“Fun, fun, rock 'n' roll high school” ¹

1
Cury · Salvador, BA
21/7/2008 · 112 · 7
 

Recentemente, em uma lista de discussão de que faço parte, houve a clássica discussão sobre qual o problema do rock baiano: “Por que o público não aparece?”, “Por que só existe um lugar pra fazer show?”, “Por que o som é sempre ruim?”, “Por que os shows só começam uma da manhã?”
“Por que? Por que? Por que? Por que?”² cantava a Maria Bacana, no final dos anos 90.

Descobri o punk muito cedo, com 10 anos.
Em 1989, muito depois de o punk ter nascido, a porra do Bahia foi campeão brasileiro. Zé Carlos, marido de minha mãe, é torcedor do Bahia e foi com ela assistir ao jogo da final no Beira Rio, em Porto Alegre. Sou torcedor do Internacional até hoje.
Um mês depois, chego da escola e minha mãe me apresenta a um amigo dela.
– Esse é Carlinhos Vergueiro, um amigo meu, acabou de lançar um disco.
Ele levou o disco recém-lançado de presente, disco esse que comemorava 15 anos de carreira. Ele na foto, bonitão. Foi a primeira pessoa que conheci que tinha um disco. E ele estava lá por outro motivo. Por gostar muito de futebol, fez uma música pro Bahia e seu título e foi mostrar pra Zé Carlos. Mas Zé Carlos não estava.
– Eu posso gravar ela, então – disse ele.
– E depois você manda pra mim? – perguntou minha mãe.
– Não precisa, vou gravar agora.
– Hein?
“Gravar agora? Aqui em casa? Como? Com que microfone?”, pensei.
Pegou o Gradiente duplo deck, colocou uma fita TDK minha, afinou o violão, fez “hamham” pra limpar a garganta, pediu silêncio, apertou REC e PLAY ao mesmo tempo e gravou.
– Minha voz saiu um pouco grave e áspera, vou fazer mais uma vez.
E pronto. Dois takes.
“Porra, é assim que grava, é?”, pensei eu. O cara tinha um disco gravado, era profissional, era ele na capa do disco e ele gravava igual a mim (diferente só o tema).

A primeira vez que me apresentei em público foi no Colégio Anchieta, em 1992. Eu era da sétima série e outros alunos da sexta fariam uma apresentação no pátio, no fim da aula. Eles não tinham cantor e eu disse que cantava.
Tivemos apenas um ensaio, no dia da apresentação, na casa do avô do baterista (onde ficava a bateria), que era neto de Jorge Amado. Durante uma manhã inteira, a bucólica casa de Jorge e Zélia no Rio Vermelho se encheu com as idéias de Bob Dylan, através de minha voz, cantando Knockin' On Heaven's Door³. Hoje fico me perguntando “será que Jorge estava por ali, no andar de cima, ouvindo?” Imagino ele e Zélia no quarto, comentando sobre a banda do neto e as músicas que tocavam.
Também ensaiamos Planeta Morto⁴;;, uma música que os Titãs fizeram pra algum programa infantil da Globo. Era semana da natureza ou algo assim, então tinha que ter uma música com o tema.
Depois da apresentação, fui recomendado por todos do colégio a esquecer de vez a carreira de cantor.

Eu estava tocando com uns amigos numa banda chamada Aguarraz. Uns meses atrás, aconteceu a chance de a banda tocar em uma escola. Incentivei o projeto. É o melhor público para uma banda que está querendo e precisando mostrar seu trabalho. Antes de mais nada, é um público sóbrio. No máximo, uns iniciantes na maconha, o que já é melhor que os bêbados do Rio Vermelho, a uma hora da manhã, no mesmo lugar, mesma iluminação, mesmo cenário, entre a fumaça incessante dos cigarros. Vou cada vez menos a shows. Viva os 30.

Um amigo meu, no dia do seu aniversário de 29 anos, recebeu um telefonema.
– Alô – ele atendeu.
– Aaaaahhhhhh, trintão, trintão, trintão, trintão, aaaaahhhhh... – gritava a voz do outro lado da linha.
Na primeira oportunidade que ele teve, quando o outro parou de gritar, disse:
– Primeiro lugar, é 29. Segundo lugar, ano que vem não lhe atendo.

Os adolescentes querem o máximo de informações por simplesmente serem adolescentes. É a lei da natureza. Ainda mais se tratando de rock and roll.
Tocar em escolas é ter à disposição um número enorme de espaços pra tocar, seja qual for a sua música.
Com a Aguarraz, tocamos no primeiro intervalo, para estudantes da 5º à 8º série.
Bom dia, nós somos a Aguarraz e vamos tocar rock and roll pra vocês – disse Roberta, no microfone, após o término da primeira música.
E com pãozinho delícia na boca, ficaram ouvindo rock por 20 minutos. Uns ignoravam, outros olhavam e não esboçavam reações, uma menina saiu correndo, de mau humor, porque queria falar no celular e o solo de guitarra não deixava, enquanto alguns outros olhavam fascinados. Depois tocamos no segundo intervalo, pros mais velhos, do 1º e 3º anos. Mesma coisa: bom dia; pãozinho delícia; indiferença; no celular; e 3 ou 4 fascinados com o som. Talvez o primeiro show de rock deles. Esses 3 ou 4 são fundamentais para uma banda. No mundo segmentado da internet, eles indicarão a banda pra centenas de pessoas idênticas a eles.
Na ultima música, percebi que a pele de resposta da caixa (a que fica embaixo) tinha estourado. Como ainda tocaríamos para os do turno vespertino, na hora do almoço fui comprar outra pele para trocá-la. A apresentação vespertina começaria às 14:30. Cheguei mais cedo e tinha um grupo de estudantes em cima do palco: uns estudavam, outros conversavam e um casal dava chupão atrás do palco.
Subi, puxei a caixa e, quando virei para ver a pele estourada, todos disseram “poooooOOOOOOooooorra”. A troca de pele foi o acontecimento do momento. Nunca troquei uma pele com tanto público. Acho até que já fiz show com menos gente.
Um deles era baterista.
– Eu percebi a mudança no som, quando a pele estourou. Foi no finzinho da última música, não foi?
– Foi – disse eu.
Cercado deles, enquanto soltava os parafusos, fui ouvindo as conversas.
– Ali é Flavinha com aquele cara do terceiro ano, é?
– É – respondeu uns seis, ao mesmo tempo.
No primeiro show da tarde, pros mais novos, um ficou perturbando, fazendo piadinhas entre uma música e outra. Toni, o guitarrista, virou pra mim e disse:
– Rapaz, se esse pirralho continuar, vou no microfone ameaçar dizendo que vou chamar o SOE.
Toni, que tocou no Cascadura, também me disse que uma vez foi com a banda tocar no halloween de uma escola, e que tio Fábio teve que fazer sorteio de dentaduras de vampiro e máscaras de monstros.

Adolescente de hoje sai cada vez menos de casa. Se diverte na internet. Inclusive nas classes menos favorecidas, em lan houses de 1 real por três horas de navegação. Mas pras escolas elas ainda têm de ir. Seja pública ou privada. Eles estão lá, de bandeja, pra banda ir lá e dizer “bom dia, vamos tocar rock and roll pra vocês”. Receber e-mails com “clique aqui e ouça minha musica, veja meu clip” eles recebem dezenas por dia. Ver uma banda ao vivo é outra referencia, que está cada vez mais rara, e talvez por isso, mais valiosa.
Não é à toa que, nos anos 80, o termo College Rock foi criado para rotular as bandas do pós-punk que venderam milhões após se apresentarem por anos nas universidades americanas. Do R.E.M. ao Pavement, quando o termo sofreu mutações a se chamar Indie Rock, nos 90. “Hey, kids, rock and roll”⁵;;, cantava Stipe.

Após a febre de Anna Júlia⁶;;, o Los Hermanos fez um show em Salvador, no Rock In Rio Café, pra ninguém. NINGUÉM. Tudo indicava que a banda parecia fadada a ser mais um Wonders. O público cansou, a gravadora cansou, eles cansaram de tocar em festa de rodeio, peão e boiadeiro, que era o que vinham fazendo, o empresário cansou, o empresário novo pegou e disse:
– Vamos focar nos estudantes.
A banda ficou um ano “sumida”, tocando nos anfiteatros de escolas e universidades. E, nas suas devidas proporções, ocorreu a progressão aritmética até onde eles foram. Um amigo indicando pro outro:
– Já ouviu o disco novo do Los Hermanos? – perguntava um.
– Eles ainda existem?
– Vou te mandar as músicas.
Pra turnê do terceiro disco, eles queriam tentar Salvador de novo, mas estavam com medo. Ligaram pra Luisão, que na época tocava com a Penélope, pedindo para ele produzir o show. Ele não poderia, estava no Rio, mas indicou Rogério BigBross.
– É um cara do rock de lá – disse Luisão.
E até hoje não se sabe se tinha mais gente fora da casa de show, que foi no ED 10, de propriedade do jogador Edílson e que só agrupava bandas de pagode, ou se dentro da casa, com todos cantando em uníssono todas as músicas da banda.

Muitos roqueiros baianos desistem do rock e, para manter o sonho da profissão de músico, vão tocar outras coisas. Muitos ficam traumatizados.
Cansado de tocar em espeluncas com equipamentos de quinta, um conhecido meu, depois de anos dedicados ao rock and roll, aceitou ser guitarrista de uma banda de pagode. O cachê seria bom, viajaria muito, bons hotéis e, melhor, o som de sua guitarra, a sua amada Fender Stratocaster, finalmente, soaria, constatou ele, ao chegar no palco para a passagem de som do seu primeiro show como guitarrista de pagode, e ver o amplificador dos seus sonhos montado. Um AC 30 Vox esperando o plug de sua guitarra. Ele não acreditou no que viu. Em 15 anos de rock, nunca tocou naquele equipamento. Os seus guitarristas prediletos usavam aquele amplificador. Beatles, U2, Strokes...
“Isso que é profissionalismo, ainda bem que larguei o rock”, disse para si mesmo. Sua guitarra foi feita para soar naquela caixa, de som definido, e não naquelas porcarias que o rock lhe dava, com som de carro de feira.
No rock, ele sempre foi otimista de que, um dia, a sua banda conseguiria um equipamento como aquele. Mas o rock da Bahia nunca respeitou o poder de sua guitarra. Era o pagode que o faria. “Que ironia”, ele pensou. E não importava que era pagode. O que importava era a comunicação entre ele e a guitarra. Nada é mais prazeroso para um guitarrista do que o som de sua guitarra. E em um AC 30 Vox, nem se fala.
Com a guitarra pendurada, foi em direção ao seu brinquedo novo, o plug na mão desde longe mirando o buraco conector do amplificador. Tudo ao seu redor era silêncio, estava em transe, concentrado apenas no momento de plugar a guitarra e ouvir aquele som mágico, ajustar os graves, médios e agudos, assim como o volume, os efeitos... Mas o máximo que conseguiu foi chegar a dois metros do AC 30 Vox:
– Ô, maluco, a guitarra né aí não, viu?
– Hein? – respondeu ele, despertando.
– A guitarra né aí não, a guitarra é naquela caixinha ali – era o ajudante de palco. – Esse amplificador aí é do cavaco – finalizou ele.

Talvez essa seja a real diferença entre While my guitar gently weeps⁷;;e Mandei meu cavaco chorar⁸;;.

Trabalhando com produção, certa vez tive de ir parar atrás do palco de um show de Jorge Vercilo.
PUTAQUEPARIU.
Eu já não gosto muito de Djavan, mas mesmo assim fiquei lá observando o Vercilo, ouvindo aquelas músicas, maresia da porra, chato pra caralho, aí olhei pro tecladista e parei de reclamar minha sorte ao perceber que a situação dele era pior, quando, no meio de uma música, ele mandou o arranjo, a melodia e a harmonia desta pra putaquepariu, ao tirar uma mão do teclado e olhar pro relógio. PQP. O cara não devia tá agüentando mais. Salvou minha noite.
Na escola, na 3º série do primário, tia Zeni me ensinou que eu nunca, jamais, em hipótese alguma, deveria olhar pro relógio enquanto alguém estivesse se apresentando.

Meu avô descobriu o punk um pouco tarde, em 2007, na véspera de completar 90 anos.
Do it yourself”, o “faça você mesmo”, era a palavra de ordem dos punks nos anos 70, querendo alertar que ninguém precisava saber tocar um instrumento para fazer uma música ou formar uma banda. Com o tempo, o conceito foi direcionado para todas as áreas artísticas e sociais, inclusive sendo ampliado, saindo da esfera da criação e englobando também os setores de produção, como temos hoje o “não espere uma gravadora, grave seu próprio disco”.
Desde que me lembro das coisas, meu avô reclama que os jovens hoje não têm mais acesso à poesia, ao parnaso, à leitura... e por isso o desinteresse geral. Foi assim com o rock baiano nos anos 90, onde a grande massa mídiatica – jornais, rádios e TVs – ignorava o segmento, só mostrando, exaustivamente, Danielas, que hoje precisam fazer propaganda de detergente pra aparecer na televisão.
Meu avô já teve seus livros lançados, tempos atrás, mas poucos exemplares. Sempre desejou muito relançá-los para espalhar suas idéias por aí, ainda mais que ficou todos esses anos de aposentado revisando e mexendo seus versos. Mas ele achava que a única forma de lançar e divulgar um livro era através de uma editora. Isso até eu fazer o meu livro, sem editora.
Tô indo nas gráficas com ele. Fomos na EGBA – Empresa Gráfica da Bahia –, mas lá não tinha o papel e nem a tinta para deixar a capa da cor que ele quer. Ficou puto. Achou um absurdo, com toda razão, uma empresa gráfica referencial na Bahia não estar hábil para pedidos tão simples, como uma cor amarelo-ouro e papel tipo verger.
Estamos visitando outras gráficas. Vai fazer mil livros e dar todos.
– Quero espalhar nas bibliotecas, universidades e escolas – disse ele.
– Yeah – disse eu.





_____________
(1) Rock 'n' roll high school, de Joey Ramone, por Ramones.
(2) Hélice, de André Mendes, por Maria Bacana.
(3) Knockin' On Heaven's Door, de Bob Dylan, por Guns and Roses.
(4) Planeta Morto, de Marcelo Fromer, Arnaldo Antunes e Sérgio Brito, por Titãs.
(5) Drive, de Bill Berry, Peter Buck, Mike Mills e Michael Stipe, por R.E.M.
(6) Anna Júlia, de Marcelo Camelo, por Los Hermanos.
(7) While my guitar gently weeps, de George Harrison, por Beatles.
(8) Desafio (mandei meu cavaco chorar), de Tonho Copque, Xandy, Duller e Fábio Alcântara, por Harmonia do Samba.

compartilhe

comentrios feed

+ comentar
Atilon
 

cara esse lance de bandas high school realmente é bom, quando se tem bandas boas... mas nas escolas q eu ja estudei a unica manifestação estudantil direcionada à "musica" foram algumas de pagode: pegada do guetho (assim q eu vejo escrito), e ate aquela menina Aline rosa q recentemente ñ satisfeita com sua fama esdruxula beija uma outra cantora (Daniela) na gravação de um show (Forte São Marcelo), uma amiga minha q estava la disse
- menina. ela so largou a outra pq começou a chover.
mas em fim, aqui em salvador mesmo na era pos-raul... pos-marcelo nova...pos-atecaetano q tbm se encaixa no conceito rock em alguns discos, o rock aqui ñ é tão respeitado quanto deveria. abrç

## AGUARRAZ ## quando show d'novo??
flw

Atilon · Salvador, BA 19/7/2008 12:44
1 pessoa achou til · sua opinio: subir
Jefferson Alves de Lima
 

hahahahahaha bom pra caralho, cury. a história do nego com a fender e o amplificador pro cavaquinho é deliciosa... vc escreve bem pra diabo. precisa reunir isso pra grudar num livro... peraí... (é isso, porra!) Como conta o General Google vc é o nego de "Para Colorir"... Vi algo sobre no jornal... Acho que na Ilustrada, na Folha de S. Paulo... Parabéns. Quando eu encontar com o livro, vou arrematá-lo rsrs abs. Jeff

Jefferson Alves de Lima · São Paulo, SP 19/7/2008 23:06
sua opinio: subir
Jefferson Alves de Lima
 

...e já puxei um cordonê de seu blog até o meu (aplenospulmoesss.zip.net). toda a força aí, véi. abs. jeff

Jefferson Alves de Lima · São Paulo, SP 19/7/2008 23:10
sua opinio: subir
Nic NIlson
 

Historias tão boas qto aqueles tempinhos de escola! Valew! Blzma!

Nic NIlson · Campinas, SP 20/7/2008 18:53
sua opinio: subir
Ilhandarilha
 

Cury, vc está eleito meu autor favorito! Bom demais seu texto. divertido, irreverente e muito, muito instrutivo. Quer dizer que foi Carlinhos Vergueiro que te aplicou na filosofia punk? O cara vai dar um show aqui em Vitória na quarta-feira. Vou até lá pra conferir o velho punk. E o livro do seu avô, o outro punk, quando é que sai?
Punk é fazer rock na Bahia, meu rei! Yeah!
abraços!

Ilhandarilha · Vitória, ES 21/7/2008 00:48
1 pessoa achou til · sua opinio: subir
Jair Jnusi
 

VOTADO e plaudido de pé!

Jair Jnusi · Rio de Janeiro, RJ 21/7/2008 20:37
sua opinio: subir
Alberto Nanet
 

PTZ Grilo!
DA do karamba, engraçado que aqui em João Pessoa a gente faz as mesmas perguntas ó!

Alberto Nanet · João Pessoa, PB 22/7/2008 02:34
sua opinio: subir

Para comentar é preciso estar logado no site. Faa primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.

filtro por estado

busca por tag

revista overmundo

Voc conhece a Revista Overmundo? Baixe j no seu iPad ou em formato PDF -- grtis!

+conhea agora

overmixter

feed

No Overmixter voc encontra samples, vocais e remixes em licenas livres. Confira os mais votados, ou envie seu prprio remix!

+conhea o overmixter

 

Creative Commons

alguns direitos reservados