O mundo da palavra não dá conta do mundo do corpo.
Três homens, uma mulher.
Melancias repousam nos cantos do ambiente.
Colchões pendurados compõem o cenário, na parede ao fundo.
Convite ao mergulho abissal quando se apagam as luzes e começa a corrida circular.
Hipo-teses para o corpo agarra o mundo com uma mordida.
Corpos se engalfinham, lutam, mas a lascívia também tem espaço.
O conflito entre agressão e tesão, que é tensão sexual, se manifesta numa catarse coletiva. Tudo o que as contingências sociais em geral impedem é feito. Nada é perfeito, só a morte é uma obra acabada. O que se vê no espetáculo é vida em profusão multicromática.
Asma, taquicardia, espanto. Tesão!
Reações possíveis de um espectador.
Melancias.
Sementes de abóbora.
As remissões simbólicas possíveis são infinitas.
A música cria o clima cardíaco-sensorial.
Os corpos não descrevem movimentos premeditados. Fazem, isso sim, um improviso muito sentido. Se vê, se sente, se percebe uma sacralidade profana no ar.
Os fótons invadem os olhos.
Os beijos de corpo começam a fazer sentido.
Uma mulher grávida de uma melancia exógena, quase extraterrestre. Sementes plantadas na mucosa bucal de um homem entregue ao transe são cuspidas com ímpeto.
Contorções, jogo análogo a uma capoeira vanguardista.
Dança espontânea e transcendente.
Mandíbulas etéreas que apreendem suspiros, respirações ofegantes.
Tudo é. Tudo é. Explosão.
Misto de desconforto e curiosidade despertada.
Uma faca que corta o que é vermelho como um útero e carrega potencialidade vital. Corpos masculinos que se entregam a insinuações que prenunciam sexo.
Melancias que se espatifam no chão preto de madeira, com estrondo. As coisas acontecem perto demais das pessoas, que são audiência participante. Arremessos de corpos, uns contra os outros, arremessos de frutas, arremessos de alma. Nenhuma palavra. Só respirações mais exaltadas em certos momentos. Caixas torácicas frenéticas em atividade de expansão e contração alternadas.
Coração palpitante, sangue correndo ensandecido e quente. Sístole e diástole. Sístole e diástole.
Trabalho de Sísifo. Quando algum equilíbrio se estabelece, é logo rompido. Os corpos experimentam até onde vai o ponto suportável. Ultrapassam as possibilidades imaginadas e constatam que o limite sempre fica além. O tempo todo acontece um retorno à tentativa de paz. A música contribui para a decomposição visual que vai tomando conta do ambiente. Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar, a estrofe se repete muitas vezes, falha, o disco está propositalmente riscado. Enquanto isso, Manoela Rangel faz uma dança bizarra, com movimentos de braços caricaturais, em pé sobre uma melancia instável. Ao mesmo tempo os três homens a cercam, e ludicamente ajudam ou atrapalham o equilíbrio. Ao final estão todos rendidos, prostrados, aos pés da dançarina mulher.
Não se pode ter uma conclusão racional nítida, porque assistir ao espetáculo é um convite à entrada em uma atmosfera onírica, mas de tudo fica a imagem do ovo primordial quebrado para o nascimento de uma ave de vôo amplo.
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Ficha Técnica:
Direção e coreografia: Volmir Cordeiro
Elenco: Cleístenes Grött, Manoela Rangel, Marcos Klann, Volmir Cordeiro.
Produção: Andreza Martins
Música – Led Groove
Figurino e arte gráfica: Lígia Baleeiro
Cenografia: Taís Gil
Iluminação: Renata Rogowski e Volmir Cordeiro
Fotografias: Loli Menezes
Assessoria de comunicação: Phelipe Janning
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Apoio:
CIC-oficinas de arte
Udesc-Ceart
Centro Comunitário do Pantanal
Espaço Sol da Terra.
Funarte – Ministério da Cultura
Petrobras
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Espaço-tempo: A apresentação à qual assisti aconteceu no teatro Ademir Rosa, no CIC, e começou às 21h da quinta-feira 10 de abril.
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Interessante, muito boa a sinopse, a crítica. E como se chegasse ao fundo do fim e de volta ao começo(Gonzaguinha)
Um fim que não se acaba...Perfeito grupo. Será que vem a Sao Paulo?
A letra de Assis Valente é perfeita.Parabens ao Grupo e a voce por dar esta pérola ao Overmundo e a nós.
Cintia Thome · São Paulo, SP 13/4/2008 21:53
Texto leve, solto, visceral. Gostei! Mas ainda estou curiosa com a história da interação com as melancias.
Acho que depois que vc deixou de ser uma folhinha soltou o verbo!
Na verdade paguei um bom ghost-writer
:-)
Legal se fosse em sp ia ver pra ver o que dá. Que sensação que dá.
um abraço, andre.
Hipo teses para o corpo. Hipo teses para o corpo do texto. Ou o texto do corpo na respiração perfeita da sua sensibilidade, Felipe. Amo essas leituras que me dão muito mais do que informação. Adorei dançar com o seu texto. É uma experiência deliciosa quando um texto como o seu puxa a gente assim por todos os fios, muito bom mesmo.
Abração.
Obrer, quase que me vi na platéia, deu vontade e sensação.
Bia Marques · Campo Grande, MS 14/4/2008 12:17
Profundo...
Muito bom...
Para que ter uma "conclusão racional nítida" num espetáculo como este, não é? Este texto parece ter saído quase como um fluxo de consciência após o espetáculo. Pelo visto, só poderia ter sido assim!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 14/4/2008 19:12Maravilhoso! Fazes o jogo com as palavras magistralmemte. Parabéns, Felipe menino!!!!
Lena Girard · Belém, PA 14/4/2008 19:40
Escrevi boa parte do texto logo depois de assistir Hipo teses para o corpo (ou como se agarra o mundo com uma mordida).
Fiz isso a caneta, no papel. Bebendo na mesa do Café Matisse, um bar-café que fica dentro do centro integrado de cultura (CIC). Vou ter isso como referência, ao escever, daqui por diante: sensações frescas, vívidas. Quando o tempo passa, a memória é muito fria.
E o mundo não se acabou.
Felipe,
Faço certa idéia de como é isso, por minha própria experiência, por sentir na própria pele o quê é experimentar os limites do corpo nesse sentido lúdico.
Coisas do meu Ensino Médio... A atividade não era teatralizada, nem estética, nem nada parecido. Era só brincadeira de Educação Física.
Daí que um colega era o “boneco” e tinha que fazer tudo aquilo que o outro quisesse. Depois trocava.
Era legal por um lado, mas era chato por outro. Nem tudo você pode querer que os outros façam só porque você resolveu assim. Tinha que ter percepção, entre outras coisas, para não sacanear com os outros, para não extrapolar os limites dos outros. Até porque depois a gente não sabia o que viria a acontecer com a gente. Não podia ficar dando idéias e motivando coisas que viriam a se voltar futuramente contra a gente mesmo. Rsrs...
Parece que revivi algo através das suas palavras. Você passa sensações e pensamentos do jeito exato que me ocorreram.
É legal extrapolar, mas há limite para tudo. Essa noção de limite, percebi como dada fundamentamentalmente pelo outro. E, isso dá uma baita aflição também.
Abraço
Já não lembro de onde vem isso, alías se alguém souber com precisão, que se pronuncie, ou faça uma procissão, mas é o seguinte: a minha liberdade não acaba onde começa a liberdade do outro, mas sim se amplia com a liberdade do outro. Acho interessante essa idéia. Quanto a limite, a coisa é por aí também. Tinha momentos, no hipo teses, em que um ficava mesmo à mercê do outro, entregue, quase boneco de borracha inanimado. Já em outras situações a agressividade e o ir de encontro eram a tônica do movimento todo. Tudo muito doido.
Abraços (ou, como diz um amigo, "há braços")
QUE MARAVILHOSO!TRRNAGREDIR É TUDO! IMAGENS, TESES, ÍCONES PERFEITOS!
POEBEIJOS.
tum-tum, arf, arf, vram, plaft. tá tudo aí, transposto nas tuas palavras.
se o mundo da palavra crua não dá conta do mundo do corpo, o da poesia tem esse alcance, né? o espetáculo é sensorial, impactante e o teu texto faz um vôo de beijo a partir dele.
foi assim que vi; foi assim que li.
bjos
muito bom!! viva a trangressão!
francesco napoli · Belo Horizonte, MG 15/4/2008 17:07Obrigado a todos pelos comentários, abraços gerais.
Felipe Obrer · Florianópolis, SC 16/4/2008 19:54achei legal a dica e tal, mas eu tenho um problema: não consigo gostar de teatro. juro que me esforço. mas aos profissionais o teatro, nenhum desrespeito, pelo contrário.
Tiago Jucá · Acrelândia, AC 17/4/2008 13:21
Oi, Tiago. O texto não é propriamente uma dica, e sim um apanhado de sensações difusas que o espetáculo me causou.
De qualquer maneira, valeu pelo comentário.
Abraço,
Felipe
Pelo visto (e dito), só memso vendo, né?
Rolará no Rio um dia? Fico no aguardo.
Abs
vixi, não sei pra onde foi minha mensagem. espero que chegue aí.
Madalena Leles · Campo Grande, MS 17/4/2008 23:07
Quem tiver curiosidade pode ouvir, agora, no banco de cultura, três faixas da trilha sonora do espetáculo.
Abraços!
Demorei mas cheguei Felipe!
Um abraço!
Sempre viceral.
Obrer de boa Obra no sentido amplo.
É rico navegas por letras não sitiadas em formas já instituídas, procuro aqui fazer como tu - com mente aquecida pelo presente...
ouço o uso inteligente das tecnologias - por Led Groove
só me pergunto se os corpos replantarão melancias ao chão pra alimentar alguma boca do real - a arte do real é crua, é viva - tão quão...
ditas as artes com "A" maiúsculo
Que melancias e animais não sucumbam subornadas pela cegueira de umbigos artísticos...
Salve a nossa imperfeição – alimento da escola do real criado e recriado - por co-criadores – por nós...
a música parou e meu celular tocou/
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