extrato de um diário de campo

criscabello no http://estudiolivre.org
cultura, cultura, cultura
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Viktor Chagas · Rio de Janeiro, RJ
22/4/2007 · 173 · 10
 

Estou acabando de fazer a segunda visita. Segunda visita, porque fiquei maravilhada com o que vi, aprendi e recordei. Meus parabéns, é o que mais do que nunca precisamos, cultura, cultura, cultura. As palavras ficaram ecoando ad eternum no vazio acústico da minha cabeça. Do lado de fora eu ouvia, Ele está lá dentro ainda? O que está fazendo? Ele está lá dentro? Eu saquei meu caderninho e comecei a anotar coisas para compor a estréia de meu diário de campo. Nunca tive a menor paciência para um diário de campo, por isso, acho que fiz bem em não ocupar meu moleskine com isso por enquanto. Só arranjei um espacinho na última folha de meu caderno de aula mesmo. Um Notebook modelo Pleno, de cada dura laranja, pautado, 96 folhas, 17,5cm x 24,5cm. Talvez eu ainda mude essas anotações para o meu moleskine, mas por enquanto, elas ocupam meia página da minha última página. E literalmente meia página, já que rasguei horizontalmente o restante para anotar um telefone que acabei perdendo. Cultura, cultura, cultura. Essas palavras eu plagiei de um livro-caixa, capa dura, revestida de papel preto, 100 folhas numeradas. Havia um outro parecido na entrada, onde eu pus apenas Viktor Chagas, meu nome, 25 anos, minha idade, Rio de Janeiro, procedência. Eu poderia fantasiar, é claro, dizer que eu venho do Recife, mas acho que o bom tom nessas ocasiões não é colocar a naturalidade, mas a praça de residência. Pois bem. Eu cheguei ainda a voltar ao livro-caixa da entrada, posto que o trajeto do museu era circular. Voltei lá também porque comprei o livro de contos e lendas da Maré. A menina simpática da portaria me disse que o livro era vendido e o cordel era de graça. Peguei um de cada e comecei pelo fim. A visita foi toda guiada. Antônio Carlos Vieira, o Carlinhos, falava e gesticulava com grande entusiasmo para a pequena comitiva que havíamos formado. Apenas eu e Rose (não confundir com a Cláudia Rose) não conhecíamos o museu, por isso, os comentários eram direcionados. Doze meses, doze horas, o museu é como um lápis mas também é como um relógio. É tempo de lembrar. E, como no princípio era o caos, na Maré, é o tempo da Ãgua. Fotos do acervo de Dona Orosina Vieira e uma panorâmica de Augusto Malta. A malta prossegue. No meio da sala, um barco ornamentado para a procissão. O mar vai virar sertão. Os textos são da Cláudia, ele avisa. São muito bonitos. Uma menininha pequeníssima chega e vai logo abraçando o Carlinhos. Ele sorri como se dissesse, Filhos... Mas o tempo do Futuro será imediatamente anterior ao corredor com o livro-caixa sobre o púlpito. E eu ainda não cheguei lá. Carlinhos explica como os aterros da Maré foram feitos pelos próprios moradores, com restos e sobras do cimento ora usado nas obras da Avenida Brasil, ora usado na construção da Linha Vermelha. O mar vai virar sertão. E é por isso que já não fazem mais sentido as palafitas que se sustentavam sobre quatro ou mais patas no alagadiço do que foi a Maré de Dona Orosina, a primeira moradora a chegar na região e montar sua casa com pedaços de madeira que vinham boiando nas marolas da baía. Vem gente de tudo quanto é estado. Vem principalmente gente que trabalhava mesmo na construção da Avenida Brasil e da Linha Vermelha, as principais linhas de acesso do centro ao subúrbio (jeito carioca de falar periferia). Lacerda viu os aterros e levou à Maré a Nova Holanda. Ou levou à Nova Holanda a Maré. E Carlinhos disse que no início havia alguma resistência a gente desta ou daquela comunidade, mas que hoje em dia, as coisas não são tanto assim. A Maré, para quem não sabe, não é exatamente UMA favela, são dezesseis. São dezesseis comunidades, que, unidas, formam o Complexo da Maré. Um bairro. Minha idéia é justamente estudar o que de cidadão teve o jornalismo e a mídia de maneira geral para aquelas comunidades. Há mais ou menos 30 anos foi o jornal comunitário União da Maré o que primeiro forjou a idéia de comunidades unidas. Comunidades que eram unidades de um todo, e a coisa, portanto, não era simples, era complexo. Agora, 30 anos depois, o jornal O Cidadão tenta construir uma identidade mareense, como ele próprio define. Experiências de comunicação comunitária fogem à lógica do jornalismo civil, que é como se costumava explorar uma espécie de jornalismo civilizador surgida no início do século XX, e aproximam-se à do jornalismo cidadão, como eu quero tratar disso, tanto enfocado nas temáticas de novas tecnologias. Eu sou um sujeito afeito às novas tecnologias, mas quis justamente me distanciar desse universo para ter contato com gente. Gente é fundamental, gente. Por isso, na palafita, achei engraçado quando Carlinhos disse que tem gente pegando panelas e utensílios de cozinha que ficam expostos na casa montada dentro do museu. Disse e pensei, É sinal de que ainda servem para alguma coisa. Se tivesse já lido o livro-caixa na hora em que ouvimos a história, certamente eu me lembraria da caligrafia de criança que dizia "Foi muito legal sabe porque porque eu quebrei tudo", desse jeitinho mesmo, sem tirar nem por. Mas os tempos ainda não tinham passado. Ou nós ainda não tínhamos passado pelos tempos. Foi só depois de um (ou dois) tempo(s) é que vimos a escola de samba, o time de futebol, uma parede de tijolos e, no teto, um guindaste! Carlinhos advertiu, Esse guindaste era do tempo (o tempo, sempre ele) da fábrica do porto. Já estava aqui no galpão e nós achamos que podíamos deixá-lo aí em cima. Ainda funciona... e sorriu. A gente passou pelo União da Maré, pelas escrituras de quando os moradores finalmente conseguiram regulamentar sua situação, pelos brinquedos de criança. Chegamos no tempo do medo. O Luiz ou o Carlinhos, não sei bem ao certo, lembrou que, assim como as panelas, alguns meninos andaram levando as balas que faziam parte da exposição. Eram balas usadas. Balas de fuzil, de revólver, de metralhadora. Longes de serem balas de goma, de hortelã, de tutti-frutti. Quando falamos do caso das panelas, mais tarde, a Rose levantou uma hipótese de fetichização do objeto de museu, com a qual eu concordo inteiramente, mas eu contrapus a idéia dela dizendo que balas, por mais estranho que possa soar, são objeto de fetiche seja em que espaço for, no museu ou no meio da rua. Então foi que chegamos ao tempo do futuro. Aqui ainda está um pouco vazio, advertiu alguém. Tinha apenas uma maquete da Maré feita por crianças da Escola Bahia. Já levaram alguns carrinhos também. E foi aí que eu percebi que levar objetos num museu é importantíssimo. Os objetos são suvenires. Suvenires não apenas no sentido material da coisa, suvenires do ponto de vista conceitual mesmo, de lembrança, do primeiro passo para a constituição da memória social. O Carlinhos contou que a idéia do tempo do futuro é que o espaço seja um museu sobre o que já passou pelo museu, fotos das exposições, o passar do tempo. Uma espécie de metamuseu. A primeira vez que ouvi o termo metamuseu foi há bem pouco tempo. Ainda este ano, na verdade. Quando fui à Casa de Cultura de Ituiutaba, que não é exatamente um museu, mas um grande acervo de coisas sobre assuntos os mais diferentes. Tinha uma coleção de máquinas de escrever, uma coleção de bichos empalhados, uma coleção de uniformes escolares. Tudo num espaço que mal dava para se andar. Ouvi com atenção meu pai sugerir ao pessoal da Fundação Cultural de Ituiutaba que se focasse o museu em alguma realidade próxima à cidade, e que se reunisse o acervo numa reserva técnica, separando o que é útil e o que será descartado. Aí, ele disse, e meus olhos de metajornalista brilharam, que havia uma grande chance de se fazer ali num espacinho que fosse um metamuseu, contando a evolução da Casa de Cultura, o processo de constituição do museu, seu histórico e por aí vai. Na Maré, o metamuseu ainda não está pronto. Apenas um ano talvez seja cedo. Mas foi depois de sair do tempo do futuro que então me deparei com o livro-caixa, o bendito livro-caixa. Folheei, folheei e não conseguia parar de folhear. Achei curioso o livro-caixa ter depoimentos de gente tão íntima daquela memória toda, gente que via ali o que o Halbwachs diria que é a grande diferença entre o que é memória e o que é história. Memória é vida. Memória é vida, gente. Num outro breve texto que escrevi (esse com um arzinho mais acadêmico para diversificar), eu dizia que, para mim, não há metamuseu melhor que o livro-caixa no estreito corredor que encerra o Museu da Maré. Porque, no fundo, o livro-caixa que está ali aos nossos olhos e que, na maioria dos museus, costuma quase ser desprezado, é também ele um objeto de museu (um lugar de memória, diria Nora). É livro que não é para ser lido, mas para ser escrito, mas sobretudo um livro que, se lido, transporta no tempo o leitor. E o leitor, por mais óbvio que possa parecer, não é um leitor, é um releitor, posto que ele lê o que os que o antecederam leram. Para marcar minha humilde passagem, já com o projeto (ou a imaginação museal, diria meu pai) de constituir objeto de pesquisa para mim mesmo, pus no livro um modesto comentário. Uma frase curta e breve, que simbolizasse minha entrada naquele novo mundo. Pisei fora do museu ainda com aquelas palavras ecoando na minha cabeça, Cultura, cultura, cultura. Eu pensei cá comigo se realmente era essa a questão. Reli o comentário que anotei no meu caderno de aula: "é o que mais do que nunca precisamos". Pensei no Chartier. Nunca nem vi uma foto do Chartier, de modo que para mim ele é um nome sem imagem. Mas imagino o Chartier assim como quem imagina o Woody Allen, talvez com o aro dos óculos menos grosso. O que quero dizer é que se o que vi no museu não foi nada mais do que a memória viva da Maré, cultura não é exatamente o que falta. Há quem diga que favela não é lugar de museu e que favela não é lugar de cultura. E, aí posso ouvir o Chartier entrando e dizendo que cultura popular é uma categoria erudita. Criada, antes de mais nada, para ou ser uma categoria completamente autônoma, ampla e vaga (afinal, o que ou quem é o povo a que se refere o adjetivo popular?), ou ser uma categoria excludente: é cultura popular o que não é cultura erudita. Eu concordo com ele (quem ousaria dizer que não concorda?). Ou seja, não! Não se avexe, não, Salete Maria. Você sabe amarrar o cadarço do seu tênis porque tem memória ou porque tem cultura? E soube escrever o depoimento no livro-caixa do Museu da Maré por quê? Na minha humilíssima opinião, memória e cultura são duas cabeças do mesmo bicho-de-sete... Estou acabando de fazer a primeira visita. Primeira visita, porque fiquei maravilhado com o que vi, aprendi e recordei. Pretendo voltar...

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hunternews
 

É PRECISO VALORIZAR CULTURA, UM POVO SEM CULTURA ESTà MORTO.

hunternews · Uberaba, MG 21/4/2007 18:50
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dansudansu
 

Legal, Viktor. Espero que na memória do seu notebook laranja ainda tenha espaço para muitas outras visitas. Abs!

dansudansu · Rio de Janeiro, RJ 22/4/2007 12:40
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Spírito Santo
 

Muito bom VIktor,
Gostaria que tivesse mais coisas suas pra se ler por aqui. Só não consegui ler muito bem o texto nesse blocão compacto em que você o editou. Me perdi várias vezes e tive voltar para me localizar e reler mas, isto também tem lá o seu sentido. Pode ser um conceito.
Gostei mesmo,

Abraços

Spírito Santo · Rio de Janeiro, RJ 22/4/2007 19:12
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Viktor Chagas
 

Oi, Hunternews. De pleno acordo. Um povo sem cultura, um povo sem memória, um povo sem história... Como eu disse, é tudo cabeça de um mesmo bicho de sete...

DaNsUdAnSu, muito obrigado pela honra da visita! O caderno não sei se terá espaço, mas certamente farei mais visitas, até porque a Maré de fato constitui meu trabalho de campo. O que não couber no caderno provavelmente caberá no Overmundo... :)

E, Spirito, também agradeço pelas elogiosas palavras. Os textos mais longos que escrevi por aqui, você pode encontrar na tag viktor-chagas. Notas e textos menores, além é claro também dos maiores, ficam abrigados apenas no meu perfil. De resto, peço desculpas pelo bloco maciço, mas a idéia foi dificultar um pouquinho a leitura mesmo, para que quem quisesse de fato reter o texto na memória tivesse que voltar e se localizar, como você bem fez... :)

Abraços a todos.

Viktor Chagas · Rio de Janeiro, RJ 22/4/2007 20:20
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Spírito Santo
 

Valeu, Viktor!
Boa sorte!

Spírito Santo · Rio de Janeiro, RJ 22/4/2007 20:25
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Rynaldo Papoy
 

Grande relato, mano. Valeu!

Rynaldo Papoy · Guarulhos, SP 24/4/2007 16:46
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Viktor Chagas
 

Oi, Rynaldo, obrigado! E pelo voto na poesia também, embora lá ela já conste como não-publicada.
Um abraço.

Viktor Chagas · Rio de Janeiro, RJ 24/4/2007 16:49
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crispingarilho
 

Oi vitor
Vc é minha salvação. Minha foto está na fila de edição, tem uma galera querendo votar e não sabe como...Me dá uma força pra eu virar uma "overmana"? Aliás, como é aniversário da cidade dia 8 de maio e o tempo estava se esgotando, mandei outra foto com um comentário sobre o "Museu do Rocck " do Serguei! Divulga pros seus fâs overmanos e dá uma olhada no texto. Acho q ficou bacana!
bjs
Cris

crispingarilho · Rio de Janeiro, RJ 4/5/2007 17:16
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crispingarilho
 

Faltaram só 2 pontos mas agente chega lá! Valeu a força Vitor!
A segunda foto já está em votação!
BJK
Cris

crispingarilho · Rio de Janeiro, RJ 7/5/2007 13:00
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crispingarilho
 

Fui dentista da Fundação Oswaldo Cruz, no meio da favela da Maré, lá naquele Castelinho e tive a oportunidade de trabalhar com aquela comunidade tão carente de tudo. Fazíamos a nossa parte na questão de Saúde Pública e de Educação em Saúde.
Somos mais um tijolinho ..."Another brick in the wall", mas se cada um puder salvar uma vida, seja de q forma for, já estamos fazendo um milagre!

crispingarilho · Rio de Janeiro, RJ 7/5/2007 13:08
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