmonetarizado no momento e não teria como adquirir o material.
que incrÃvel: não tinha a menor idéia que há esta movimentação-a-vapor toda acontecendo hoje no Brasil - muito obrigado pela apresentação, Romeu!
PS1: sobre a desmonetarização do comentário anterior: o pessoal deveria te dar esse material... o bem que você faz para a FC nacional é enorme! quanta coisa que já aprendi com você por aqui!
PS2: outro dia eu revi o Steamboy do meu herói Katsuhiro Otomo - que beleza!
Salve, Hermano
O mundo - e o Brasil - é tão vasto, como diz o Sterling, que não dá para notar todas as movimentações em tantas áreas diferentes.
Sobre o PS1, pois é, mas neste caso pode haver livros fora de catálogo, de editoras pequenas, nem sempre é fácil localizar, enviar... mas vamos ver.
Quanto ao PS2, Steamboy é divertido e visualmente estimulante mesmo em comparação a Akira. No cinema, nem sempre o Steampunk se dá bem, mas essa animação é fantástica!
E aqui vai mais uma matéria e entrevista sobre o livro
http://rraurl.com/cena/6707/RRGEEK_45_Steampunk
Que barato, Romeu. Já estava de olho na movimentação sobre o tema via seu Twitter, mas facilitou bastante ver todas as referências condensadas neste texto. Valeu!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 18/8/2009 12:16Hehehe, tenho algumas amigas que me seguem pelo twitter que não aguentam mais me ouvir teclando sobre esse tal de steampunk, Helena. Pra elas, carvão só no churrasco de fim de semana :-)
Romeu Martins · São José, SC 18/8/2009 12:49
Opa, Romeu,
Realmente muito bom o post, cheio de boas referências sobre a movimentação no Brasil. Há pouco tempo me chamou a atenção o Steampunk por esse brevÃssimo post do Fábio Fernandes. Tinha ficado bem curioso. Agora, não sei se você me aplacou a curiosidade ou se gerou ainda mais - acho que é a segunda opção!
Espero ter aguçado bem mais sua curiosidade, Viktor :-)
Curta os links, há bastante coisa boa por ali.
Nossa, eu nem tava sabendo que minha resenha saiu no Insônia! =P
Post bacana, adorei... vamos ver se o pessoal aprecia mais esse gênero interessante!
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