Por favor, não me abandonem que o assunto é grave:
A cidade de Santana do Jacaré, onde vivi a infância, e que tem perto dos seus cinco mil habitantes, já recebeu outros caminhões como aquele, do "Revelando os brasis", que numa tardezinha quente de inverno, fixou-lhe, na praça de frente à Igreja do Rosário, no último primeiro de junho, um telão enorme de cinema. Ali mesmo, mas atrás e não na frente da igreja, já apearam, antes, caminhões com variados divertimentos: rodas gigantes, chapéus mexicanos, escorregadores; ou grandes tendas de lona, que encobriam picadeiros com leões, engolidores de fogos e atiradores de facas, mulheres barbadas, palcos de teatro, choros, pipocas e risos.
E, sua própria população, repetidas vezes, a presenteia: ao manter, por muitos carnavais, a andança medieval de sua Cavalhada, com seus mouros, damas e contradanças; nas festas de Congada, ao longo dos anos, com a beleza de seus Ternos de Vilão e Moçambique, que tem os estandartes, os cantos e as danças em honra de Nossa Senhora do Rosário, Santo Expedito e Santa Ifigênia; e também com a animada festa de Nossa Senhora da Aparecida (em outubro, quando o número de pessoas na cidade triplica), na qual se encena o encontro da santa no rio Jacaré, pouco depois da romaria, e antes das barracas que se espalham, cheias de novidades. Cá entre nós, desconfio que se a cidade continua cidadezinha, é antes por birra, querendo ser sempre jovem, do que por falta de vocação.
Tudo bem, não ter cinema é falta gravÃssima, e Santana o sabe, porque já o teve; como provam a memória de minha mãe dos filmes mexicanos, e também um cartaz de 1962, anunciando, entre outras, uma pelÃcula de Fellini. Mas o feito inédito, e realmente grave, que o caminhão do “Revelando os Brasis†trouxe pra essa cidade-menina, é que o filme que ele anunciava em breve passar, e que todos achavam ser um retrato, o curta-documentário “Daqui nóis não arreda o péâ€, tirado dela, por um de seus filhos, Jairo Teixeira dos Santos (no caso, meu irmão), acabou por revelar-se, ao fim das contas, e pra seu regalo, um espelho de oito metros de largura e cinco de altura.
Talvez, o filminho dirigido pelo Jairo, durante suas andanças em terras alheias, ao longo de dois anos, seja no festival de BrasÃlia, Tiradentes, Vitória, e em outras tantas exibições pelo Brasil, assim como no México, Argentina, França e Alemanha, tenha se mostrado, nelas, apenas assim, um retrato da cidadezinha mineira, que granjeou suspiros e fez levantar hipóteses de parentesco, mesmo com cidades maiores, por conta das caracterÃsticas da retratada.
Porém, como é função de todo espelho, na sua auto-exibição, ao ver suas múltiplas imagens, que vinham da luz daquele caminhão-projetor, a jovem cidade pôde vangloriar-se do charme de suas próprias cores e seus próprios trajes, mas também se assustou e soltou um grito surdo ao ver em tamanho ampliado uma cicatriz em seu rosto, de certo, resultado de uma grande traquinagem.
Pensávamos todos, em casa, na possibilidade desse susto, e o aguardávamos. E, o Jairo, tentando afoguear a ansiedade, me chamou pra tomar uma pinguinha. Também a equipe de gravação do filme, a Luciana, o Ivan e a Michelle, assim como a equipe da Marlin Azul que acompanhou o caminhão, Beatriz, Gabriela, Felipe, Rogério e Jaqueline, pressentiam. E, pasmem: a própria Santana do Jacaré já ansiava por isso.
Na escola, as aulas da noite foram suspensas e cartazes sobre o evento foram afixados. Vindas do cabeleireiro, as personagens do filme, a dinha Tonha e a dinha Aparecida, desejaram, de tarde, que muitas pessoas aparecessem na projeção noturna, e pra isso era preciso um grande anúncio. Assim, mal entraram em casa, já foram ouvidas, sei lá por quais forças e de que modo: a motocicleta do moço Alceu, munida de um alto-falante, gritava, aos quatro ventos, algo mais ou menos assim: “hoje, as dezenove e trinta, venham todos assistir ao filme das irmãs Antônia e Aparecida Teixeiraâ€. E, se digo mais ou menos, é porque o Jairo e eu não vimos e nem ouvimos a moto, só ficamos sabendo depois; porque, no momento, estávamos tentando apagar o fogo que a pinga trouxe, lavando o rosto nas águas do rio Jacaré.
Pra quem não sabe, a cicatriz, que seria revelada na face da cidade-menina interiorana, eram os maus tratos com que parte de sua população vinha tratando as duas senhoras idosas, Tonha e Aparecida (no caso, nossas tias, por parte de pai, e também madrinhas). Daà o tÃtulo do filminho-espelho, “Daqui nóis não arreda o péâ€, que, enquanto rolou, à s vezes direta, e outras indiretamente, deu nome e endereço de seus algozes, que as atacavam com pedras, xingamentos, risadas e outras sortes de desmerecimentos. Por serem elas mulheres-fortes-negras-caboclas que, solteiras-de-pés-descalços, ainda ousam plantar, sorrir e se auto-sustentarem? - Da delação, vinha o receio.
As duzentas cadeiras, trazidas pelo caminhão, logo foram ocupadas. Mas se o cinema era ao ar livre, logo o público era quatrocentos, depois quinhentos e (não contamos) quem sabe tenha beirado os seiscentos, que ocupou também os três longos degraus da Igreja do Rosário e todos os cantos da praça. Creio eu que só não foi quem estava acamado, ou com medo do frio, os que não queriam ver cicatriz alguma, ou os que não tiveram coragem de abandonar as novelas cariocas.
A lua tava cheia. E o céu compôs com a praça um “jardim de estrelasâ€, como diz a letra de Sérgio Pererê, músico que cedeu a trilha “Pedra que voa†pro filme. Entremeio à s cadeiras, um longo tapete foi estendido, e, lá, antes da exibição, a dança e a música das belas moças e dos puxadores do Terno de Vilão, mais o canto sertanejo local de Geraldo e Paulinho, encantaram. Por fim, foram apresentados os realizadores do “Daqui nóis não...â€, seguidos, momento alto e belo, das irmãs Antônia e Aparecida Teixeira.
Até que o caminhão-projetor mostrou a que veio. Silêncio. Das sete horas gravadas que eram agora quinze minutos, tomou-se o cuidado, na edição, de não se revelar nenhuma criança que tenha jogado pedras nas dinhas, ou que sabiam do caso; optou-se, bem no inÃcio, pela tela sem imagens, apenas com os depoimentos delas (na verdade, uma balbúrdia de vozes, que mais parece uma brincadeira). Mas o espelho revelou-se lÃmpido até mesmo no escuro e uma criança do meu lado disse pra outra: é você quem está falando. E a outra retrucou: agora foi você. Elas também depunham que as tias sempre revidavam, jogavam pedras, corriam atrás... e as tias, também ao meu lado, disseram: jogávamos mesmo. As imagens entraram e dedos ao redor da praça apontaram: olhem aquele lá, olhem aquele outro.
E o grito de susto da cidade-menina veio, quando a Igreja do Rosário, tão simples e bela, viu-se ao lado de si mesma, refletida quase em tamanho natural.
Enfim, obrigado por não terem me abandonado. Depois da exibição do curta santanense, foi a vez de mais filmes do sudeste brasileiro, o “Brilhantinoâ€, de Ériton (E.S), “Vidaâ€, de Eduardo (M.G.), “A história de Delinhoâ€, de Flávio Antônio (M.G.), “O sonho de Lorenoâ€, de Alana Rosa (E.S.) e o “documentário sobre Chico Abelha†(S.P), de Uiara. E o “Revelando os Brasis†mostrou-se, em cada um deles, um grande desejo de reconhecimento de outros modos de vida e da beleza que difere, da voz com modulações diversas, e da velhice ao lado da infância, clamando por respeito. Eram belos, mas terminando a terceira exibição, boa parte dos espectadores já se recolhia, fato que pode ter respostas várias: desde o prosaico costume do interior de ir dormir cedo; passando-se pela constatação de que em se tratando de cinema ao ar livre, então, nada mais simples que abandoná-lo, sem muitos constrangimentos.
Mas eu prefiro ficar com a hipótese de meu irmão Jairo, sobre a vaidade da cidade-menina. Ela, provavelmente, estava embevecida de si mesmo e, por isso, preguiçosa de ver imagens que não fossem as suas. Era necessário, talvez, ir embora, pra repensar suas vozes e andados, já que o cinema-espelho falava e movimentava-se. Meu outro irmão, Claudiney, concordou dizendo que Santana jamais será a mesma.
Mudando o assunto, termino com uma frase da dinha Tonha, que, durante a exibição, duvidando do que ela própria depôs de frente a câmera, comentou (calando fundo na maior verdade sobre o cinema e toda tentativa de reconstrução da realidade): “Na verdade, essa coisa de cinema é tudo uma grande mentirinha, né?â€
Santana do Jacaré, junho de 2007.
Oi Rinaldo,
Sugiro dar uma "arejada" no seu texto abrindo linha em branco entre parágrafos. E que tal uma imagem?
Abraço!
Muito legal seu texto. É muito boa a sugestão do Egeu: vai torna-lo mais legÃvel.
Tem outros textos sobre o Revelando os Brasis aqui no overmundo e seria bem legal você acrescentar a tag revelando-os-brasis, para que seu texto fosse linkado aos outros. Isso também facilita a busca no site ou em outros sites, como o google.
Oi Rinaldo, bem interessante esse retrato de Santana do Jacaré. Fiquei curiosa pra saber o porquê da perseguição as suas dinhas - creio que no interior há mais respeito pelos mais velhos, detentores da história oral das cidades, seus causos, seu folclore...
Bom, concordo com as sugestões do Egeu e da ilhandarilha, e gostaria de dar uns toques mÃnimos para uma revisão sua do texto. No lead, confesso não ter entendido por que vc colocou "onde crescemos" - pensei, eu, leitora? Afinal, vc apela ao leitor antes para que não o abandone. Só lá pro meio que entendi que falava de seus irmãos. Que tal deixar "cresci"? Também senti falta de acentos ("... de frente à igreja" e "a jovem cidade pôde vangloriar-se"). Bobagens, nada que comprometa a qualidade do seu texto. como falei, são pequenos toques.
Abraço.
Outro toque: na parte "Das sete horas gravadas que eram agora quinze...". Faltou: "quinze minutos". Ou estou errado?
No mais, caro Rinaldo, saiba que gostei muito do seu texto. Mesmo sem foto e com problemas na edição, ficou muito Ãntimo, gostoso de ler e bem-escrito, sim. Claro, se consertar tudinho e postar uma fotinha vai ficar bem melhor. Agora, o principal não nos foi oferecido: por que as senhoras são perseguidas?! Fiquei preso do inÃcio ao fim da leitura e quase me descabelei ao não obter a resposta. Pior, após a leitura, surgiram mil e uma possibilidades de preenchimento das lacunas, teorias etc...
Abraços!
Aê! Ficou bem bacana agora.
Ilhandarilha · Vitória, ES 15/6/2007 19:31
Rinaldo
A cada dia me surpeendes mais com sua inteligencia.Continue assim, sempre crescendo.
bjs
Realmente,é de tirar o chapeú. A vc,por não deixar que toda essa cultura,esse folclore das nossas Minas desapareçam!! Parabéns,amigo.Vc me orgulha!!
bjo
Rinaldo,
Há algum tempo que leio seus escritos e sempre me emociono muito com o modo como você escreve. Neste texto, delicioso, você conta a culminância de uma luta contra uma grande injustiça. Você usou a palavra ( em Leo, o pardo) e a imagem em "daqui nós não arreda o pé" e torceu bem torcido o pescoço do preconceito. Bom demais isso. Conheci a Tonha e a Aparecida no filme e me apaixonei por elas. E me revoltei com as maldades que fizeram com as duas.
Parabéns pelo texto e por toda a luta até chegar ao cine-espelho!
Beijo
Bena
Gostei muito do texto, retrata muito bem nossa cidadezinha do coração!!!
Ester zinha · Itupeva, SP 16/6/2007 20:24
Este texto realmente é demais ,
você escreve muito bem ,desejo de coração
muito sucesso e parabéns por suas conquistas.
gostei muito do texto que pena que eu não pude estar lá
MOMES · Itupeva, SP 16/6/2007 21:09
Rinaldo você é mesmo muito inteligente,
escreve muito bem ,este texto de Santana é bem a cara
de lá ,queria muito estar la neste dia ,até imagino como ficaram as dinhas ,parabéns pelas conquistas ,vc vai longe cara.
Rinaldo
Você convida a todos para o cinema na praça e mais uma vez a paixão pela "tela" entra em cena na sua escrita. Desde a sua participação/premiação no Concurso Literatura para Todos que admiro o seu lidar com o texto e a vida.
Parabéns!
Ira
Rinaldo,
parabéns mais uma vez por seu texto, no qual a ficção e a realidade andam de mãos dadas, embaralhadas. A gente lê como se fosse uma reportagem, ou uma crônica, na qual o artifÃcio literário entra de permeio, escondendo-se, sem fazer alarde de sua presença, mas estando ali, na manipulação sincera e bonita da linguagem. Parabéns, Rinaldo.
Abraços, Heitor
Oi, Ri! Só vi agora porque estava viajando com o Nathan (natação). Achei lindo! Parabéns!!!
jteofilo · Campo Belo, MG 17/6/2007 20:58
Beleza!
O relato/crônica brinca de gangorra com a prosa/poesia. Gostei!
BelÃssimo texto, Rinaldo, parabéns. Vi o filme e gostei muito, mas saber como foi a recepção na cidade por meio de um texto tão singular deixou a coisa toda ainda mais saborosa. Tô adorando ver o mosaico de textos sobre o Revelando os Brasis se formando de modo tão difuso. Obrigada por compartilhar e espero que você continue nos contando coisas bacanas sobre as cidades mineiras. Abraços
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 18/6/2007 14:01é isto aà Primão adorei...sou supeita de falar....mas quando là foi como se eu estivesse lá na praça como telespectadora...vá em frente...talento vc tem e muito!!!! parabéns D.Rita
RICASA · São Paulo, SP 18/6/2007 17:13
Ri,devo confessar que no dia em que me mandou o texto não o li por inteiro,votei antes.Só hoje sentei e o li com calma,e,coisa mais boa,veio á boca o gostinho das nossas cidades.É lindo.Me fez lembrar da foto da negrinha de vestidinho rosa,que corria atras do pai na praça de Campo Belo...vivência lúdica.Ai de mim que vivo longe,mas também como você e nosso Drummond,carrego as Minas junto com a gente.
Saudades muitas,beijos...
Marcinha.
Parabéns pelo seu texto.Tive o prazer d epassar por Santana do Jacaré quandoe stava à caminho de Tiradentes .
carol de trancinhas · BrasÃlia, DF 25/7/2007 02:39Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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