Uma rápida olhada nas HQs pornôs, como o trabalho do brasileiro Alcides Caminha, vulgo Carlos Zéfiro
"Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor". Assim começa a mais conhecida música composta por Alcides Aguiar Caminha, feita em 1956 numa parceria com Nélson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Mas, mesmo quem não gosta de samba e que talvez nunca tenha ouvido nem "A Flor e o Espinho", muito menos as demais composições de Caminha, dificilmente desconhece a existência de outras famosas obras deste cidadão carioca. Caminha era chegado numa sacanagem. Calcula-se que ao todo ele produziu 600 revistinhas em quadrinhos eróticas protegido pelo pseudônimo de Carlos Zéfiro. A verdadeira identidade do desenhista e escritor dos famosos Catecismos, as HQs eróticas que fizeram jorrar o esperma dos adolescentes brasileiros dos anos 60 e 70, foi um enigma por três décadas, até ser desvendado em uma reportagem da versão nacional da Playboy, em novembro de 1991.
O assunto foi considerado tão importante que a apuração e o texto foram feitos por ninguém menos que o próprio diretor editorial da época, o jornalista Juca Kfouri. E quem pode negar que aquele foi o maior destaque em uma edição cuja estrela foi a irmã, digamos, menos exuberante da Luma de Oliveira, a Ãsis, apresentada em um ensaio deveras mandrake. Tão picareta quanto, foram as fotos de uma russa "Natasha", pelada pelas ruas de Moscou pós-Perestroika, ou ainda as páginas com as irmãs Barbi, gêmeas megapeitudas da Califórnia. Justiça seja feita apenas à playmate de então, miss novembro Wendy Kaye de curto porém vistoso reinado. A revelação sobre Zéfiro foi provavelmente uma das mais importantes reportagens da história da Playboy brasileira, revista que, ao contrário das raquÃticas edições dos últimos anos, já trouxe muitos textos jornalÃsticos e de ficção que merecem estar em qualquer boa antologia do melhor da nossa imprensa. Na verdade, não fosse o risco de ser muito mal compreendido, daria para se dizer que "O Fim de 30 Anos de Mistério" foi o maior furo que já saiu na Playboy ...
Durante toda a década de 60, Alcides Caminha se dedicou a produzir suas revistas artesanais, relatando façanhas sexuais de tipos anônimos com suas primas e cunhadas, vizinhas e desconhecidas, patroas e empregadas. Apesar de conhecimentos duvidosos de anatomia, da gramática ruim, das tramas e das posições repetitivas, dos finais quase sempre moralistas, apesar disso tudo, Carlos Zéfiro foi um mito da história deste paÃs. "Ãdolo de algumas gerações, seu trabalho ensejou sonhos e orgasmos de quem tinha entre 10 e 20 anos na década de 60", conforme testemunhou Kfouri. Em um ritmo que chegou a produção de duas revistas por semana, tÃtulos como Boas Entradas, Frutos Proibidos, A Viúva, O Fugitivo, Carona e etc. vendiam milhares de exemplares, distribuÃdos em esquema clandestino pelas bancas do Rio de Janeiro. De lá, os Catecismos partiam para todo o resto do paÃs, tudo debaixo dos quepes dos milicos que mandavam por aqui e que adorariam pôr as mãos em quem estava deturpando a mente da juventude pátria. Kfouri conta a história de um editor de Zéfiro, Hélio Brandão, preso pela PolÃcia Federal em 1970, depois que foi feita uma apreensão em BrasÃlia de 50 mil Catecismos.
Era esse o clima de repressão que fazia o pacato Alcides Caminha ter medo das repercussões caso se descobrisse sua identidade secreta. O medo continuou mesmo depois do fim da ditadura e do auge da procura e da confecção das revistas. O perigo então não era mais levar uma surra ou ser preso, mas sim o de perder o dinheiro da aposentadoria. Funcionário público por 40 anos, atuando no Ministério do Trabalho, Caminha acreditava que podiam usar seu envolvimento com a sacanagem como desculpa para cortar sua pensão de 80 mil cruzeiros. O valor era uma merreca, que pode ser comparado aos 3,5 mil cruzeiros cobrados pela referida edição da Playboy , ou ainda por quanto custava na época o renomado vinho Château Margaux, tema de um outro artigo da mesma revista. "Em meados de setembro último, direto com o importador Mison Vins, em São Paulo, uma garrafa custava a bagatela de 140 mil cruzeiros". Naquele novembro de 1991, aos 70 anos, com 1,81 metro de altura, menos de 60 quilos, o lado esquerdo do corpo paralisado por culpa de um trombose, pai de cinco filhos, avô de 11 netos, morador da Baixada Fluminense, o eterno Zéfiro não tinha condições de bebericar uma taça do tal Chatô Margô e ainda tinha medo de perder o pouco que recebia. Por isso mesmo, antes mesmo de escrever a matéria que acabaria com os 30 anos de mistério, Juca Kfouri assumiu com seu Ãdolo um compromisso: "Na absurda hipótese de vir a ser punido, verá que um fã seu não foge à luta nem teme arcar com aposentadoria tão infame". Infelizmente, o debilitado Alcides Aguiar Caminha morreu apenas 10 meses depois da publicação de seu passado glorioso de quadrinista e compositor.
Printed in Tijuana - Apesar da ótima e histórica matéria, Juca Kfouri perdeu a oportunidade de ter entrado em mais detalhes sobre as influências da obra de Carlos Zéfiro. O jornalista até esclareceu a origem do misterioso pseudônimo de Caminha, que o havia copiado do nome de um autor mexicano, responsável por uma série de fotonovelas (românticas, nada de erótico) publicadas semanalmente no Brasil. Mas a verdade é que os próprios catecismos cariocas devem muito a outro produto supostamente também feito no México: as BÃblias Tijuaninas ou, como são muito mais conhecidas, as Tijuana Bibles. Provavelmente essas HQs eróticas não eram mexicanas coisa nenhuma, o apelido pegou devido ao aviso que elas traziam na capa, "printed in Tijuana" fazendo referência a uma cidade industrial do noroeste do México, na fronteira com os EUA. O mais certo é que esse aviso era uma forma de tentar driblar as leis puritanas em vigor nos Estados Unidos, mas a suposta origem alienÃgena só fazia aumentar o mistério sobre aquele legÃtimo produto marca diabo. Seja como for, mexicanas ou americanas, as Tijuana Bibles apareceram em solo ianque no final dos anos 20, atingiram o auge durante o tempo da Grande Depressão dos anos 30 e 40, e sumiram na década de 50 (ou seja, a decadência veio 10 anos antes do surgimento de Zéfiro no Brasil).
Para não sermos injustos, o lapso da primeira reportagem foi desfeito logo, apenas 88 meses depois, em uma segunda matéria, esta de autoria de PatrÃcia Vilalba, publicada na Playboy de março de 1999, muito popular por ter trazido na capa, pela primeira vez, uma certa Tiazinha. Naquela edição, as semelhanças e diferenças entre BÃblias e Catecismos eram analisadas. O contraste mais evidente estava nos protagonistas das histórias. Se o brasileiro, como dissemos, dava preferência à s pessoas comuns, as BÃblias gringas quase sempre retratavam versões pornográficas de personagens conhecidos pelas massas, sejam reais (como atores, polÃticos, esportistas, músicos), sejam fictÃcios (basicamente figurinhas de HQs bem menos erotizadas). Desse jeito, em plena II Guerra, os americanos podiam se divertir com desventuras gays de seus inimigos, como Mussolini e Hitler, e se o falecido Guido Crepax apenas se inspirou levemente em Ingrid Bergman para compor sua musa Valentina, os autores das BÃblias faziam a própria barbarizar em cenas de sexo. Na parte fictÃcia, a ousadia dos "tijuaninos" era dupla, pois além de enganar as leis anti-obscenidade, eles ainda ferravam com os direitos autorais ao mostrarem, por exemplo, os bichinhos da Disney em orgias, muitas vezes incestuosas. Alan Moore, provavelmente o maior quadrinista de todos os tempos, homenageou essa tradição da pirataria hardcore de personagens famosos em sua obra máxima: na maxissérie Watchmen, uma ex-heroÃna, para mostrar que já teve seus dias de glória, exibe com orgulho as HQs pornôs que chegou a protagonizar em priscas eras.
Outra diferença fundamental entre as duas escolas de sacanagem em quadrinhos é que o caso do brasileiro foi praticamente o gênero de um homem só, enquanto que o modelo americano funcionou em uma escala semi-industrial, com vários artistas trabalhando clandestinamente nos roteiros e nos desenhos das histórias. Apontado por muitos como outro exemplo do melhor quadrinista que já existiu, o falecido Will Eisner chegou a declarar que no inÃcio da carreira, nos anos 30, foi convidado para participar do desbunde. Desafortunadamente, ele não aceitou. Uma pena, pois certamente a experiência iria abrir novas possibilidades para o desenvolvimento de seus trabalhos futuros, como o Spirit e sua galeria de vilãs sexies. Aquela segunda matéria da Playboy revelou ainda algumas tentativas de se descobrir o alter ego desses autores malditos. Um certo Mr. Prolific teria sido parcialmente identificado em um livro de 1998. Ele seria um veterano da I Guerra conhecido como Dr. Rankin. No mesmo livro, Art Spiegelman, autor da obrigatória série de quadrinhos Maus, escreveu no prefácio que conhecia o nome completo de outro desenhista tijuanino, Wesley Morse, criador de uma série de BÃblias que usavam como cenário a grande feira mundial de tecnologia que Nova Iorque sediou em 1939.
Quanto à s semelhanças das BÃblias e dos Catecismos elas são muitas e óbvias, mas vale destacar uma aqui: a coincidência do ponto de desgaste dos dois fenômenos. Nos EUA, a decadência das Tijuana Bibles coincidiu com o inÃcio do processo de Revolução Sexual, lá pelo meio dos anos 50, com o marco que representou a criação da tão citada aqui revista Playboy , algo que é muito bem descrito por Gay Talese em seu livro A Mulher do Próximo.
Já os Catecismos de Zéfiro começaram a rarear nos anos que antecederam a abertura polÃtica no Brasil, entre o fim dos anos 70 e inÃcio da década seguinte, quando os militares voltaram aos quartéis, permitiram o surgimento de um presidente civil e abriram espaço para eleições diretas. Aparentemente, as HQs eróticas de arte amadora e roteiros ingênuos não convivem pacificamente com um mercado que põe à disposição dos consumidores revistas com fotos generosas e filmes explÃcitos, entre tantos outros produtos. Não é à toa que, praticamente extintos no Brasil e nos EUA, quadrinhos eróticos sobrevivem na Europa e na Ãsia em versões muito diferentes do material punk de que estamos falando aqui. Em paÃses europeus, Itália sobretudo, esse gênero se sofisticou e ganhou status de arte, com autores como o citado Crepax e, principalmente, Milo Manara, inspirando respeito mundial. Já entre os asiáticos, os japoneses são de longe os fãs mais entusiasmados e, como acontece com quase todo o resto das coisas naquele paÃs, a atividade tem organização de grande indústria e atende por nome próprio, o Hentai. Trabalhos artesanais, à moda de Zéfiro e Mr. Prolific, com toda a mÃstica que os cercam, parece que só surgem em ambientes repressivos, com governos autoritários. Fica a dúvida: como serão as BÃblias e os Catecismos pornôs de Cuba ou dos paÃses muçulmanos, por exemplo? Se alguém souber, favor entrar em contato.
Matéria originalmente publicada no site www.marcadiabo.com
Tem um erro ai quando você usa os códigos de html =)
Bruno Nogueira · Recife, PE 4/6/2006 22:09Pois é, pelo visto meu browser continua aprontando. Vou retirar os comandos. Valeu o toque.
Romeu Martins · São José, SC 4/6/2006 22:34
Corrige o link final, alguém aÃ.
Belo resgate. Ainda mais com as reedições do Zéfiro pela banca A Cena Muda, daqui do Rio.
excelentes a análise, a contextualização e o texto! o mercado de HQ erótica é fervilhante até hoje, dos hentais à albuns de luxo, como a Coleção Eros da Conrad. muito classe a republicação do texto por aqui, o assunto e o enfoq
André Maleronka · São Paulo, SP 9/6/2006 01:18(continuando) enfoque dão muito pano. abs!
André Maleronka · São Paulo, SP 9/6/2006 01:18parabéns, texto muito bem escrito e embasado.
Erika Morais · São Paulo, SP 9/6/2006 17:09Agradecido pelos generosos comentários e pelos fartos votos. Abraço a todos
Romeu Martins · São José, SC 10/6/2006 00:25
Muito bacana sua matéria, Romeu. E atual, já que Alan Moore acaba de ter seu "Lost Girls" lançado no Brasil... Escrevi dois textos sobre o pornográfico livro: Um está na Folha de Pernambuco, e outro no meu blog.
Grande abraço,
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