TÃTULO ORIGINAL
Estigma e cosmopolitismo local: considerações sobre uma estética legitimadora do tecnobrega em Belém do Pará
AUTOR/CREDENCIAIS
Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (UFRGS/CNPq)
pmurilo@interconect.com.br
PUBLICAÇÃO
Anais do III Encontro da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET/2006)
RESUMO
Incorpora-se à recente cena musical de Belém do Pará (Brasil/norte) um gênero produzido/tocado/dançado predominantemente em espaços da “periferia†urbana por grupos que compartilham um estilo de vida refletido na maneira de se vestirem, em códigos verbais/corporais, nos gostos musicais e noutras formas de sociabilidades. Trata-se do tecnobrega, caracterizado por agregar pulso veloz, recursos da technomusic e manipulação de ritmos/timbres utilizando softwares baixados da internet. Consiste, a princÃpio, na “modernização†do brega-calypso, este por sua vez produzido através de fontes acústicas e eletrônicas, e identificado por “produtores†e “compositores†locais (categorias nativas para identificar diferentes papéis na criação musical) como resultado da mistura entre músicas caribenhas e guitarra elétrica. O tecnobrega – como o brega, que se estabeleceu na década de 1960 em cidades como Goiânia, Recife e Belém – transparece uma condição de distinção social, em que ser “brega†significa possuir “mau gosto†estético. Em contrapartida, diferentes atores envolvidos no circuito produtivo do tecnobrega preocupam-se em legitimá-lo, diante daqueles que vêem nele “feiúra†e “cafoniceâ€, e também deles próprios, que amargam esta condição. Na esfera da produção musical, a noção de “estigma†ganha status de ação de resistência, através de escolhas estéticas que amalgamam numa mesma música sonoridades legitimadas localmente e um espÃrito cosmopolita favorecedor da abertura de canais para experiências culturais globais. Sob a perspectiva da legitimação e observando a relação cosmopolitismo/regionalismo/estigma, busco compreender a teoria nativa que emoldura as apropriações estilÃsticas no tecnobrega a partir de parâmetros/recursos musicais como timbres, ritmos, mixagem e sampling.
Palavras-chaves: tecnobrega.música.Belém.estética.estigma
ARTIGO
Situado no campo da produção musical contemporânea, este texto aborda mais um caso entre diversas experiências culturais que pronunciam ao mesmo tempo formas globais de difusão tecnológica e individualidades originadas localmente. O diferencial, todavia, diz respeito ao objeto deste estudo pertencer à categoria de música “degradadaâ€, praticamente não contemplada na literatura sobre música brasileira (Araújo, 1999) e também ausente do circuito da produção fonográfica oficial (Vianna, 2003).
O tecnobrega, gênero de música popular que “estourou†em Belém (Capital do Pará, no norte do Brasil) no verão de 2002, constitui um exemplo cabal para reflexões sobre questões efervescentes na Etnomusicologia, como a “piratariaâ€, a profusão de discursos/juÃzos de valor sobre música e as “novas relações no criar, executar e escutar†(Lucas, 1994: 17) instauradas em conseqüência da propagação da informação musical via diversificadas mÃdias e tecnologias. Embora não aprofundadas aqui, estas questões, que constituem temas nevrálgicos na pesquisa que desenvolvo com o tecnobrega, vêm dar suporte ao enfoque deste texto.
Produzido pela manipulação de recursos eletrônicos em estúdios caseiros e também em espaços de sociabilidades denominados “festas de aparelhagemâ€, o tecnobrega¬ caracteriza-se tecnicamente pela bricolagem de melodias e ritmos com percussão eletrônica, lançando mão basicamente de computadores e de softwares “piratas†baixados da internet. No que diz respeito à constituição do gênero em si, esta música decorre da modernização do chamado “brega-calypsoâ€, que por sua vez enraÃza-se no estabelecimento do brega em Belém, a partir da década de 1960, e da proximidade desta cidade com músicas do Caribe, dentre as quais a soca e o calypso (Dudley, 1996).
As “festas de aparelhagem†atuam como mÃdia principal de divulgação de uma música que integra um conjunto de atividades não-oficiais onde coexistem produções em estúdios caseiros, compra/venda de CDs “piratas†e veiculação/consumo musical através de aparelhagens sonoras transportadas por caminhões de um canto a outro da “periferia†de Belém do Pará. Consistem em espécies de boates itinerantes ao ar-livre freqüentadas principalmente por residentes em bairros ditos periféricos. O equipamento, controlado por DJs, é formado por enormes caixas de som, amplificadores, telões, canhões de luzes, computadores, teclados, aparelhos para mixagem, seqüenciação e sampling (Chion, 1997; Contador, 2001: 55-56).
As “metamÃdias†(Vianna, 2003) surgiram para o tecnobrega como possibilidade alternativa de se fazer circular uma música estigmatizada (Goffman, 1978), por ser “bregaâ€, por representar o “mau gosto†estético das empregadas domésticas – mencionando um exemplo citado por Araújo (1999) –, sob o ponto de vista de um discurso midiático oficial incorporado pela classe média urbana. Ironicamente, no entanto, foi a comercialização do brega que, na década de 1960, alavancou a indústria fonográfica nacional. ImbuÃdo desse discurso midiático, resolvi encontrar as empregadas domésticas – ou qualquer outro grupo representativo do “povoâ€, em contraposição à “elite†– de Belém, reunidas por ocasião de uma “festa de aparelhagemâ€. Surpreendi-me... Os patrões também estavam ali, assim como residentes em zonas “nobres†da cidade que se deslocam para a “periferiaâ€, onde as festas de tecnobrega geralmente acontecem.
Concordando com Vianna (2002: 154), mesmo que: “(...) uma enorme e bem policiada distância [continue] separando a elite e as camadas populares, [e que] o repúdio pela cultura popular [continue] dominando o ‘gosto artÃstico’ de vários grupos da elite, (...) [certos] grupos [de] elite valorizam o popularâ€.
Segundo Magnani (1978: 12),
"(...) A categoria popular é muito pouco precisa em termos sociológicos e pressupõe uma homogeneidade que está longe de ser comprovada nos estudos existentes sobre camponeses, operários, camadas médias baixas ou outros segmentos e setores que pudessem ser incluÃdos nessa classificação. Da mesma forma, falar em elite pressupõe um monolitismo nas camadas mais altas da sociedade que poderia colocar na mesma categoria grandes proprietários rurais, alta burguesia, oficiais generais, setores da intelligentzia, administradores, etc. (...) A oposição elite X povo em termos de cultura é muito vaga e pouco precisa".
Se, em termos teóricos, o contraste entre “povo†e “elite†pode ser considerado frágil, em termos etnográficos diferentes discursos nativos tratam de reforçá-lo, uns incorporando o estigma de ser “brega†e outros lhes impondo este rótulo. Esta incorporação acontece de duas formas: por um lado, amargando o estigma de ser “bregaâ€, e por outro, revelando o tecnobrega como música de resistência.
Atingidos pelo estigma em maior ou menor grau, produtores, DJs e cantores de tecnobrega protagonizam um movimento de legitimação para esta música a partir de múltiplos discursos que valorizam o brega enquanto principal expressão musical popular regional.
A cena de uma “festa de aparelhagemâ€, bem mais complexa do que o restrito território de lazer onde se encontrariam as empregadas domésticas de Belém, constitui espaço privilegiado onde se performatiza musicalmente um “estilo de vida†(Herschmann, 2005: 62-65) brega e a partir do qual me embaso para discutir sobre toda uma produção cultural que é feita coletivamente. Para tanto, é fundamental compreender os perfis sociais que povoam a “festa de aparelhagemâ€, não através de categorias sociológicas enxutas, ou seja, quero me arriscar na difÃcil tarefa de ir além do discurso – o nativo e o midiático – que diz que o tecnobrega é uma música de “povãoâ€, ou que é uma música que se sustenta sem a interferência de agentes ou instituições oficiais.
Tomando como referência a relação elite versus povo, este trabalho traz algumas considerações preliminares sobre a inclusão do tecnobrega em uma categoria identitária construÃda sobre sÃmbolos/significações reveladores de uma música que por um lado é estigmatizada, mas que por outro reflete de modo particular padrões legitimados na esfera oficial.
Embora o tecnobrega tenha se firmado no mercado discográfico e de shows pela via da informalidade, bandas, cantores e “aparelhagens†vêm recentemente buscando conquistar outros públicos, mesmo os que tradicionalmente lhes viram as costas. Se as aparelhagens sonoras apresentavam-se unicamente em espaços das ditas periferias de Belém, hoje já tocam em locais mais “bem-freqüentadosâ€. Se o aparelho-celular da “moda†é de um determinado modelo, o freqüentador da “aparelhagem†vai dar um jeito para adquiri-lo, nem que seja um de segunda-mão ou de marca inferior. Se a classe média urbana já freqüenta bailes funk (Herschmann, 2005), não há motivo para que este gênero não seja aproveitado na produção musical do tecnobrega. Se o tecnobrega é “autenticamente†paraense, é também caracterizado pela “não autenticidadeâ€; ou seja, o som, que é “autênticoâ€, consiste também na recriação (em “versõesâ€, para usar um termo nativo) de músicas que estão na crista da onda no circuito mundial das rádios, da produção discográfica, audiovisual e dos espetáculos. O fato é que, não apenas por motivos comerciais, a afirmação de uma identidade “bregaâ€, considerada do “povo†e não da “eliteâ€, está ligada à valorização (mesmo que disfarçada em atitudes de desvalorização) de referenciais culturais legitimados nas mÃdias oficiais, que por sua vez não costumam abrir espaço para músicas de “mau gostoâ€, a não ser, é claro, que o produto venda bem. Se vender, pouco vai importar se a música é “boa†ou “ruimâ€. Aliás, neste caso, muito provavelmente o discurso midiático do qual fala Araújo (1999) ganharia novos contornos. Estaria o tecnobrega estreitando relações com os seus “algozesâ€?
No particular da produção musical, o movimento legitimador do tecnobrega privilegia uma estética amalgamadora de traços globais e locais, a partir das escolhas pelos produtores de elementos sonoros a serem aproveitados no processo de criação. Apesar de ter recém-iniciado a etnografia, algumas observações e narrativas já apontam em direção ao envolvimento simultâneo do tecnobrega com a cultura do outro e com o entrelace de culturas locais diversificadas, seguindo um princÃpio pós-moderno denominado “cosmopolitismo†(Hannerz, 1999; Turino, 2000: 7-8).
O espÃrito cosmopolita entranhado em quem produz o tecnobrega materializa-se nas gravações e nas performances ao vivo de formas diversas. O desafio do produtor consiste em ele não apenas criar novos sons a partir da bricolagem de timbres, ritmos e melodias variados, mas também em obter reconhecimento dos colegas produtores e do público por ser capaz de comunicar a música competentemente (Hymes, 2002: 63). Isto sem dúvida se reflete na popularidade de cantores, DJs e produtores de tecnobrega.
Os modelos sonoros do tecnobrega são inúmeros e efêmeros. Num único dia podem ser criadas várias músicas, trocando um ritmo por outro, alterando timbres, substituindo uma matriz sampleada por outra, misturando sons etc. Nos estúdios de gravação, os produtores realizam estas e outras manipulações utilizando softwares como o PCDJ, que se encontra disponÃvel na internet para “pirateamentoâ€. Dependendo do sucesso das músicas nas “festas de aparelhagemâ€, elas podem permanecer nas hit parades alternativas por mais ou menos tempo. De qualquer modo trata-se de um tempo bastante curto, mais até do que o tempo de constituição de Ãdolos fugazes em dimensão global (Valente, 2003: 20-21), que se popularizam instantaneamente, enriquecem e em seguida desaparecem para sempre. Tanto o ritmo frenético do trabalho em estúdio quanto a busca de novas fórmulas de sucesso por cantores e conjuntos de tecnobrega traduzem, por um lado, “uma pluralidade de modos diversos de interpretação do mundo†caracterizadora das sociedades complexas (Magnani, 1978: 08), e por outro, a necessidade de serem reconhecidos artisticamente, inclusive fora dos espaços já consagrados por onde esta música circula.
O “novo exotismo†musical paraense gradua as “cores†do brega techno com “batidas†de funk, fragmentos sampleados de trilhas sonoras hollywoodianas, timbres e ostinatos utilizados no carimbó (Guerreiro do Amaral, 2003) e em outras músicas locais, entre demais exemplos que esclarecem musicalmente a relação entre a valorização de próprios culturais regionais/nacionais e o universo da produção eletrônica Ocidental (Contador, 2001: 55). Estes entrecruzamentos musicais constituem ainda uma contundente via de acesso à pretendida legitimação do tecnobrega em outros mercados e para outros públicos, especialmente os de “eliteâ€, que hoje apreciam o funk da “periferiaâ€, mas continuam rejeitando os gêneros brega, também da “periferiaâ€.
Diante do exposto, não poderia discordar da pertinente afirmação de Araújo (1999) a respeito do poder do discurso midiático que banalizou o brega nacionalmente como música “grotescaâ€, um dos motivos pelos quais, a meu ver, o movimento legitimador do tecnobrega vem ressoando fortemente, tanto dentro do universo de domÃnio desta música quanto para além dos muros construÃdos – mas que não existem, ao fim e ao cabo – para separar o “povo†da “eliteâ€.
Estaria com os dias contados o circuito alternativo (das “metamÃdiasâ€) de produção-circulação-recepção que tradicionalmente caracteriza o tecnobrega? Se esta pergunta ainda não pode ser respondida, quero ao menos confirmar que o brega do Pará já vem caindo nas graças da grande mÃdia, assim como cantores brega por todo o Brasil agora disputam espaços com alguns “incontestáveis†da Música Popular Brasileira. De ambas as partes, esta postura de abertura é importante, na medida em que outras músicas passam a ser conhecidas mais amplamente e também debatidas nas distintas áreas do saber musical.
REFERÊNCIAS
Araújo, Samuel. 1999. “Brega, Samba e trabalho acústico: variações em torno de uma contribuição teórica à Etnomusicologiaâ€. Revista Opus. n 06.
Chion, Michel. 1997. Músicas, media e tecnologias. Lisboa: Instituto Piaget.
Contador, António Concorda. 2001. Cultura juvenil negra em Portugal. Oeiras: Celta.
Dudley, Shannon. 1996. “Judging ‘By the Beat’: Calypso versus Socaâ€. Ethnomusicology. 40/02: 269-298.
Goffman, Erving. 1978. Estigma: notas sobre manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar.
Guerreiro do Amaral, Paulo Murilo. O Carimbó de Belém, entre a tradição e a modernidade. 2003. São Paulo. (Dissertação de Mestrado em Música – Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP).
Hannerz, Ulf. 1999. “Cosmopolitas e locais na cultura globalâ€. AttÃlio Brunetta (trad). In: Mike Featherstone (org). Cultura Global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 251-266.
Hershmann, Micael. 2005. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ.
Hymes, Dell. 2002. “Modelos de la interaccion entre lenguage y vida socialâ€. In: Golluscio, Lucia (org). Etnografia del Habla: textos fundacionales. Buenos Aires: Eudeba.
Lucas, Maria Elizabeth. 1994/1995. “Etnomusicologia e globalização da cultura: notas para uma epistemologia da música no pluralâ€. Em Pauta – Revista do curso de Pós-graduação em Música – Mestrado e Doutorado – UFRGS. 9/10: 16-21.
Magnani, José Guilherme Cantor. 1978. “O conceito de Cultura e o estudo de Sociedades Complexas: uma perspectiva antropológicaâ€. ARTEFATO – Jornal de Cultura. 1/1.
Turino, Thomas. 2000. Nationalists, cosmopolitans, and popular music in Zimbabwe. Chicago end London: University of Chicago Press.
Valente, HeloÃsa de Araújo Duarte. 2003. As vozes da canção na mÃdia. São Paulo: Via Lettera/Fapesp.
Vianna, Hermano. “Diario de viajeâ€. Revista Número.
[Consulta: 13 de setembro de 2006].
_________. O mistério do samba. 2002. Rio de Janeiro: Zahar/UFRJ.
_________. 12/102003. “Tecnobrega: música paralelaâ€. Folha de São Paulo. Mais!/10-11.
Ficou bem legal, agora. Tem algumas ferramentas que você pode usar, como linkar algumas palavras (e ampliar o seu texto) ou colocar mais tags (já existe uma tag para tecnobrega). Assim seu texto vai ser melhor localizado pelos sites de busca e aparecerá ao lado dos outros com a mesma tag. Procure pela tag tecnobrega que tem muita coisa aqui no overmundo sobre o assunto. Um abraço.
Ilhandarilha · Vitória, ES 27/8/2007 22:41Considero o texto instigante, fluente, bem estruturado, baseado em pesquisa séria, com analise criteriosa e informativa. Traz fortes elementos para compreensão sobre sociabilidade e desfaz preconceitos que impedem de compreender fenômenos importantes da sociedade contemporânea. Merece publicação!
Gutemberg Guerra · Belém, PA 30/8/2007 08:29
Oi Paulo!!!
Muito bom seu texto, uma linguagem super fluente.
Adorei e é uma importante contribuição para a área. Bjs, saudades,
Magali
Olá!!!
Bem interessante este artigo.
nós aqui do NAEC de São Benedito - ceará, trabalhamos com vários estilos de música, desde o popular, ao eletrônico.
É fascinante trabalhar com a diversidade, pois podemos agradar a todos os gostos.
queremos conhecer esta nova leitura proposto no texto para podermos utilizar em danças com nossos jovens...
acesse; http://naec.gigafoto.com.br e conheça um pouco de nosso trabalho.
abraços de toda equipe do NAEC de São Benedito - CE
Oi Paulo,
Seu artigo é extremante bem escrito e muito bem argumentado.
Esse texto contribui para a exteriorização da cultura paraense. E torço para que ele vá além das fronteiras do preconceito.
Parabéns!
Delyse Braun
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