Licença para pensar o impensável
Em 1992, quando a edição nacional da Isaac Asimov Magazine publicou em suas concorridas páginas um texto chamado "Aprendizado", estava sendo dada a oportunidade para a estréia de um jovem de 21 anos no ramo de escritor profissional de ficção cientÃfica, fantasia & horror. Desde então, em um cálculo aproximado, este autor publicou cerca de meia centena de histórias e conquistou a reputação, até internacional, de ser um dos melhores naquilo que faz. Diretamente de sua cidade natal, Jundiaà a 50 km da capital paulista, onde exerce a profissão de jornalista especializado em divulgação cientÃfica, ele relembra aqui os primeiros passos na literatura de gênero; comenta suas influências - incluindo aà o papel exercido por H.P. Lovecraft nos seus textos iniciais -; fala sobre as motivações atuais; e revela qual tipo de trabalho o faz se sentir, a exemplo de certo espião inglês, portador de uma licença especial. Com vocês, Orsi, Carlos Orsi.
Nestes últimos 15 anos, você se tornou um dos autores de FC mais prolÃficuos do Brasil. Entre contos e novelas publicados em livros impressos e virtuais, revistas ou fanzines, dentro e fora do paÃs, qual é o tamanho estimado de sua produção ficcional? Quantos prêmios você já recebeu ao longo da carreira? Há alguma chance de um dia vermos tudo isso reunido em um site, por exemplo?
Bom, por partes: o tamanho da obra? Não faço a menor idéia. E, várias trocas de HD depois, nem sei se ainda tenho cópias de tudo. Além disso, há os contos que eu chamo de "mutantes", que vão se transformando a cada publicação - não sei se deveria contar cada encarnação de uma mesma história como um conto independente ou juntar tudo. Fora que meus primeiros contos eram datilografados, não digitados, logo esses só existem, mesmo, nas páginas dos fanzines. Mas, supondo que de 1992 a 2003, mais ou menos, eu tenha escrito uns dez contos por ano, e achado 50% disso digno de publicação, então seriam umas 50 histórias cuja paternidade eu reconheço ou deveria reconhecer... Prêmios: tapìraì (do fanzine Megalon), Nova e um segundo lugar no Argos. Além do Prêmio Turno da Noite, de Portugal. Juntar tudo? Não sei. Há muitas histórias que, simplesmente, não me interessam mais. E nunca tive um site pessoal. Talvez tenha um dia - mas não creio que vá usá-lo como uma espécie de omnibus, não.
Você pode fazer um retrospecto de sua formação como autor? Que tipo de exercÃcios literários você fazia nos primeiros anos de atividade? Participou de oficinas ou foi mais em base autodidata mesmo? Como foi sua preparação antes de publicar o primeiro texto e como é seu cotidiano agora?
Publiquei meus primeiros textos ficcionais, mais puxados para a paródia e o humor escrachado, num fanzine, Anarquia, que saiu em três números aqui em JundiaÃ, por volta de 1984-85. Era um fanzine meio polÃtico, animado pelo fim da ditadura, etc. Naquele tempo eu usava camiseta de Che Guevara. O zine gerou um convite para colaborar com o suplemento dominical do Jornal de JundiaÃ, o que fiz, creio, de 1985 a 1990, mais ou menos. Em 87 fiz uma oficina literária com João Silvério Trevisan, no gabinete de Leitura Rui Barbosa, um clube-biblioteca aqui da cidade.
Não me lembro, realmente, de um dia ter tido alguma rotina especÃfica para a preparação do texto. Acho que a coisa sempre foi constrangida pelos limites tecnológicos - no tempo da máquina de escrever, minha oportunidade de revisão era a fita corretora e/ou rasgar tudo e começar de novo. Hoje, com o computador dá pra "pentear" mais o texto. Hoje em dia eu escrevo, deixo o texto "de molho" alguns dias, mexo um pouco, peço pra minha mulher, a Renata, ler, presto atenção nos comentários dela, deixo o texto "de molho" mais um pouco, enquanto decido se acato (ou não) as sugestões dela, repasso mais uma vez e então dou o trabalho como pronto. Se - como geralmente acontece - passam-se meses ou anos antes de surgir uma oportunidade de publicação, reviso uma última vez imediatamente antes de submetê-lo.
Tempos de fúria, seu livro lançado há dois anos, aparenta ser um marco em termos de estilo. Seu trabalho anterior sempre foi bastante associado ao do americano H. P. Lovecraft, mas neste livro, a presença dele parece mais diluÃda. Houve alguma forma de ruptura com o velho mestre ou é apenas um movimento natural de busca de novos horizontes?
Olha, eu tendo a dizer que a influência de Lovecraft na minha obra foi meio que superestimada. Fiz alguns contos realmente calcados nos Mitos de Cthulhu, mas acho que a última história que consideraria lovecraftiana "puro sangue" foi "Deus dos abutres", ainda no século passado. O fato é que, quando comecei a escrever eu tinha um problema grave: meus esboços tinham clima, tinham boas ironias, eram engraçados, tinham um bom ritmo, eram inteligentes... Mas iam do nada ao lugar nenhum. Resumindo, eu tinha estilo mas não tinha competência narrativa, no sentido de, ok, os personagens entram na história na situação A e quero que saiam dela na situação B. Como ir de A para B? Eu não sabia. Não fazia a menor idéia.
Nesse aspecto, HPL foi muito importante porque ele tinha uma disciplina narrativa muito rÃgida - tão rÃgida que, em alguns contos, dava pra ver o final chegando como um trem vindo do fim do túnel. Além disso, tinha intensidade emocional, que era outra coisa que me faltava. Então, creio que o que houve foi que eu precisava aprender, e HPL - não só ele, toda aquela geração da [revista americana especializada em contos estilo pulp fiction] Weird Tales, com Howard e Ashton-Smith também - foi uma escola. Como nas artes plásticas, aprende-se imitando e, depois, desconstruindo os mestres.
O que mudou, de lá para cá, foram meus interesses temáticos. Estou migrando para a hard SF, e acho que vou ficar lá por algum tempo. Nesse sentido, ando lendo muita não-ficção (meu livro do ônibus atualmente é o Investigations, de Stuart Kauffman) e muito conto de FC hard contemporâneo. Há algumas ótimas antologias recentes, como Solaris book of new SF e uma antologia de space-operas Forbidden planets, e o Mammoth book of extreme SF. Para "limpar as papilas", como o copo de água que os enófilos tomam entre taças de vinho, encaixo um mainstream ou um policial.
Vários dos cenários e dos personagens presentes em Tempos de fúria poderiam render novas histórias, como é o caso das duas histórias em torno do planeta Vênus. Qual a sua opinião em retornar a antigos trabalhos? Você já fez isso em relação ao conto que publicou na coletânea original da Intempol, não é mesmo?
Retomar histórias para mim é meio complicado porque, geralmente, meus contos nascem de um ponto de enredo - digamos, quero escrever uma história sobre um ataque de zumbis. AÃ, todo o resto nasce como estrutura de suporte, como andaimes para sustentar esse ponto. Uma vez que eu tenha desenvolvido o ponto, os andaimes simplesmente deixam de ser interessantes, para mim. Não que eu não tenha entusiasmos - por exemplo, cheguei a imaginar "Planeta dos mortos" como primeiro de uma série que culminaria com "Galáxia dos mortos", ou algo assim - mas o princÃpio motor da coisa toda, que era a publicação em uma revista, desapareceu antes que eu conseguisse pôr a idéia em prática, e logo outros temas chamaram minha atenção.
A Intempol, nesse aspecto, é uma coisa diferente. Em parte, pelo desafio de expandir um universo com a ajuda, e muitas vezes sob a orientação, de outras pessoas. Segundo, porque escrever para a Intempol me dá um certo senso de irresponsabilidade - eu me sinto, paradoxalmente, mais livre, talvez porque a carga da autoria fica meio que diluÃda: é como se escrever para a Intempol fosse uma espécie de "00" literário, "licença para pensar o impensável". Curiosamente, esse mesmo efeito faz com que meus trabalhos na série sejam alguns dos meus melhores trabalhos.
Por falar naquele conto situado no universo criado por Octávio Aragão: "A mortÃfera maldição da múmia" foi adaptado para uma versão em quadrinhos on line. Como foi a experiência de ter um trabalho traduzido para outra mÃdia? Pode haver outras novidades nessa área, seja com material já publicado, seja com roteiros inéditos? E, por fim, qual sua opinião sobre quadrinhos de um modo geral?
Trabalhar com a equipe que fez a adaptação do "MMM" foi muito legal. Eu criava uma espécie de pré-roteiro, com uma sugestão de diagramação e decupagem das cenas, além de adaptar o diálogo. Os quadrinhistas seguiam, adaptavam ou ignoravam minhas instruções, dependendo do que fosse melhor para a série (e estou certo de que eles sempre escolhiam o melhor). Fiz isso, um capÃtulo por semana, durante um semestre, creio. Pessoalmente, acho a versão em quadrinhos melhor que o conto. Tanto que "Melissa, a meretriz do mal" [um romance, dando continuidade a primeira história, que saiu em formato digital] segue, em detalhes, a HQ, não o conto, por exemplo.
Quanto a novidades, ei, se quiserem me adaptar, adaptem-me! Se for para um álbum de luxo franco-belga ou para uma minissérie Vertigo eu gostaria de ser pago, mas se não, só me dêem crédito e peçam educadamente.
Quadrinhos: adoro quadrinhos. Antes de querer ser escritor, quis ser quadrinhista - desisti porque não tenho paciência de aprender a desenhar. Ando lendo pouco, atualmente - acompanho a série do Conan da Dark Horse e fico de olho na obra do Warren Ellis, e quase nada além.
Você disse que a ficção cientÃfica estilo hard é, atualmente, seu principal interesse. Seus últimos trabalhos, como a maioria dos contos do livro e o texto que publicou recentemente no fanzine Scarium fazem parte do subgênero. Como jornalista especializado em divulgação cientÃfica, portanto acostumado a lidar com minúcias técnicas da área, é mais fácil passar pelo processo de pesquisa a que esse estilo obriga seus autores?
Eu tenho um profundo interesse, um grande respeito, pelo programa cientÃfico como postura filosófica - nenhuma idéia está acima de crÃtica, o grau e confiança numa afirmação depende da totalidade da evidência, a evidência articula-se logicamente - e traduzir isso para a literatura é um grande barato. É O grande barato, ao menos para mim, atualmente. Creio que minha atuação como divulgador ajuda, sem dúvida: as maiores fontes de idéias para boa FC estão nas páginas da Science e da Nature, que são revistas especializadas na publicação de trabalhos cientÃficos e circulam semanalmente.
Por falar naquela edição da Scarium: nela foi publicado um artigo que gerou alguma polêmica entre fãs e crÃticos de FC por fazer a defesa de uma produção associada ao estilo pulp, como o da citada revista Weird Tales. Algumas pessoas associaram tal proposta a um perigo de se relaxar na qualidade literária, de ser algo ultrapassado. Qual sua opinião sobre essa controvérsia?
Pessoalmente, considero controvérsias literárias um campo meio estéril. Digo, cada um escreve o que acha melhor, e pronto. Por trás da idéia de controvérsia está a de programa - a de que existe um caminho a seguir, e a controvérsia se dá entre programas antagônicos - e eu simplesmente não acredito em programas literários com mais de um aderente. Cada escritor tem o seu, ou cada escritor tem vários ao longo da carreira, mas tentar vender um programa é meio inútil.
Reformulando: pode ser útil na medida em que os debatedores usam o debate para lançar um olhar crÃtico sobre seus próprios programas. Um debate vigoroso é sempre um bom estÃmulo à autocrÃtica. Mas o que geralmente acontece é um duelo entre homens de palha, com um lado atacando não o outro, mas uma caricatura do outro.
A finada Isaac Asimov Magazine foi muito importante para toda uma safra de escritores nacionais, por apresentar a eles parte do que era produzido no exterior e, obviamente, por representar um local de qualidade onde se poderia publicar. Não deve ser coincidência o fato de que dois dos mais respeitados escritores de FC do paÃs tenham estreado naquelas páginas: Gérson Lodi-Ribeiro e você mesmo. É algo assim que está faltando hoje em dia para ajudar a popularizar o gênero entre novos leitores e novos autores?
Bom, obrigado pela parte que me toca! No meu caso especÃfico, a IAM me ajudou a amadurecer minha visão do gênero - eu achava que FC era Lucky Starr e Jornada nas estrelas, e de repente estava lendo Kim Stanley Robinson. Isso faz falta hoje, assim como faz falta um mercado comprador de FC.
Você tem acompanhado a produção brasileira de ficção cientÃfica e de terror? Entre novatos e veteranos há alguém que tem chamado sua atenção nos últimos anos?
Acompanhar, não acompanho. Sou um escritor, não um crÃtico, e o que leio, basicamente, é o que me interessa ou o que acho que poderá ser útil na composição da minha obra. Autores que me cahamaram muito a atenção nos últimos anos foram Osmarco Valadão, de quem eu realmente gostaria de ler mais coisas, e uma "novata", Cristina Lasaitis, cujo conto de estréia na antologia Visões de São Paulo foi um dos melhores, se não o melhor, do livro.
Quais são seus próximos projetos em termos de ficção?
Continuar me aprofundando no lado “;;hard”;; da FC e continuar procurando onde publicar. Eu queria inverter o equilÃbrio da minha produção de textos e fontes de renda - com a a ficção pesando cada vez nos dois quesitos - e sigo buscando oportunidades para conseguir isso. Quem sabe
Este texto faz parte de um projeto chamado Ponto de Convergência, que pretende traçar um panorama da ficção cientÃfica nacional através de resenhas de livros significativos lançados ao longo da última década e de entrevistas com seus autores. O livro Tempos de fúria foi resenhado no Overblog:
http://www.overmundo.com.br/overblog/estranhos-em-terras-estranhas
muito bom este projeto Ponto de Convergência - contribuição valiosa para o Overmundo - parabéns e muito obrigado!
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 9/9/2007 17:41
Eu quem agradeço a oportunidade que o Overmundo nos dá para divulgar aquilo de que gostamos porém não encontra o espaço necessário e merecido, Hermano.
Abraço,
Fico feliz de ter participado desse projeto, e de ver tanta gente bacana aparecendo para o chamado "mainstream" graças a você, Romeu. É a ficção cientÃfica brasileira finalmente se juntando ao nosso caldo de cultura, à geléia geral.
Fábio Fernandes · São Paulo, SP 11/9/2007 08:19Realmente, esse projeto é muito bom, espero que continue por um bom tempo! :-)
Rafael Monteiro · Niterói, RJ 11/9/2007 14:14
Salta dois agradecimentos. Um para o Fábio Fernandes, um dos melhores escritores e tradutores da Ficção CientÃfica nacional, que me deu a honra de inaugurar este despretensioso projeto sendo o primeiro entrevistado. Como se diz na minha terra, quem tem padrinho não morre pagão (sou agnóstico, mas acho que vale a licença poética).
Outro para o Rafael Lupo, grande fanfiqueiro do www.hyperfan.com.br que deve lançar, brevemente se depender de minha torcida, uma coletânea de contos de literatura fantástica com outras duas dezenas de autores do primeiro time.
Abraço a todos e valeram os votos, a leitura e o incentivo,
Romeu, também espero que saia brevemente :-)
Um abraço!
ótima entrevista.
bom ver a FC se movimentando no overmundo.
espero colaborar mais nesse movimento.
abraço e parabéns.
Faço votos também, Lupo:)
Valeu, Toinho. Seu blog, Sub-literatura já é uma contribuição e tanto, não é mesmo? Recomendo a todos.
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