“Para Nenna, que sabe onde fica o futuro”. Foi com essa dedicatória que o escritor e agitador cultural Marien Calixte presenteou o amigo com seu livro Contos Desiguais. Nenna agradeceu escrevendo uma crônica, onde termina avisando que vai “espalhar aos tantos cantos o conteúdo”.
Assim é o multimídia Nenna: a frente de seu tempo, curioso, perspicaz, vaidoso, extremamente sincero e, como não poderia deixar de ser, polêmico. Pioneiro na implantação da linguagem contemporânea na arte produzida no Espírito Santo, Nenna continua produzindo.
Ele tinha mais ou menos dez anos quando começou sua ligação com a arte. O menino se refugiava na biblioteca do Ibeuv, ávido por informações. Descobriu várias publicações sobre o assunto que abriram para sempre seu mundo. Foi apresentado à pop-art de Andy Warhol e ao minimalismo de Dan Flavin quando esses caras ainda estavam começando.
E foi pautado em novos conceitos e poéticas defendidos por seus prediletos artistas contemporâneos, que o jovem Atílio Gomes (que mais tarde adotou o nome artístico de Nenna) concretizou a primeira manifestação plástica de vanguarda da cidade. Dispensou a galeria, elegeu a cidade como campo de ação e transformou uma pacata rua em museu aberto, com seu Estilingue Gigante.
Trouxe das memórias da infância o antigo brinquedo, escolheu uma castanheira da Praia do Canto, bairro de gente conservadora e avessa a inovações artísticas, como escreveu certa vez o falecido jornalista Carlos Chenier, e construiu um estilingue de proporções enormes. A escala humana do Estilingue transformou o interlocutor em possível objeto arremessado, uma irônica crítica ao momento político que vivia o país.
Era madrugada de um domingo de junho de 1970, época de repressão, e com medo de alguma represália o artista falsificou uma autorização assinada por Joaquim José da Silva Xavier. Ele mesmo, o Tiradentes, que segundo o documento, trabalhava na prefeitura e autorizava a intervenção de arte pública na cidade.
A árvore foi revestida de gesso com pigmento amarelo e duas tiras de plástico preto foram amarradas aos troncos. Nas tiras, ele prendeu uma atiradeira de plástico vermelho, e tava pronto o estilingue em grande escala que surpreendia os transeuntes habituais das manhãs de domingo. Mas tudo transcorreu em paz, o teor crítico não foi percebido naquele momento.
Por outro lado, como observou bem a professora e pesquisadora Almerinda da Silva Lopes (UFES/ANPAP), ajudou a ativar a percepção de indivíduos que viviam numa cidade completamente carente e careta artisticamente. Tinha até fundo musical com violão, violino e flauta no happening, alcunha que não interessa muito a Nenna, “Eu nunca me preocupei em localizar minhas coisas, acho difícil saber o limite entre uma coisa e outra. Mas sabia que tava indo além das artes plásticas”.
“Melhor aludir que nomear. Verso não precisa dar noção”, como escreveu Manoel de Barros em seu Livro Sobre Nada. O importante é entender que esse menino de 18 anos transformou uma árvore em suporte e estrutura de uma obra de vanguarda, que até hoje se mantém na memória de quem cruzou com ela.
Nenna discordava dos métodos de ensino acadêmico da Escola de Belas Artes da UFES, e seus diferentes processos conceituais eram estranhos aos professores e colegas em sua maioria. Seu trabalho não foi compreendido simplesmente porque as então emergentes tendências da arte contemporânea, como a Arte Conceitual, não eram conhecidas pelo meio artístico local. Ele abandonou os estudos antes de mesmo de conclui-los.
Inscreveu no I Salão de Alunos e Ex-Alunos do Centro de Artes da UFES, uma nova obra que consistia em duas fichas de inscrição da mostra. “Eles exigiram que a obra tivesse três peças e suporte. Coloquei uma moldura e preguei na parede frente e verso da ficha. O terceiro eu chamei de Amor, feito assim de matéria etérea”. Inscrição I, Inscrição II e Amor chocou de novo a moçada e surpreendeu ganhando o prêmio maior do Salão.
Nenna continuou produzindo. Fez as exposições Brasiliana (72) e Tristes Trópicos (75), mas sua ousadia foi melhor compreendida no meio artístico carioca do que no local. Coube ao curador Roberto Pontual descobrir o jovem talento e convidá-lo pra expôr na mostra coletiva Arte Agora I / Brasil 70-75, no Museu de Arte Moderna do Rio, que pretendia identificar os principais artistas brasileiros que estavam surgindo.
Em 79 ele inovou novamente com a exposição Taru. Pela primeira vez na cidade, o vídeo adentrava o ambiente das artes plásticas. “Era um U-matic enorme, uma mesa”. Nessa mesma época, em sintonia com seu tempo cultural, ele começou a desenhar. Produziu a série Tropicasso (79) e Noturnos (81).
No início dos anos 80, Nenna se mudou pro Rio. Mas ao invés de continuar no campo das artes visuais, o cara radicalizou e foi trabalhar na Rede Globo. Virou produtor executivo do Quarta Nobre até pedir demissão dois anos depois. “Eu era uma peste na época, e não tava agüentando a mudança de poder nas artes plásticas”.
O crítico e curador Paulo Herkenhoff tinha conhecido Nenna na época da exposição no MAM, e acabou dando uma ajuda pro artista mostrar seu trabalho na Mostra Novos Cariocas, no centro Cultural Cândido Mendes, com curadoria de Marcos Lontra. Estava lá a nata dos artistas de outros estados que estavam se firmando no Rio de Janeiro, e também o sortudo e rebelde capixaba.
Fez ainda uma individual no parque da Catacumba, Pinturas Cariocas. E foi nessa época que Nenna conheceu Lygia Clark numa festa fechada no centro do Rio. “Cheguei lá vestido de artista pobre, peguei uma bebida e fui pro meu canto. De repente abre-se uma porta, silêncio, e aparece aquela mulher toda de preto, parecendo minha mãe, com um séqüito de oito pessoas atrás. Ela atravessa o salão inteiro, me cumprimenta, entra em um escritório e fecha a porta.”
Nenna não entendeu nada. Conta que bebeu mais umas doses e foi embora, fascinado. Acabou voltando pra Vitória um tempo depois. Continuou desiludido com as artes plásticas. Sua única ligação com esse universo passou a ser Frans Krajcberg, que quis conhecê-lo após ler um artigo escrito por Nenna sobre o desejo do escultor de doar todo seu acervo e fazer uma fundação no Espírito Santo.
O artista provinciano pós-vanguardista e o escultor se tornaram amigos. Krajcberg trouxe Nenna de volta à infância. “Eu me relaciono com alguém que morou com Chaggal, fez gravura com Braque, tomou uns porres com Picasso”. Os dois viajaram pra Amazônia, se encontram sempre que possível, e gravam horas de conversas-depoimentos sobre tudo que pensam.
Em 2003, o multimídia conta que cansou de ser vagabundo e voltou a trabalhar. Chegou lançando um livro autobiográfico que contava toda a sua trajetória. O nome era Bíblia, e continha o seu velho testamento. Daí, ele entrou numa de começar do zero, e começar a fazer tudo que não fazia.
Entrou em coletivas, ou pelo menos tentou, se inscreveu em festivais de cinema e vídeo, ou seja, socializou. “Mas agora já voltei ao normal, não entro mais em nada”. Nenna escreve e faz a curadoria de textos sobre arte contemporânea para o site www.taru.art.br. Taru quer dizer tempo na língua dos índios botocudos.
Quarenta dias antes da tragédia das tsunamis na Ásia, o artista lançou a exposição Oceano, uma reflexão sobre a grandiosidade oceânica das águas. A inspiração veio depois da experiência de navegar até a Ilha de Trindade, um paraíso perdido no extremo leste do território brasileiro.
Depois veio Brasil, que ele não tem certeza mas acha que é a exposição mais importante que já fez na vida. Consistia em um ambiente todo vermelho com luzes vermelhas e amarelas, e dentro desse ambiente, 64 aquários de formatos diferentes com água, e em todos, a mesma foto original de Tom Jobim no caixão.
“Eu digo que é uma eletro-pajelança cósmica. Não quis fazer nenhuma denúncia, nem atacar ninguém, foi uma limpeza, pra ver se o espírito de Tom Jobim ali se comunicando ajudava a melhorar um pouco a situação caótica do país”. O próximo projeto, em desenvolvimento, é Oceano 2 Paik, uma homenagem a Nam June Paik, pai da vídeo arte que faleceu há pouco tempo.
E difícil dar um nome pra essa nova fase do Nenna. E é impossível prever o que ele vai inventar depois. O que é certo e aparente é que ele está mais sereno. Diz que mudou radicalmente, que cansou da polêmica. “Minha estratégia é fazer minha obra, identificar talentos que estão emergindo, resgatar os que estão sumindo e ignorar a burrice”.
Agora é esperar pra ver o oceano de luz que esse pioneiro e inquieto artista está criando. Que seja escrito o novo testamento!
www.nenna.com.br
clap, clap, clap (palmas, heheh) pra você pelo texto e pro Nenna (que na época do estilingue era Atílio) pela obra.
Ilhandarilha · Vitória, ES 7/3/2007 17:32sensacional de ler e de saber! faltavam detalhes de nenna no meu hd...
Lurex · Rio de Janeiro, RJ 8/3/2007 11:11
Que texto ótimo Ana!!! Adorei ler e receber tanta informação boa! Não conhecia esse artista e pelo que você descreveu ele me agradou, vou buscar mais sobre o assunto. E que lindas as fotos da exposição Brasil!
Parabéns!!!
Abraços!
Valeu ILHANDARILHA. nenna é demais, não?...
(você viu? o vídeo Sal Grosso tá na fila de votação)
http://www.overmundo.com.br/banco/sal-grosso
Lurex, fico feliz pelo upgrade no seu hd.
Ana, tá boa? Feliz fico eu que tenha gostado do texto. Mérito pro Nenna e sua instigante história de vida.
Faço coro aos elogios ao texto. Conteúdo, opinião, fluidez.
Thiago Perpétuo · Brasília, DF 8/3/2007 19:17Maravilha de texto, assim como a Ana, eu não conhecia Nenna, mto bacana, só que não consigo acessar o site dele.
Letícia Lins · São Bernardo do Campo, SP 9/3/2007 08:55m e r c i . . . pela beleza do texto!!! e o carinho com meu trabalho. não sei nem o que dizer. aproveito para avisar a Letícia que o site estava mundando de tecnologia. mas restaurei rapidamente o site antigo para pelo menos ter um pouco mais de informação. mais uma vez, aninha, muito obrigado!!!
neXnna · Vitória, ES 9/3/2007 10:51
Puxa Thiago, valeu pelos elogios. Mesmo.
Ei Leticia, muito obrigado. E o próprio Nenna te responde sobre o site (logo acima).
Nenna querido, obrigada você!
Que mais posso falar? Você tá no ar.
ahhh...agora sim...rs
muito obrigada!
Aninha,
sempre linda e me emocionando.
Espero poder receber este novo testamento na alma.
Beijos Ana, beijos Nena
Apausos pelo texto Aninha. Parabéns mesmo. Um abraço acoxado!
raphaelreys · Montes Claros, MG 16/12/2007 06:10
Um texto com conteúdo e fluidez.
Próprio de quem sabe o que faz.
Beijos
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