Há homens em “Homens”?

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Paulo Gois Bastos · Vitória, ES
26/6/2008 · 97 · 8
 

Talvez o que menos apareça no documentário Homens (22 min), de Lucia Caus e Bertrand Lira, sejam os homens (o dito gênero masculino da espécie humana). E aqui me arrisco em dar palpites sobre o porquê do título da obra. Ironia pode ser um deles, porém, pelo desenrolar do filme fica claro que o que acontece é um desconhecimento sobre o que vem a ser identidade de gênero por parte de quem produziu e dirigiu a obra. Diz muito sobre a postura documentarista que beira o turismo exótico por vivências diversas daquelas de quem documenta. Entre as nove personagens que aparecem no documentário, apenas três delas performatizam uma identidade homossexual masculina. Bianca, Amapola, Bárbara, Ângela entre outras (sim, são nomes femininos!) fazem referência a si sempre no feminino. O que mais seria preciso para se perceber que essas (esses?) sujeitas (sujeitos?) não são homens?

A maioria das personagens se encontra na margem, na fronteira, ora ultrapassando-as, de e entre os gêneros. O preconceito, a discriminação e a violência que sofrem se devem justamente a esse “desrespeito” aos limites. É por borrarem as categorias de gênero que uma (um?) delas (deles?) não pode agradecer a graça recebida na igreja e que outra (outro?) foi espancada (espancado?) no canavial. E é por não perceber que aquele corpo masculino não condiz com a sua identidade de gênero que Bianca quis fazer com as próprias mãos a mudança de sexo.

Então quais evidências seriam necessárias para que os diretores percebessem que aqueles corpos tidos como masculinos negam essa condição e não aceitam o fato de que possuir um pênis lhes põe um destino fixo como homens? Amapola, uma das personagens, esteve presente na sessão de lançamento, que ocorreu no último dia 12, no Cine Jardins, em Vitória. Ela, visivelmente feminilizada, demarca claramente esse pertencimento ao gênero feminino: “Tou agradecida por estar na cidade de Vitória”. A percepção desse borrão não é evidente para todos, nem as (os?) próprias (próprios?) sujeitas (sujeitos?) que vivem a transexualidade e a travestilidade constroem um discurso contra-normativo assim tão claro. Mas, definitivamente, o documentário não fala de homens, mas aceitemos momentaneamente a ironia do seu título.

O filme perdeu a chance de ir atrás das poderosas estratégias que fazem essas (esses?) sujeitas (sujeitos?) terem um cotidiano extremamente violentado, mas não sucumbirem a uma completa inadequação existencial – o que leva muitos ao suicídio antes mesmo de vivenciarem o desejo não heterossexual ou de se permitirem ultrapassar as fronteiras do gênero. Mostrou-se sim o quanto eles e elas se a dedicam ao lar, ao trabalho e foi ressaltada a busca pela felicidade como uma compensação à sua existência transgressora. Zé da Viúva, este (claramente?) um dos três homens do filme, fala dessas estratégias: já idoso se permitiu vivenciar uma homoafetividade, pois senão teria uma síncope ou algo parecido. A vida falou mais alto, negociou com a família, trouxe o objeto de afeto para o convívio íntimo e ainda deixa claro que a sua afeição é algo para além da relação erótica, o que desestabiliza ainda mais nossa percepção acerca das relações homoafetivas.

Mas o que prevalece ao longo do filme é uma coleção de tipos exóticos. Os mais desinibidos diante da câmera ganham mais tempo, outros só poucos segundos. Falta uma maior contextualização, falta-nos o cotidiano. Algumas personagens estão visivelmente constrangidas quando interpeladas por 'fale da sua história! Como foi a sua descoberta? Como procura ser feliz?'. Há um misto de vitimização, heroísmo e humor – mecanismos que depois de um certo momento do filme causa constrangimento (pistas de como se deu a relação personagem X equipe de produção). O que seria um momento para empoderar aquelas (aqueles?) sujeitas (sujeitos?) é, mais uma vez, uma apropriação estereotipada de suas vidas.

O cartaz já é um indicador desse recorte. As flores de plástico – componentes da cenografia e elemento kitsch da decoração de um lar no interior nordestino – marcam uma feminilidade também estereotipada naqueles corpos. O que significa Bárbara arrumando e decorando caprichosamente a mesa senão a perfomance de uma dedicada dona de casa? Mas o documentário não se propõe a falar de homens homossexuais do interior nordestino? Aquelas (Aqueles?) sujeitas (sujeitos?) não seriam homens?

São e não são. São o que as teorias de gênero mais contemporâneas chamam de identidades queer, isso mesmo, estranho em inglês. Estranheza positivada, pois essas (esses?) sujeitas (sujeitos?) mostram o quanto o investimento normativo para a construção da dicotomia dos gêneros masculino e feminino é falho e artificial. Não dá conta dos nossos desejos, afetos, prazeres e expressões. Por isso, o corpo – patrimônio primeiro da nossa existência – borra, bagunça e denuncia essas categorias.

Homens diz muito pouco dos homossexuais do interior nordestino, e menos ainda sobre homens nordestinos. O título destoa do conteúdo do documentário. É mesmo uma ironia, apesar de eu não crer na intencionalidade dela. E assim como as tecnologias do gênero esquadrinham nossos corpos, desejos, afetos antes mesmo de nascermos, Homens esquadrinhou a vida daqueles(daquelas?) sujeitos(sujeitas?) queers nordestinos(nordestinas?). O documentário reforça a estranheza, agora aqui negativada, daquelas personagens. E mesmo que o riso alivie um pouco desse mal estar da suspensão categórica, ele continua lá a nos incomodar.

Ao que parece, os diretores darão continuidade a esse trabalho e produzirão um longa-metragem com o material gravado de que já dispõem. Espero que a nova obra tome outro rumo, que as vidas daqueles(daquelas?) sujeitos(sujeitas?) ganhem amplitude e que outras relações – para além da sexualidade e de um projeto de felicidade compensatória – apareçam. Que não seja apenas uma ampliação da coleção de tipos exóticos.

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Ilhandarilha
 

Paulo, ótimo texto, boa reflexão. Interessante como vc e o Ériton tiveram visões tão diferentes do mesmo filme. Já leu o texto dele aqui?
Concordo com vc em muitas coisas, principalmente quanto ao fato do filme ter abordado a superfície da questão, perdendo uma grande chance de ampliar a reflexão e ultrapassar estereótipos. Porém, como o Ériton, fui tomada por um carinho imenso pelos personagens do filme. Homens, sim, apesar do feminino, do batons e saltos altos.
beijos

Ilhandarilha · Vitória, ES 23/6/2008 08:58
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Ériton Berçaco
 

Paulo, excelente discussão.
Mas, sinceramente, se vc admite que são as personagens do curta são "homens e não são", você admite a fronteira: o entrelugar dos gêneros. Algumas se apresentam, pelo menos aparentemente, como homens, no caso do Zé da Viúva, e outras como mulheres, como a Bianca, e outras (outros) como outra coisa, o que eu denominei "Flor", metáfora desse entrelugar, dessa fronteira.
Acho, sim, cabível todo tipo de crítica, bem como todo tipo de recorte, inclusive o "exótico" como vc denominou, dado pelos diretores. A arte, em vídeo ou não, e qualquer outro registro,
se orienta segundo os discursos e teorias queer, ou seja lá qual for, se assim o quiserem. Eu vou a fundo na questão X ou Y se assim me convier. Claro que se não me oriento sob a chancela desta ou daquela corrente; se não agrado esta ou aquela "Teoria Engajada" -
falo tanto de engajamento social quanto artístico, ambos políticos-; se eu não o faço, serei alvo de críticas, porque não agradei gregos, troianos, acadêmicos ou quem quer q seja. Acho q o filme pode, sim, se aprofundar tomando outros rumos, ou, também, continuar na mesma linha adotada. O vídeo é um recorte, sob a ótica dos diretores; não um material didático, por meio do qual os expectadores irão conhecer a fundo a discussão da teoria de gênero. Talvez, seja preciso outro trabalho, feito por outra equipe, com a abordagem pretendida em sua crítica. Este, ao que parece, não tem a intenção de sê-lo. Seria bom se fosse? Talvez. É horrível por não ser. Não, não é.

Ériton Berçaco · Muqui, ES 24/6/2008 00:18
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Ériton Berçaco
 

Onde se lê "se vc admite que são as personagens do curta são"
leia-se "se vc admite que as personagens do curta são"

Façam as devidas adequações nos usos do verbo "agradar", que devem ser regidos pela preposição "a".

Ériton Berçaco · Muqui, ES 24/6/2008 11:04
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Andre Pessego
 

Acho que sim - fala-se em dicutir..... Discutir o quê? Quando se discute é porque não está aceito. A séculos se discute o preconceito racial.......... E?.........
abraço
andre.

Andre Pessego · São Paulo, SP 25/6/2008 06:23
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Nic NIlson
 

Aeh, me permitam entrar nesta. Quando o título sugerido foi Homem, pensamos em "ser" ou vc acha que homem só serve para identificar vc e eu? Entao qdo a bíblia diz homem ela exclue a salvação a todas as mulheres? E tem mais. Claramente, o q se discute não é aceito, é discutivel, como diz André. Vc ja fez filme? Nem que for um de aniversário? Conhece a estrutura do docudrama? Amargo, claro crú... assim é o que se apresenta. Com flores de plástico, perucas de plástico, seres nem homens nem mulheres. O Nordeste é diferente? Ja foi tomar café na caneca de plástico ou de lata de extrato de tomate, enferrujada, na casa da beira de estrada? Tá pensando q ser gay, traveco, homo, e qualquer outro adjetivo q vc gosta de nomear, cada um, cada um, tem o glamour de hollywood?
Aqueles seres, q vc nao quer q chamemos homem, podem ser chamados de veados, serve? Acho q ficariam mais contentes com esta alcunha do que serem "homem" no gênero, número e grau dos hipócritas. E esta equipe ruim, que nada sabe de filme, q tem uma camera na cabeça e uma ideia na mão, são seres q filmam tudo, de qualquer jeito, como fotos sem focos, mas realizam e mandam um recado: Sorria, Paulo, vc está sendo filmado!

Nic NIlson · Campinas, SP 25/6/2008 09:26
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Helder Dutra
 

Espero ter a acesso a película em questão...

Helder Dutra · Rio de Janeiro, RJ 25/6/2008 13:35
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Ériton Berçaco
 

O curta foi selecionado para o festival de cinema de Gramado!

Ériton Berçaco · Muqui, ES 1/7/2008 15:03
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Paulo Gois Bastos
 

Caros,

Estive por deveras ocupado na última semana, por isso só agora respondo aos seus questionamentos.
Então, vamos por partes...

Ériton,
Em momento algum reivindico um olhar com filtro teórico sobre as/os sujeitas/os do filme. E sim, pra mim, alguns deles estão no entrelugar e outros em locais bem definidos, mas muito poucos podem fazer parte da categoria “homem” – ironia que não cabia na obra justamente não apresentar uma categoria predominante nem por se opor a ela.

Minha leitura não tem qualquer pretensão de censura, mas, ao recortarmos qualquer "realidade", fazemos escolhas éticas e estéticas. Problematizo essas escolhas, pois percebo no documentário desencontros com aquelas/es sujeitas/os.

Também não reivindico qualquer engajamento por parte da produção, contudo considero autoritária e arbitrária a apreensão exótica daquelas personagens – especialmente quando os diretores não explicitam esse estranhamento.

Menos ainda espero um tratamento "didático" ao tema. E reafirmo, falta contexto, falta justamente aquilo que não esteriotipa aquelas/es sujeitas/os.

Quanto a Nic Nilson,

Achei seu comentário muito confuso. Pelo que entendi você defende que o direito à crítica é reservado somente àqueles que criam? Cada uma/um daquelas/es sujeitas/os têm o direito de serem chamadas/os e identificadas/os da modo como elas/eles assim o quiserem (mulher, veado, homem, gay, traveco, bicha...). Considero fascista a sua cobrança por uma alteridade temática – apesar de conhecer a vivência demandada.

Paulo Gois Bastos · Vitória, ES 1/7/2008 19:00
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