Sempre fui encucado com a Ãfrica. Isso acontece por razões que partem do pessoal e extrapolam a curiosidade inerente ao ser humano. Desde bem pequeno vivia perguntando pra minha mãe como era possÃvel aquela mistura na nossa famÃlia. Ela branca, meu pai preto, meus irmãos e eu “moreninhosâ€. Nunca fui muito parecido com meus primos de um lado ou do outro. E isso, pra uma criança, é algo muito estranho.
Cresci pensando nessas coisas e comecei a desvendar o mistério da negritude através da música. O rap, o funk, o bom e velho pagode. Sons que sempre me cercaram e que traziam algumas informações das terras além-mar. Nunca soube de nada através da escola. A maioria dos professores de história só se lembra da Ãfrica graças à escravidão, triste referência. A gente cresce sem menor ligação com nosso passado e segue assim caso algo especial não aconteça.
A tal coisa especial pode vir de várias formas, em diferentes nÃveis e diversas vezes. A minha mais recente aproximação com a terra mãe da humanidade aconteceu de forma inusitada. Recebi um telefonema me convidando pra cantar na festa de independência de Cabo Verde. A data, comemorada dia 5 de julho, acaba de completar 33 anos. Uma história muito recente, e exatamente por isso, cheia de possibilidades.
Minha surpresa foi descobrir que a data era comemorada aqui no Rio de Janeiro. Sabia que existia um número considerável de Cabo-verdianos morando na cidade, mas não fazia idéia da articulação dessa rapaziada. Também não entendi o porquê, mas muitos deles estudam na Universidade Santa Úrsula. O evento aconteceu na última sexta-feira, no teatro da faculdade, onde a platéia pode assistir apresentações de dança, música, poesia e um desfile de moda.
Já havia participado de outros eventos ligados à cultura africana, principalmente festas religiosas. Mas o que torna esta festa especial é ser toda feita por cabo-verdianos para cabo-verdianos. Tive o privilégio de ser o único brasileiro a pisar no palco aquela noite, e era um dos pouquÃssimos que estavam na platéia. Cantei rapidinho, três músicas, e desci pra assistir as apresentações de Funu nu e Kuduro – que eu pensava ser exclusividade angolana.
Conforme as músicas iam tocando, nas apresentações ou nos intervalos, a platéia cantava, dançava e interagia com toda euforia possÃvel. Eu me sentia cada vez mais ignorante, não sabia quem eram os artistas, muito menos as letras das músicas ou a forma de dançar. E parecia que eu era o único a não saber de nada! Mas consegui perceber que muita coisa do que tocou lembrava música brasileira. Eram sons cheios de sintetizadores eletrônicos, timbres e levadas que cairiam perfeitamente em uma Lambada ou num Calipso. Por um instante acreditei que a ligação entre Brasil e Cabo-Verde acontecia por uma ponte que passava pelo Caribe.
O desfile de moda foi um dos pontos altos da festa. Os modelos, homens e mulheres, causavam frisson! Não eram profissionais, mas amigos do pessoal que estava ali na festa. E essa foi a grande fórmula de sucesso do evento. Eram eles por eles, e pronto. A noite foi coroada com a apresentação de uma banda (deixei escapar o nome, não tinha pretensões jornalÃsticas naquela noite) formada pelos organizadores da festa. A platéia cantava as letras em coro. O show começava no palco e invadia o teatro inteiro.
A última surpresa surgiu no repertório deste show de encerramento. Em meio a uma variedade de sons os músicos atacaram com um fado. Talvez tenha sido o tal fado a música mais festejada da noite. Confesso que era a última coisa que esperava escutar naquela festa. Mas a situação me fez lembrar que a nossa ligação com Cabo-Verde tem a colonização portuguesa como ponto comum. No fundo, no fundo, vivemos nesse caldo cultural no qual não se sabe muito bem quem influenciou quem. E a abertura pra esse diálogo é a grande graça
No fim das contas, com fado e tudo mais, percebi que a independência comemorada ali ia muito além da polÃtica. Era a festa de uma galera muito bem resolvida. Que enxerga o Brasil como referência e oportunidade para uma formação bacana, mas que de tempos em tempos alimenta suas raÃzes. Sem crise, sem cerimônia. É independência sem morte, pele preta sem corte, cintura sem porte, mais talento do que sorte.
João, mais uma bela colaboração, parabéns. Que experiência maravilhosa deve ter sido essa festa! Teu texto me fez lembrar de outro postado por aqui que descreve uma festa parecida (aà na tua Baixada, ainda por cima!). Quando fui buscá-lo, me dei conta que a tag cabo-verde é repleta de coisas boas aqui no Overmundo. A tua colaboração ajuda a deixá-la ainda mais rica. Por favor, divulgue os novos eventos do pessoal de Cabo Verde na Agenda, quando souber!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 10/7/2008 14:52
Que legal fado misturado com música brasileira. E esse diálogo aberto e rico. Sem crise, sem cerimônia.
João,
O relato da experiência ficou muito legal. Acho que todo mundo ficou curioso.
Abs,
Muito boa intervenção, legal o volume de informações,
abraço
andre.
Isso é cultura, o resto é blá...blá...blá...
Afoice.
João,
Muito bacana o teu relato, principalmente, pela sua aguda sensibilidade para com aquelas coisas que você assume como dizendo respeito, mesmo difusamente, à s suas próprias origens, esta Ãfrica imprecisa que temos dentro de todos nós.
Acho que todo mundo aqui já sabe (ou pelo menos intui) as razões que tornam a cultura africana uma referência tão perto e, ao mesmo tempo, tão apartada de nós. Este sentimento ruim, parecido com aquele dos que não conheceram, de nem de fotografia, o pai, a mãe, um avô ou uma avó, uma linhagem inteira da famÃlia, uma sensação de não pertencimento, bem desagradável.
O fato é que eu que, por acaso, por paixão ou razão de ofÃcio, lido e trabalho com estas coisas direto e há muito tempo tenho falado muito com gente de lá de Cabo Verde, onde o Musikfabrik está iniciando uma parceria na área da iniciação musical de crianças.
Este seu post me animou a falar sobre a cultura de lá, que tem entre outros fatores, similaridades enormes com a nossa música popular (o chorinho daqui tem tudo a ver -tirando umas filigranas de compasso- com certas músicas da Cesária Évora, não sacou não?).
Acho que aqui no Overmundo se devia falar mais da cultura africana, como se diz, lusófona, facilmente relacionável com a cultura do Brasil. Já fiz isto aqui em outras oportunidades com o Kuduro e sou bem insistente a este respeito.
É que eu acho meio paranóico este apartamento, este distanciamento que mantemos da cultura africana, baseado numa hierarquizição de valores culturais bem babaca.
A necessidade de assumir esta Ãfrica imensa que reside em nós, é uma urgência cada dia mais presente na alma do Brasil.
Acho que este foi o melhor que você nos transmitiu com a sua matéria. Esta sensação de melancolia, de Fado, de Choro.
Abs
Mai uma bela colaboração..
Votado e aplaudido de pé!!!
João: acho que já contei isto por aqui, mas fui procurar e não encontrei: em 1995 eu trabalhava num quadro chamado Na Geral, exibido no Fantástico - Cesária Évora estava vindo tocar pela primeira vez no Brasil, no SESC-Pompéia - eu era fã de Cesária, fomos lá gravar uma entrevista - descobri que ela era fã da Ângela Maria (de quem também sou fã, é claro) - levamos a Ângela Maria conosco - foi um encontro maravilhoso, Ângela Maria tinha levado um poster, autografou e deu para a Cesária - anos depois fui para Cabo Verde gravar o Além-Mar - chegamos na casa de Cesária, em Mindelo, e lá estava o poster da Ângela Maria, emoldurado, em lugar de destaque na parede da sala de jantar - esses laços culturais são bem mais fortes que imaginamos!
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 13/7/2008 22:31
lembrei desta resenha que fiz para a revista Bizz, de fevereiro de 1988 (quando ainda existia Zaire, sob a ditadura terrÃvel de Mobutu Sese Seko - hoje é República Democrática do Congo - aliás tempos depois, mas ainda Zaire, andando pelas ruas de Kinshasa, cidade com a melhor vida noturna que já tive a oportunidade de conhecer, meu guia local me apontou: "olha lá, aquela é a rainha do Congo" - era uma senhora normal, sem pompa ou circunstância - pensar que sua familÃa nobre já mandou naquelas terras todas...):
"Tambores da Selva - Clube SÃrio-Libanês (RJ) 28/11/87
A Semana Brasil-Zaire foi um acontecimento quase secreto. Os jornais estavam muito atarefados com Sting e o FestRio para se preocupar com um paÃs africano que ninguém sabe direito onde fica. Pior para os leitores. Junto com um festival gastronômico que incluÃa petiscos como carne de jacaré e javali, desembarcaram no Rio alguns dos músicos mais populares de toda a Ãfrica: o cantor Tabu Ley Rocherau e o grupo Langa Langa Stars. Eles deram um show apoteótico no clube SÃrio-Libanês do Rio, de graça, infelizmente visto por pouquÃssimos brasileiros.
Tabu Ley, o "senhor Rochereau, comanda a cena musical de Kinshasa, capital do Zaire, desde os anos 50, tendo lançado mais de cem LPs. Mas sua influência não é só local. Seus discos podem ser encontrados em Bamako, no Mali, ou em Harare, no Zimbábue, e suas apresentações lotam qualquer ginásio africano.
Não é para menos. O som de Tabu Ley é um convite irresistÃvel à dança e o show é uma lição de entretenimento. A banda do senhor Rochereau, que veio completa para o Brasil, tem catorze músicos, sem contar quatro dançarinas e uma cantora. As três guitarras são os instrumentos principais e seus solos são sempre acompanhados pelas evoluções das dançarinas, cuja sensualidade faria corar de vergonha qualquer passista de escola de samba.
Os cinco cantores do Langa langa Stars, apelidados pela imprensa francesa de Beatles zairenses, não deixaram o público quieto mesmo tendo subido ao palco depois de Tabu Ley. Suas danças também são altamente safadas e a música, apesar da banda ter sido formada em meados dos anos 70, é muito parecida com a do velho mestre Rochereau. Aqui não importam as inovações. O objetivo é fazer todo mundo se requebrar, durante o maior tempo possÃvel.
O soukous, a música elétrica do Zaire, é assumidamente funcional. As bandas atuam sempre como conjuntos de baile - não exigindo uma atitude respeitosa da parte do público. Quem sai por último é quem está no palco. Depois de cinco horas de dança, eu deixei o SÃrio-Libanês com Tabu Ley novamente no palco. Nas outras vezes que saà de um show pela metade era sinal de protesto. Desta vez, meu gesto tinha um significado diferente: eu estava plenamente satisfeito."
lembrei do show do Tabu Ley também porque o SÃrio-Libanês fica ali em frente à Universidade Santa Úrsula... o tempo não pára?
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 13/7/2008 23:15outra coisa: o soukous também é conhecido como rumba zairense - nos anos 50 os músicos de Kinshasa chegavam a cantar em espanhol para imitar Ãdolos cubanos que ouviam nas ondas curtas dos rádios - depois a música elétrica africana influenciou a música caribenha dando no zouk de Guadeloupe e da Martinica, que por sua vez influenciou o funaná cabo-verdiano dando até na tarraxinha de Angola, num vai e vem constante pelo Atlântico Negro (já escrevi sobre isso neste texto) - mas talvez o Caribe tenha atuado sempre como mediador principal, não só entre o Brasil do Calypso e o Cabo Verde pós zouk...
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 13/7/2008 23:27
Como bem diz o velho Hermano, a perenidade destes fluxos culturais (muito mais musicais, é verdade) são evidentes demais para serem subestimados.
No caso desta Salsa (ou rumba) Zairense as pessoas sempre se surpreendem com a sua cubanÃssima estrutura e nem se dão conta de que a música cubana (e a caribenha por extensão) é que veio de lá, muito tempo atrás, com escravos congoleses. Neste vai e vem constante, o que parece novo é velho e vice versa nesta absoluta relatividade que a música (pelo menos a popular) tem.
Só pra enfatizar, acho que este toque panorâmico do Hermano, é mais uma força para a gente colocar mais em foco (olhar mais fixamente, digo) a relação da música do Brasil com esta Ãfrica universal (muito além dos samba-shows, dos reagae musics e dos calypsos).
Voltar a ouvir a Ângela Maria cantando para Babaluaê na Rádio Nacional já seria um bom começo. O vice e o versa reais em lugar das versões pra inglês ver.
Abs
Quanta informação! Muito bom o texto ter incitado essa dinâmica tÃpica do overmundo.
Não sei se tenho muito mais a acrescentar, mas lembro de ter trabalhado em um levantamento que envolvia ocorrências de Ãfrica em alguns dos maiores jornais brasileiros. Em seis meses de pesquisa encontramos cerca de 10 citações ao continente. Todas essas referências tratavam de questões de saúde pública (basicamente epidemia de AIDS) e confusões polÃticas.
A impressão final que tivemos é que nada acontecia do lado de lá do Atlântico. O que acontece e chega até nosso conhecimento é pautado pela tragédia.
Diante desse vazio que é construÃdo, não só pela história, mas também no dia-a-dia por essa dinâmica do jornalismo, a música surge como o grande canal de diálogo. O único caminho pelo qual a gente ainda bate uma bola redonda com essa região tão importante pra formação da nossa identidade.
Ainda acho que é muito pouco, e tudo feito pela via da informalidade ou por ações pontuais. Mas já é um caminho.
Justiça seja feita, além da música, o cinema também vem abrindo espaço pra essa conversa. Participei da primeira edição do Cineport, festival de cinema de paÃses de lÃngua portuguesa.
É um festival que merece mais atenção do que geralmente recebe.
Xavi maravilha de texto!
Aqui em Maceió existe uma comunidade de Cabo Verde e outros paÃses africanos de lÃngua portuguesa, como Guiné-Bissau e Angola, também estudantes da Universidade Federal de Alagoas. Já fui a duas festas, muito legais, dessa turma, e me senti como você descreve, como se fosse eu o estrangeiro ali, me divertindo muito com toda aquela novidade, aquela sonoridade diferente, mas parente.
Muito bom. Abraços!
Surpresa total esse encontro com Cabo Verde!
A cidade guarda cada surpresa....
Além de uma ótima matéria, você uma excelente reflexão sobre essa questão racial.
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 15/7/2008 14:56
Pra quem ficou ligado no assunto, aqui um artigo bem completo sobre a música de lá.
Abs
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