FESTRIBAL – Identidades em reconstrução (I)

Yusseff Abrahim
Festival de São Gabriel da Cachoeira exibe a complexidade amazônica em plenitude
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Yusseff Abrahim · Manaus, AM
13/11/2006 · 110 · 4
 

Ter assistido à XIª edição do Festival das Tribos do Alto Rio Negro – Festribal, no município de São Gabriel de Cachoeira, em setembro, foi experimentar primeiro um misto de decepção, silêncio, observação e reflexão, para logo depois, alcançar o entendimento de uma festa que reúne não somente as mais diversas nuances de manifestações culturais compreendidas entre tradição e folclore, mas um evento cujo formato exibe uma metáfora perfeita da complexidade sociocultural da cidade.

A geografia e os custos da viagem fazem de São Gabriel da Cachoeira um destino distante das aspirações turísticas do manauara, fato que o poder público local tenta reverter com uma divulgação tímida da festa, se comparada ao Festival de Verão, em Maués, realizado na mesma data e sede de um delírio turístico para quem mora em Manaus. O problema da acanhada divulgação do Festribal é ainda manter no imaginário do potencial visitante a idéia da reunião das 23 etnias que habitam a região do Alto Rio Negro, um evento de encontro entre representantes destas populações como um grande kuarup local. Ao chegar na cidade e se deparar com a programação diante da expectativa inicial, um sentimento de decepção chega a ser solene e inevitável.

Cheguei no segundo dia do evento, perdendo a abertura que contou com a apresentação dos Daw (pronuncia-se dou), índios nômades do rio Tiquié que foram os grandes homenageados do Festribal 2006. “Procuramos evidenciar esta etnia que historicamente estava esquecida, então aproveitamos o Festribal deste ano para mostrar sua cultura, dança e chamar a atenção para o fato de que estão quase extintos”, afirma o coordenador Gilliard Henrique, referindo-se à população de apenas 100 indivíduos.

Também houve a escolha da rainha do Festribal, a Kuña Muku Poranga (fala-se cunhã mucú poranga). O concurso reuniu meninas entre 13 e 16 anos de acordo a concepção do ápice da beleza feminina considerada pelos sábios da tribos. “Pesquisamos junto àqueles que possuem o conhecimento tradicional na comunidade, os pajés e anciãos, que nos disseram que a beleza maior está na mulher em transformação”, diz Gilliard. A vencedora foi a estudante Kelle Castro Andrade, 14 (foto em destaque à esquerda), que se intitula uma descendente Baré e se mostrou modestamente surpresa. “Entrei pela brincadeira junto com algumas amigas, não esperava”, revela, ao mesmo tempo em que mostra alegria e a curtição do reinado.

Apresentações da segunda noite

Na segunda noite, a atração foi os alunos da Escola Municipal Indígena Dom Miguel Alagna, que fica em São Gabriel da Cachoeira e contou com cerca de 90 estudantes entre 12 e 17 anos. As 23 etnias foram representadas por alguns alunos que traziam um objeto, quando chamada a tribo específica, o estudante exibia o produto ao público que ouvia origem, utilidade e seu significado, cada grupo étnico era ainda identificado tanto pelo nome imposto pelos colonizadores como por suas autodenominações - por exemplo, os índios chamados Tarianos, na verdade se reconhecem como Taliaseri. Logo em seguida, foi apresentada a Dança do Inajá.

A integração com os países vizinhos teve lugar na apresentação de El baile del Sebucán, onde crianças venezuelanas de San Carlos, vila com aproximadamente 1760 habitantes no município indígena autônomo Rio Negro, inovaram a indumentária dos cocás substituindo as penas for finas folhas de madeira com o patriotismo pintado no rosto. “Foram dois dias de barco até chegarmos aqui, mas é um grande prazer”, conta o professor Melquier Ril da Silva, 40, que acompanhava o grupo da escola bolivariana Antonio Jose de Sucre, que encerrou a noite com uma nova leitura para a brasileiríssima Dança do Tipiti. “A dança foi levada ao nosso país e incorporada à região, a coreografia é a mesma, somente dançamos com as nossas músicas”, explica o jornalista venezuelano Gérson Granda, 26.

Uma inusitada dança gaúcha executada pelo grupo Dançart, composto por estudantes locais, fechou as apresentações de pista mostrando a influência dos muitos gaúchos que habitam a cidade servindo ao exército, cujas esposas em geral viram professoras na cidade e aproveitam para transmitir o folclore do sul. Ao final de cada noite, o Festribal abria espaço para shows musicais onde banda cover Tríades animou a platéia com sucessos de FM, mas foi o grupo musical da Associação Cultural Baré que levantou o público com músicas de exaltação à cidade e sua cultura.

Lições da Escola Ye’pa Mahsã

Na noite seguinte, a movimentação de crianças com indumentárias de tucum (fibra resistente de palmeira típica) era grande do lado de fora do tribódromo, aparentemente mais um centro de ensino se apresentaria me fazendo questionar onde estava o Festribal que eu esperava, ao mesmo tempo que procurava lembrar as razões da minha expectativa.

Depois de um texto de apresentação em português ser lido para o público sem reação, minha atenção foi arrebatada pelo mesmo texto lido na língua tukano que ao final recebeu os aplausos dos presentes que lotavam o tribódromo. O município mais indígena do Brasil mostrava sua identidade na apresentação da Escola Indígena Ye’pa Mahsã (pronuncia-se iepá massá) com crianças vindas das comunidades de Santa Teresinha, Cumuri e Monte Alegre, todas situadas às margens do rio Uaupés. Cada unidade apresentou uma dança tradicional com a visível importância do significado daquele rito visto em cada semblante, a harmonia daquele conjunto de crianças e jovens era a melhor surpresa do dia a traduzir-se naquela imagem de Festribal que pessoalmente esperava.

Os vizinhos voltaram à cena para duas apresentações, Baile Venezuela e Baile Venezuela Viva e a apresentação de um grupo local de capoeira distraíram o público antes dos shows no final da noite. Sabrina Santos & Banda foi o destaque, mas a cantora entrou com máscara e sem banda fazendo uma performance teatral com alguns participantes caracterizados com farda escolar, era uma crítica sobre uma suposta postura hipócrita da roqueira Pitty que teria sido explorada em uma revista nacional como uma "rebelde sem causa". De máscara, Sabrina ao mesmo tempo que fazia referência ao fato, utilizou-se de quatro sucessos da cantora para fazer o público dançar, encerrando o ato com a pompa satirizada de concursos de miss na colocação de uma faixa com a inscrição "Rainha da hipocrisia". Somente depois decidiu mostrar sua proposta de trabalho com músicas próprias em português, tukano, e nheengatu – língua de unificação criada pelos portugueses. Com sua temática voltada à exaltação do índio e da natureza, com fortes críticas à cultura do branco, a cantora mostrou-se uma novidade de grande potencial mesmo cantando sobre os arranjos pré-gravados. “Desculpem pela ausência da banda, foram algumas confusões de última hora, mas o importante é que eu não desisto”, disse Sabrina, que aos 21 anos mostra a vontade de desenvolver um trabalho crítico.

O embate das tribos : Baré X Tukano

O Festribal reserva as duas últimas noites para as suas maiores atrações. Um desafio inspirado na fórmula de sucesso parintinense envolvendo duas associações folclóricas. “É inspirado, mas temos nossas especificidades”, justifica o coordenador Gilliard. Disputando a preferência do público e dos jurados, Baré e Tukano têm uma noite específica com duas horas e meia para apresentação.

Quem se apresentou na quarta noite de festival foi a Associação Cultural Tribo Tukano sob o tema A origem do povo Tukano. A arquibancada estava decorada com alegorias, bandeiras e balões nas cores da associação, amarelo e preto, mas até o início oficial da apresentação os preparativos demoraram e tornaram-se enfadonhos, até que os módulos da primeira alegoria começaram a ser posicionados.

Depois de uma hora de espera, a apresentação começou com luzes apagadas e velas na parte onde se concentrava a torcida tukano. A dramatização contou a saga de um povo que viveu no centro da Terra, originário do Lago de Leite e que está prestes a emergir à superfície por meio de uma boiúna, a cobra-grande, para transformar a Terra, povoá-la para tirar a tristeza e os males que reinavam. A alegoria (foto maior) traz um componente no alto simbolizando o Deus da Terra, Doetiró, sobre uma cobra que percorreu o ginásio. De sua enorme boca começaram a sair os primeiros índios que formaram todas as etnias pertencentes ao tronco lingüístico Tukano: os Dessano, Wanano, Tariano, Piratapuia e os Tukano propriamente ditos.

A partir daí a apresentação saiu da encenação fantástica da mitologia e passou a retratar a organização dos indígenas em suas novas moradias, com o roteiro elaborado para exibir os itens da disputa previstos em regulamento. Em um local de reunião das etnias chamado Casa das Mulheres (item alegoria), a Cunhã Poranga foi escolhida e encaminhada ao Pajé, que iniciou a preparação da vida na Terra. O Ritual do Pajé (foto em detalhe superior direito) foi encenado com pé no chão e dramatizado sem pirotecnias. Ao final da apresentação, as etnias unidas ocuparam todo o espaço de pista do tribódromo para uma grande evolução final coreografada.

A ousadia Baré

Com o tema Fatos e Lendas do Alto Rio Negro, a tribo Baré pintou o tribódromo de amarelo e vermelho com visível superioridade estética em relação à rival, da decoração das arquibancadas e indumentária das tribos ao tamanho das alegorias, que inclusive foram responsáveis pelo atraso de 40 minutos devido a dificuldade de entrar no ginásio. Iniciada a exibição, seguiu-se um roteiro com a preocupação de mostrar o dia-a-dia do indígena e a origem mitológica da fibra presente na vida de todas as etnias da região, o tucum.

A Tribo Baré começou com alegorias e participantes simulando a vida nas aldeias, numa coreografia intitulada O Índio, celebrando a unidade étnica e a fraternidade mantida por meio dos rituais. No refrão, a ênfase: “Sou Baré, da Tribo Baré eu sou”. Em destaque, personagens simbolizavam a Rainha do Artesanato, a Mãe-Natureza, a Cunhã-mucu-poranga e até a formação rochosa da Bela Adormecida, monumento natural da cidade.

Com simplicidade na ambientação do cenário, a dramatização da lenda emocionou o público. A Lenda do Tucum retratou a inveja da madrasta Aiba – filha de um pajé – que resolveu aproveitar a ausência do pai verdadeiro da menina, um índio guerreiro, para enterrá-la viva. Quando o pai retornou, a madrasta contou que uma cobra surucucu a havia mordido. O guerreiro chorou e foi embora para nunca mais voltar. Dias depois a assassina morreu de febre.

A encenação continuou com a leitura de textos pelo apresentador alternando com a dublagem dos “atores” sob vozes pré-gravadas. Quando a velha índia Guaibí se dirigia para a roça de mandioca, teve a visão fantástica de uma palmeira, um tucunzeiro gigante. Vendo a qualidade das folhas, teceu a mais bela rede para seu neto Baiá, um índio querido por todos por cantar e tocar flauta como ninguém. Ao dormir na rede pela primeira vez, Baiá sonhou que estava enraizado à terra, e à sua frente, um tucunzeiro gigante se transformava em uma linda índia, que se aproximou e disse: “Baiá, toque para mim”. Em cena, índio e índia protagonizavam o encontro final sob aplausos, e uma grande coreografia encerrou a apresentação da agremiação.

Veredicto e contestação

Na tarde do dia seguinte, torcedores e integrantes das associações folclóricas Tukano e Baré ocupavam as arquibancadas à espera da abertura dos envelopes. Os jurados votavam segundo os itens alegoria, letra e música, originalidade, cunhã-mucu-poranga, ritual do pajé, coreografia, leitura do histórico e evolução. A agremiação vencedora levaria para casa o troféu Daw - Gente – Caçador, uma arte em ferro fazendo referência à etnia homenageada do Festribal.

A leitura das notas e a declaração da Tukano como vencedora estarreceu os integrantes da Baré e surpreendeu até a torcida campeã, que demorou alguns segundos para vibrar e descer as arquibancadas para comemorar. Em pauta, a mesma discussão dos resultados do Festival de Parintins: a Baré teria sido julgada sob o critério do excesso de ornamentações que comprometeu a originalidade da exibição. Em contraposição o questionamento: Como pregar de forma tão rígida o conceito de originalidade dentro de uma festa desenvolvida sob a ótica do espetáculo? O XIº Festribal abriu em São Gabriel da Cachoeira a discussão que vigora em Parintins desde a segunda metade dos anos 1990, entre os bumbás Garantido e Caprichoso, e que está até hoje sem solução.

Depois do choque, a torcida Baré invadiu a pista para comemorar com os sentimentos do dever cumprido pela boa apresentação e de injustiça. "Cabeça de jurado é igual a urucum, a gente nunca sabe o que tem dentro", bradou um dirigente ao microfone se referindo ao fruto em forma de ouriço. E tudo acabou assim, com Tukanos comemorando desconfiados e Barés comemorando com raiva, mas juntos e respeitando-se mutuamente.

O XIº Festribal chegou ao fim dando início a uma discussão enigmática: ao importar também a polêmica parintinense, Barés e Tukanos impõem-se a necessidade de sua solução conceitual, em prol da transparência dos seus critérios e preservação da lisura de seu resultado, para não repetir o erro de quem o inspira e não cair no mesmo notório descrédito dos resultados de Parintins presentes nos últimos dez anos.

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Hermano Vianna
 

alô YussefF: algumas curiosidades: por que você ficou decepcionado? o que você esperava? pelo texto não dá para entender... Outra passagem de difícil entendimento: por que a cantora citou a Pitty na sua apresentação? O que estava sendo criticado? Não sei o que aconteceu na tal revista semanal - nem sei que revista foi essa - era alguma coisa anti-índio?

Vi que é a Parte 1 do seu texto sobre o Festribal: fico com receio de cobrar coisas que você vai falar no próximo texto. Mas aqui me você parece ter se detido descrição das apresentações. Fico mais curioso de saber como as pessoas vivem a festa, como o festival é recebido pela cidade etc.

Abraço!


Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 13/11/2006 00:05
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Yusseff Abrahim
 

Exato, Hermano!
Resolvi dividir o texto desta forma para me fechar a primeira parte nas apresentações, na parte 2, tudo o que está aberto será fechado, inclusive o porquê de RECONSTRUIR IDENTIDADES.
É que ficou muito grande, e da forma que havia escrito inicialmente tom tudo junto chegou a ficar até mal-humorado.
Vc vai entender a DECEPÇÃO...

Yusseff Abrahim · Manaus, AM 13/11/2006 16:20
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Yusseff Abrahim
 

... já que é um texto opinativo, trabalhei como sentimento que deve ser superado (se for o caso).

Valeu.

Yusseff Abrahim · Manaus, AM 13/11/2006 16:23
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Hermano Vianna
 

bacana - estou esperando ansioso a segunda parte!

Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 13/11/2006 23:19
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