O auditório estava cheio. Em torno das cadeiras de plástico brancas, barracas de comércio de artesanato estampavam os cartazes: "Aceita-se Fora do Eixo Card: Cubo Card, Palafita Card, Goma Card, Marciano e Lumoeda". Camisetas também eram vendidas em moedas complementares. "Mas você também pode pagar em real, caso prefira", brincou um dos organizadores do III Congresso Fora do Eixo, que aconteceu de 10 a 16 de outubro, em Uberlândia (MG), junto com o Festival de Música Jambolada.
O Congresso reuniu cerca de 300 pessoas - a maior parte na faixa dos 20 e poucos anos - que fazem parte dos cerca de 50 coletivos reunidos no Circuito Fora do Eixo (FdE), uma rede colaborativa que trabalha com diversas linguagens, com destaque para a música. Os coletivos organizam festivais (Grito Rock, Jambolada, Calango, Varadouro, Até o Tucupi etc.) e fazem as bandas circularem por todo o paÃs, aproveitando do potencial de rede para buscar patrocÃnios e influenciar polÃticas públicas de fomento à cultura.
O Circuito Fora do Eixo, a meu ver, é uma das experiências de gestão cultural mais interessantes que surgiram no Brasil nos últimos anos, iniciativas que sobrevivem à margem das grandes indústrias e da grande mÃdia porque, entre outras coisas, apostaram na livre circulação das obras e souberam usar de forma criativa as novas tecnologias de comunicação, que baratearam a produção e reprodução dos bens culturais e facilitaram a circulação e divulgação destes produtos.
É por esse motivo que o Fora do Eixo será um dos casos relatados na segunda fase do projeto Open Business Models (Modelos de Negócios Abertos - América Latina), desenvolvido pelo Instituto Overmundo e pelo Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV DIREITO RIO. O Open Business faz o mapeamento de iniciativas culturais que se sustentam ao mesmo tempo em que permitem amplo acesso aos conteúdos produzidos, utilizando-se das novas tecnologias de informação e comunicação. Na primeira fase, realizada entre 2006 e 2007, foram mapeadas mais de vinte iniciativas em que a principal forma de ganho não se baseia em propriedade intelectual. A partir de novembro deste ano, os novos casos - cada vez mais comuns fora das indústrias tradicionais - serão publicados aqui no site.
Grande parte da força do FdE está na organização em rede. O circuito é dividido em 5 grupos de trabalho: Música, Comunicação, Clube de Cinema, Palco Fora do Eixo e o Fora do Eixo Card, este último responsável pela sustentabilidade do projeto. O FdE Card é dividido em cinco núcleos: Projetos (hoje há 91 projetos cadastrados em um banco, prontos para serem remixados por qualquer coletivo na hora de conseguir apoio para suas atividades), Negócios, Mapeamento e pesquisa (com base na visão da necessidade de indicadores na área da cultura, que possam pautar planejamento, novos modelos de negócios e polÃticas públicas e incentivar a decisão dos patrocinadores), Arranjo Produtivo Local (responsável pelo organograma, moedas, planilhas de trocas, etc.) e Fundo.
As moedas complementares utilizadas durante o congresso são uma das formas que o FdE encontrou de promover a sustentabilidade. Esta, aliás, foi a principal discussão do evento e é sobre ela que escrevo aqui. Outras caracterÃsticas que fazem o FdE ser considerado um caso de open business serão discutidas na reportagem feita por Rafael Lage, editor da Rádio Microfonia, que será publicada em breve.
Cinco dos cerca de 50 coletivos possuem moedas complementares em papel, mas mesmo nos coletivos onde não existe a moeda fÃsica a lógica de contabilizar força de trabalho e organizar trocas é o que prevalece. Cada coletivo tem um organograma com as funções dos integrantes e as redes de parcerias, um cardápio de serviços, para visualizar o que se tem a oferecer e facilitar as trocas, e uma tabela de horas trabalhadas. Os reais e as moedas complementares que circulam passam por um caixa coletivo e existe também um Fundo nacional, em que os coletivos que já estão estruturados investem para subsidiar ações institucionais da rede ou apoiar - em forma de empréstimo - os coletivos que estão começando.
"O xis da questão é a autogestão. Nesse sentido, o caixa coletivo, a existência de uma sede, o morar junto, o compartilhar são essenciais", diz Carol Tokuyo, do Massa Coletiva (São Carlos - SP), para integrantes dos coletivos que entraram há pouco tempo no circuito.
Para Lenissa Lenza, do Espaço Cubo, de Cuiabá (MT), o que o FdE faz é "ressignificar a lógica da economia quadrada", introduzindo a Economia Solidária como um modo de vida e um modo de gestão. "Meu trabalho é minha vida, eu não separo as coisas, isso é esquizofrenia. E o meu trabalho tem um valor. Qual é o valor do meu trabalho? Sustentabilidade não está só no fim, nos recursos financeiros, mas em todo o modo de organização e sistematização. O que é necessário? O que estou precisando? O que eu posso trocar?".
"Card", nas palavras de Lenissa, "é força de trabalho". É por isso que em todos os cantos, nos variados grupos de discussão, a necessidade de dedicação exclusiva aos coletivos era constantemente repetida. A ideia é que a dedicação exclusiva melhora o trabalho artÃstico, porque permite investimento em formação e criação, e facilita a sustentabilidade, porque há mais horas de trabalho disponÃveis para o coletivo. "Além disso, se a pessoa não ganhar ali, não vai ganhar em lugar nenhum".
Outro elemento que, na visão de grande parte dos integrantes do FdE, facilita a sustentabilidade é o financiamento hÃbrido, ou seja, do governo e da iniciativa privada. O investimento do governo na cultura é essencial, permitindo experimentalismo fora da grande indústria e corrigindo distorções em relação à distribuição de verbas e ao poder das grandes indústrias. O investimento do poder público também sensibiliza o mercado.
No entanto, "os coletivos não podem viver para sempre das empresas e das leis de incentivo", adverte Kuru Lima, da Conexão Vivo, apoiadora do Jambolada e de outros festivais espalhados pelo paÃs. Está aà uma questão que ainda é desafio para a cultura. As leis de incentivo e o fomento são um pontapé inicial para corrigir as distorções, ajudam a formar produtores culturais mais qualificados para elaborar projetos e colocar produtos no mercado. Mas como formar público, criar uma rede de casas de shows permanete, para além do circuito de festivais, e garantir a sustentabilidade sem esses agentes patrocinadores?
Outro desafio que foi colocado ao FdE, no GT de Música, foi a profissionalização das bandas e o investimento em suas carreiras, para além do circuito. Fábio Pedroza, da Móveis Coloniais de Acaju, apresentou uma proposta de parceria entre o FdE e o projeto que a banda acaba de lançar, o CBAC - Comissão de Bandas e Artistas Circulantes. "Já está na hora do Fora do Eixo dar o segundo passo, que não é só entregar um evento, mas gerar uma profissionalização das bandas e uma sustentabilidade para elas com a música. Até agora, primeiro as bandas trabalham como coletivo, nas trocas entre festivais, e menos como banda, fazendo trabalhos fora do circuito".
Ficou evidente também nas discussões do congresso que a comunicação é elemento essencial nesta busca de sustentabilidade. "A sustentabilidade só chega quando a comunicação está resolvida. Porque não adianta só produzir, tem que divulgar e fazer circular", diz Rafael Rolim, do Massa Coletiva e coordenador do Clube de Cinema. "Para convencer um patrocinador a investir, não basta mostrar a produção, mas o número de views no Youtube, o número de seguidores e amigos nas redes sociais". Isso significa ter uma boa comunicação entre os coletivos e também qualificar a comunicação que é feita para fora.
Taà mais um grande desafio. Com a maior disseminação da internet e apropriação das redes sociais, fica fácil fazer o produto circular. Mas conquistar o público nesse mercado de nicho é outra coisa. No desenvolvimento das estratégias de comunicação, a internet é essencial, como mostram os casos que estamos estudando. Mas, embora essa ideia não seja consenso, utilizar as plataformas online e as redes sociais não significa abandonar a briga por ocupação dos meios tradicionais de comunicação, tanto as rádios e TVs públicas quanto as comerciais, que precisam abrir espaço para produção regional e independente.
A sustentabilidade ambiental também foi um tema bastante discutido. Reciclagem é uma das preocupações de muitos dos coletivos do Fora do Eixo quando realizam seus festivais, como é a proposta do SWU, que aconteceu no inÃcio de outubro em São Paulo. Mas a galera do FdE acredita que a reciclagem sozinha não é suficiente, inclusive porque existe um gasto enorme de energia no processo. Coletivos como o Massa e o Difusão, de Manaus (AM), chamam a atenção para os três Rs: reduzir o consumo, reaproveitar (as sacolas do Congresso, por exemplo, eram feitas de banners reaproveitados) e reciclar.
A sustentabilidade ambiental também ajuda na sustentabilidade financeira, ao diminuir os gatos. E haja criatividade. Um dos CDs que mais sucesso fez nesta edição do Congresso foi o da banda Manolos Funk, do coletivo Vatos, de Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte (MG). Inspirados no rapper Emicida, de São Paulo (que fez um ótimo show no primeiro dia do Jambolada), os Manolos catam caixa de papelão nas ruas e supermercados para fazer as capas dos CDs. As mÃdias são gravadas no computador de casa e as informações são impressas com um carimbo. Custo de cada unidade: R$ 0,72, e o resultado vocês podem ver na foto que abre este post.
Legal, OlÃvia.
Bom ver que alguns dos pontos que eu levantei no seminário "Diálogos e Inovação" do MBA em Gestão e Produção Cultural da FGV, na mesa de Música e Novas MÃdias, encontram claramente eco nas discussões do FdE. Comentávamos ali sobre a importância das mÃdias sociais, por exemplo, para gerarem indicadores quantitativos e feedback qualitativo para o artista em geral -- sendo preciso ultrapassar a lógica da divulgação em mÃdias sociais meramente, que não contribui por si só para o amadurecimento desse processo de "desintermediação". Falamos também das leis de incentivo como pontapé inicial importante ainda e especialmente das possibilidades de troca e compartilhamento entre grupos distintos...
Oi OlÃvia, importante esta sua cobertura do evento aqui no Overblog. O tema da sustentabilidade, ecônomica e sócio-ambiental, é certamente o grande desafio do FDE atualmente para consolidar, de fato, este modelo, e que seja baseado em equidade e reciprocidade, fundamentos da econômia solidária, de forma que traga benefÃcios em todas as pontas do processo, em cada célula da rede, possibilitando a sobrevivência/sustentabilidade do modelo e de suas forças de trabalho.
Marcelo Cabral · Maceió, AL 2/11/2010 11:51É impressionante a rede de troca de trabalho que foi sendo desenvolvida pelo Fora do Eixo. Quanto mais nos informamos, mais ficamos surpresos. São muitas as particularidades culturais neste paÃs continental que aprende cada dia mais a driblar mazelas e dificuldades econômicas, polÃticas e sociais!
Rafael Lage · Niterói, RJ 3/11/2010 21:40Muito legal essa divulgação. Desenvolvo um projeto de Curriculo Global para a Sustentabilidade em escolas da Redes pública e particular de São Paulo e seu texto acrescentou muito ao meu trabalho. Muito obrigada!
Débora Maria Macedo · São Paulo, SP 4/11/2010 09:52
Precisamos mesmo debater mais a questão da sustentabilidade. O Viktor chamou atenção para uma questão que é essencial e pouco trabalhada no Brasil: a criação e pesquisa sistemática de indicadores que possam ajudar a medir o quanto a cultura contribui para o desenvolvimento do paÃs e que possa subsidiar polÃticas públicas e os modelos de negócios dos novos produtores culturais.
Débora, fiquei curiosa pra saber mais sobre esse projeto de CurrÃculo Global para a Sustentabilidade que você desenvolve. Que tal contar um pouco mais pra gente?
Muito legal sua cobertura do III Congresso Fora do Eixo ... as principais questões levantadas estão presentes aqui, de uma forma super rica e gostosa de ser apreciada!
Muito bom encontrar leituras tão interessantes sobre o Fora do Eixo aqui no Overmundo. Esta edição do #CongressoFDE reuniu não só os Pontos Fora do Eixo, mas também vários interessados em novos modelos de gestão e produção cultural.
Graças ao reconhecimento do trabalho desenvolvido por agentes externos e parceiros do CFE a rede segue crescendo a cada dia. Estamos juntos!
o recorte que você fez sobre o congresso é muito interessante/importante e foi feito de uma forma (como disse a Dani no comentário anterior) muito gostosa de se ler. a sustentabilidade é de fato o ponto chave de discussão/ação dos coletivos do FDE durante o congresso (e todos os outros dias do ano).
Caio Mota · Manaus, AM 5/11/2010 17:19Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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