"Não estude música. Ser profissional de música no Brasil é fogo. Aqui é muito difÃcil. A não ser que você tenha dinheiro para fazer disso um hobby. Começa que pra você entrar para a escola de música tem que fazer vestibular. Como se fosse para medicina ou qualquer outra coisa. Depois, tem que aprender um instrumento, estudar oito horas por dia, e aà não se tem tempo para mais nada. Aqui, só se pode fazer isso por diversão."
Esse depoimento foi tirado de uma entrevista de Radamés Gnattali. Pode ser lido na internet desde a recente inauguração do site www.radamesgnattali.com.br, neste ano em que se comemora o centenário do compositor e arranjador. A pergunta dizia respeito ao conselho que ele daria a quem está começando na música, numa entrevista concedida ao Pasquim, em 1977 (que pode ser lida na Ãntegra na seção Ãlbum de recortes).
É desanimador. Pode até ser verdade. Mas antes de chegar a conclusões precipitadas, conversei com Roberto Gnattali, sobrinho de Radamés e coordenador do site, para entender melhor o contexto em que o depoimento se insere.
Roberto explica: “Dizem que Radamés tinha mau-humor. Na verdade, acho que ele ficou triste com o sistema. Ele era muito sensÃvel, trabalhou demais, de graça demais, acreditou demais em todos e foi muito sacaneado a vida inteira. Seu projeto no rádio (se é que podemos afirmar que Radamés tinha um projeto consciente desse tipo) fracassou, basta ouvir as rádios de hoje. Assim como fracassou o projeto de Villa-Lobos de musicalizar as crianças do Brasil. Veja o que é o ensino de música nas escolas, hoje. Esses grandes homens, nossos mestres, quando falam uma coisa dessas é uma barbaridade, a gente fica desestabilizado. Mas isso não quer dizer que Radamés tenha nos abandonado, pelo contrário, sempre esteve, até perto de morrer, atuando com gente jovem, acreditando no trabalho, dando força para a juventude. Essa declaração dele foi sincera e muito boa pra que a gente se toque da situação, a que ponto chegou, ou que deixamos que chegasse. Não tem mais Radamés, não tem mais Villa, não tem mais Tom, nem Darcy, nem Barbosa Lima Sobrinho, e tantos outros. Agora é com a gente e, principalmente, com a gente que vem vindo.â€
(Parênteses: esse tipo de depoimento como o do Radamés sobre “fazer música†provavelmente já foi ouvido por gente de todas as profissões. Eu mesma, quando decidi fazer comunicação, ouvi de vários jornalistas: “Não faça jornalismo!†E eram os mais apaixonados, em geral também os mais desanimados com a situação. Fecha parênteses!)
Definitivamente Radamés não abandonou os jovens. Já mais velho, por exemplo, foi um grande incentivador da Camerata Carioca, grupo criado em 1979 por jovens como Raphael e Luciana Rabello, Mauricio Carrilho e LuÃs Otávio Braga.
O contrário também procede: os jovens nunca abandonaram Radamés. Li o depoimento do compositor no dia seguinte à minha ida ao pocket-show/coletiva de dois músicos que, possivelmente, ele incluiria na categoria "jovem". E hoje o homenageiam. Caio Marcio tem 25 anos. Marcos Nimrichter, 36. O primeiro toca violão à beça, foi aluno de Hélio Delmiro, integrou o grupo de choro Tira Poeira e é habituê de rodas de choro. O segundo é professor de piano na UFRJ, já tocou com um monte de medalhão da MPB e, depois de se formar, começou a se arriscar no acordeon (hoje acaba sendo mais chamado para tocar este último do que o piano). Ambos fizeram faculdade de música, lugar onde hoje em dia Radamés é uma referência forte (o que não deixa de ser engraçado quando se pensa no tal depoimento). São intérpretes e também compositores. Para completar o painel das coisas em comum, eles têm discos-solo lançados por uma gravadora – coisa cada vez mais rara no mercado fonográfico, ainda mais quando se fala em música instrumental – a Biscoito Fino.
Como Radamés, os dois circulam bem pelos intrincados afluentes que ligam os rios da música popular e da erudita (pelo menos o que se convencionou chamar de erudito). E agora se juntaram em duo, que dedicou o primeiro trabalho ao mestre: o disco “Radamés em Companhiaâ€. Aproveita o bom momento do centenário, mas, mais do que é isso, é uma escolha natural para um duo recente e disposto a fazer as combinações possÃveis entre violão/piano/acordeon/guitarra – convenhamos: não é tão simples encontrar um compositor que caia tão bem em todas essas formações.
Radamés deve ter dado o depoimento lá de cima num momento de extremo pessimismo. Na seção Auto-biografia do site há trechos muito interessantes contando a exploração do trabalho nas rádios, o não-reconhecimento do arranjador, a tristeza de não conseguir tempo para estudar piano e ser concertista. Mas nem tudo é negativo na sua fala. Há comentários bem-humorados e/ou irônicos e contradições animadoras, como quando diz:
"Sempre me interessei muito pela música popular, talvez já pensando no futuro. Dizem que isso é premonição, não é?"
Ou
"Nunca me frustrei em fazer música popular, faço isso com todo o prazer... Se eu tivesse ido à Europa, poderia ter sido um grande pianista, mas nunca seria um compositor brasileiro".
O Brasil agradece. Caio, Marcos e um monte de músicos das gerações seguintes, sobretudo. No ano do centenário, Marcos viveu intensamente a obra do compositor. Solou o concerto para acordeon e orquestra. Participa do Novo Quinteto e com ele gravou outros dois discos que saÃram este ano em homenagem à efeméride: "Radamés Gnattali 100 anos" e "Radamés e o Sax" (acompanhando o saxofonista Leo Gandelman). Em “Radamés em Companhiaâ€, o duo dosou reverência e ousadia para criar arranjos e formações muitas vezes inusitados para obras do mestre.
A escolha do repertório já diz muito do contraponto erudito/popular que tanto marcou a vida de Radamés: estão lá peças complicadas como os Estudos n 5 e 7 para violão (naturalmente aqui não só no violão), mas também a carimbada "Valsa Triste" e o choro "Pé de Moleque". A "Companhia" do tÃtulo se refere à gravação de obras de compositores que influenciaram, foram influenciados e/ou conviveram com o homenageado. Dessa salada saem "Batuque", de Ernesto Nazareth, é para piano solo e aqui é executado pelo violão de Caio; "Perfume de Radamés", de Guinga e com participação luxuosa do próprio; "Sonoroso", o choro clássico de K-Ximbinho em que usam e abusam da improvisação. A única faixa em que a partitura é reproduzida ipsis literis é "Invocação a Xangô". Por quê? "Porque ela foi escrita para piano e guitarra. Contempla a formação que fazemos. Então não foi preciso mudar nada", explica Caio.
Para Radamés nem sempre foi fácil conviver com o estranhamento causado por sua mobilidade entre os dois tipos de composição.
"Eu gravei um disco na Continental, de música popular, com orquestra, e um crÃtico disse que o disco estava muito bonito, mas que eu tinha levado, um pouco, para o lado clássico. Porque eu não tinha colocado o que todo mundo estava acostumado. Quando eu toquei pela primeira vez o Concerto Carioca N. 1 com a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, com o Morelembaum dirigindo [maestro Henrique Morelembaum], o pessoal comentou: "Ih, no Municipal até samba estão tocando agora". Hoje, graças a Deus, não tem mais isso."
Os tempos são outros e hoje não é só erudito e popular que estão embolados. É praticamente tudo.
Marcos explica: "A gente é de uma geração que aprende música popular no colégio, na faculdade. Na época dele havia uma barreira. Talvez por isso ele pudesse ser visto como um compositor hermético. Ficar nessa fronteira podia ser perigoso, porque fazia com que músicos eruditos rechaçassem a obra e os populares não se aventuressem a tocar." Caio completa: "Hoje não é tão complicado, não sofremos com isso. Mas sentimos do mesmo modo uma dificuldade em colocar nossos discos-solo numa prateleira especÃfica das lojas de CD."
***
Obs 1: Se você gostou de ler esses trechos de depoimentos do Radamés por aqui, não deixe de entrar lá no site oficial. Os comentários sobre bossa nova também são sensacionais, bem como as fotos e trechos de partituras. Há ainda um CD-Rom com material semelhante ao do site que pode ser solicitado gratuitamente por instituições musicais. É só falar com o Roberto Gnattali pelo email robgnattali@terra.com.br.
Obs 2: Muito bom o formato de coletiva que a Biscoito Fino adotou nesse caso: a dupla ia tocando e conversando com os jornalistas, explicando as opções, destacando detalhes dos arranjos antes da execução... Ninguém parecia lembrar que estava ali a trabalho.
Parabéns pelo texto, Helena.
Fico feliz em saber que existe gente se dedicando à obra de Radamés e, consequentemente, reconhecendo a importância daqueles que trabalham duro nos bastidores, no dia a dia, longe do estrelismo e da exposição excessiva tão frequente na atualidade.
Fugindo um pouco do assunto: só gostaria de lembrar aos leitores que a situação da edução musical no Sudeste do paÃs é, provavelmente, bem diferente da que encontramos aqui no Nordeste. Quando Marcos explica: "A gente é de uma geração que aprende música popular no colégio, na faculdade.", ele se refere, obviamente, à realidade da região em que ele vive. No Nordeste ainda há muito o que se fazer. O ensino musical institucional ainda é, em grande parte, voltado para a música européia. Existem, no entanto, as honrosas exceções, como o caso do bandolinista e professor do Conservatório Pernambucano de Música, Marcos César, que vem contribuindo para criar um nova geração de instrumentistas aptos a trabalhar com a linguagem do choro e do samba. Ele formou inclusive o Sexteto Capibaribe que já intepretou a SuÃte Retratos, de Radamés.
É isto! Parabéns pela iniciativa!
(O site de Radamés e ótimo! Vale a pena dar uma olhada.)
Valeu, Caçapa! Na verdade, achei que esse comentário do Marcos mais genérico mesmo... Acho que ele quis dizer que hoje nosso envolvimento com a música popular é mais natural, mesmo nessas instituições... Não é de hoje, por exemplo, que cai letra de música na parte de interpretação de texto do vestibular. De qualquer modo, entendo o que você fala em relação às faculdades. Por aqui já há cursos de música popular dentro delas, mas são relativamente recentes. Abraço!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 28/11/2006 15:58Oi Helena, parabéns o txt está ótimo. A Bienal de MT foi extraordinária, inclusive no sábado teve uma peça do Radamés executada pelo grupo Ãgua de Moringa, Seu Ataulfo. Foi maravilhoso. O artigo/resenha q eu postei tem algumas fotos se vc tiver interesse depois passa por lá. Ah, no site da Bienal MT também tem algumas peças de música contemporânea q estão demais, um tanto pesadas pra baixar, mas vale a pena. Abraços.
Claudiocareca · Cuiabá, MT 29/11/2006 17:28Helenita, o texto está ótimo! Tanto a linha de raciocÃnio, qto as citações de Radamés, as associações históricas diretas e indiretas, a tom espirituoso e os parênteses! Vou conhecer os ite agora! Bj, Gabriela
Gabi Almeida · Rio de Janeiro, RJ 1/12/2006 01:50Parabéns, Helena, pelo viés encontrado e obrigado pelo espaço que nos foi dado. Quanto ao comentário do Caçapa, esclareço que realmente falo a partir da minha experiência pessoal, em lugares onde estudei e lecionei a chamada música popular dentro de escolas e universidades, como a UFRJ, a Escola de Música de BrasÃlia, a Oficina de Música de Curitiba, o Festival Internacional de Música de Natal, , a UFG(Goiânia), além de vários outros locais. Sei que ainda está longe do ideal, mas sei também que é bem diferente do que era na época do Radamés. Um beijo!!
Marcos Nimrichter · Niterói, RJ 1/12/2006 18:22
Claudio, valeu! Li seu texto sobre a Bienal sim, se não me engano até comentei!
Valeu, Gabriela!
Marcos: é isso aÃ, fico feliz que tenha visto o texto, obrigada pelo comentário e por compartilhar o diálogo por aqui. Sem dúvida é uma das coisas mais legais desse espaço!
Oi Helena!
Finalmente, consegui me cadastrar. Caramba, ando muito sem tempo. Já tinha lido a matéria mas só me cadastrei para poder navegar no site, na boa.
A matéria ficou excelente! Obrigado pelos comentáriosa, pela parte que me toca. Espero que as pessoas gostem do site do Radamés e o utilizem. Tem lá muita informação.
Valeu!
Beijo
Roberto
Obrigada, Roberto! Fico feliz que tenha se cadastrado. Agora quero muito ler um texto seu por aqui! Abraço!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 8/12/2006 14:01Gratificante encontrar um texto sobre Radamés Gnattali, um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos, aqui no Overmundo. Felizmente nem tudo na rede é volátil feito memória RAM. :)
Alexandre Inagaki · São Paulo, SP 16/12/2006 12:12
Grande, Alexandre! Aos poucos Radamés vai ficando mais conhecido entre os jovens, graças a pessoas interessadas como você e a Helena Aragão, que é super ligada à cultura musical brasileira, sem fronteiras. Se vc quiser, dê uma lida no texto que eu postei sobre o Sitio Oficial Radamés Gnattali, no overblog/sitio-oficial-radames-gnattali.
Abraço
Roberto
Pois é, Alexandre. O Overmundo é feito para quem quiser aproveitá-lo. Fico feliz de ver que aos poucos há mais gente falando de música instrumental (e variáveis) por aqui. Roberto, fiquei feliz também com o elogio :) E aproveito para botar o link da seu texto aqui, para que Alexandre e outros interessados possam achá-lo mais fácil!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 18/12/2006 10:10
Oi Helena, gostei do link com o meu texto. Não repare a ignorância, mas, quando vc tiver um tempo, me ensina como se faz isso.
Roberto
Oi Roberto! Vamos ver se consigo te explicar por escrito: você vai na sua matéria e copia o endereço (seleciona e dá Control C). Aà vem aqui no comentário e coloca a palavra que quer que apareça linkada. Vamos supor que seja a palavra TEXTO. Você escreve a palavra e seleciona ela com o mouse. Aà vai no quadradinho lá em cima onde está escrito LINK. vai abrir um lugar para você colocar o endereço. Aà você dá Control V (colar). Cuidado para conferir se o http do endereço não ficou dobrado (pq aà dá erro). É basicamente isso. Se não conseguir, me escreve. Abraço!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 19/12/2006 12:24
Vamos ver se entendi. Copio o endereço do meu texto. Coloco um link em SÃtio Radamés, por exemplo. SÃtio Radamés, por exemplo. Bem, aà resultou num palavrão! É isso? Vamos ver.
Abs
Roberto
Oi Helena, não deu certo. Desculpe, vou tentar outra vez. Vou tentar com uma palavra só: sÃtio.
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