Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá,
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...
A poesia fala por si mesmo. Tem o poder da sÃntese e de captar aquilo que, muitas vezes, demanda tempo e muitas palavras para ser formulado em teorias e estudos empÃricos. Lenine e Bráulio Tavares são poetas-compositores visionários com licença poética para traduzir a realidade social e suas contradições em frases poético-musicais. “Lá Vem a Cidadeâ€, música do último CD de Lenine, Labiata, descreve em versos uma visão delirante do caos urbano.
Vi a cidade passando,
Rugindo, através de mim...
Cada vida
Era uma batida
Dum imenso tamborim.
Eu era o lugar, ela era a viagem
Cada um era real, cada outro era miragem.
Uma cidade imaginária, como as cidades invisÃveis de Calvino, da qual o poeta foge, instalando-se em seu castelo situado no alto de uma serra, de onde vê a cidade se alastrando e chegando pouco a pouco
Eu era transparente e era gigante
Eu era a cruza entre o sempre e o instante.
Letras misturadas com metal
E a cidade crescia como um animal,
Em estruturas postiças,
Sobre areias movediças,
Sobre ossadas e carniças,
Sobre o pântano que cobre o sambaqui...
Sobre o paÃs ancestral
Sobre a folha do jornal
Sobre a cama de casal onde eu nasci.
Como um bicho ameaçador, a cidade amedronta, acua, mas também seduz e encanta. Sua grandeza atrai. Se traduz em beleza e caos. As teorias confirmam: riqueza se acumula onde já há riqueza e gente. E riqueza e gente atraem mais gente e riqueza. Mas como já poetizou Caetano, a força da grana ergue e destrói coisas belas.
A cidade
Passou me lavrando todo...
A cidade
Chegou me passou no rodo...
Passou como um caminhão
Passa através de um segundo
Quando desce a ladeira na banguela...
Veio com luzes e sons.
Com sonhos maus, sonhos bons.
Falava como um camões,
Gemia feito pantera.
Ela era...
Bela... fera.
Sonhos maus, sonhos bons. As pessoas migram do campo para a cidade e de cidades pequenas para cidades maiores em busca de seus sonhos e oportunidades. Mas se a cidade a alguns oferece emprego, consumo, educação, lazer e melhoria de vida, a muitos só oferece vida dura, desemprego ou sub-emprego, más condições de moradia, violência, frustação e solidão.
Desta cidade um dia só restará
O vento que levou meu verso embora...
Mas onde ele estiver, ela estará:
Um será o mundo de dentro,
Será o outro o mundo de fora.
Vi a cidade fervendo
Na emulsão da retina.
Crepitar de vida ardendo,
Mariposa e lamparina.
A cidade ensurdecia,
Rugia como um incêndio,
Era veneno e vacina...
O crescimento urbano, especialmente nos paÃses mais pobres, se é sinal de maior dinamismo econômico, também vem acompanhado de problemas de difÃcil gestão. Metade da população do planeta já é urbana e estudos confirmam que é nos paÃses pobres que a urbanização está ocorrendo de forma acelerada sem que os governos tenham condições de dar condições de vida digna à população.
Eu pairava no ar, e olhava a cidade
Passando veloz lá embaixo de mim.
Eram dez milhões de mentes,
Dez milhões de inconscientes,
Se misturam... viram entes...
Os quais conduzem as gentes
Como se fossem correntes
Dum rio que não tem fim?
Em 2050 haverá 3 bilhões de pessoas pobres no mundo vivendo em condições precárias nas cidades. Isto afetará ainda mais os problemas habitacionais, os serviços de saúde, educação e os transportes. A violência urbana aumentará e o meio ambiente será mais impactado. Os mais pobres serão mais afetados pelas enchentes, pelas secas e pelo frio intenso. Todos serão afetados pelo aquecimento global.
Esse ruÃdo
São os séculos pingando...
E as cidades crescendo e se cruzando
Como cÃrculos na água da lagoa.
E eu vi nuvens de poeira
E vi uma tribo inteira
Fugindo em toda carreira
Pisando em roça e fogueira
Ganhando uma ribanceira...
E a cidade vinha vindo,
A cidade vinha andando,
A cidade intumescendo:
Crescendo... se aproximando.
Lá vem a cidade e não há como detê-la. Como cÃrculos na água da lagoa, as cidades se expandem e se adensam. Maior consumo de matérias primas e energia, maior emissão de poluentes, maior a temperatura da Terra. E enquanto as calotas polares derretem e o clima enloquece, as cidades crescem e são tomadas pelas águas e arrassadas pelos maremotos e terremotos. O sertão vira mar, o mar vira sertão. Como em Sodoma e Gomorra, aqueles que fogem se refugiam nos lugares altos enão podem olhar para trás sob pena de virarem estátuas de sal.
Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá,
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...
Provocante, para uma instigante reflexão.
"A vida na cidade grande, o medo que é grande também,
corrida do cheque coberto, o saldo não teve e não tem..."
(Zé Geraldo)
Abraços
Muito bem elaborada a discursiva descrição da vivência nas metróplis
Bruno Resende Ramos · Viçosa, MG 31/12/2008 00:11VOTADO GOSTEI MUITO UM ABRAÇO DO MANOEL (ZE POLINOMIO)
ze polinomio · Barão de Grajaú, MA 1/1/2009 00:29
ESTA LETRA DE LENINE SOBRE COMO A SELVA DE PEDRA DEVORA OS SONHOS E O LIRISMO SUSCITA-ME LEMBRANÇAS RELATIVAS
à HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR E A POEMAS DE DRUMMOND
QUE EXPÕEM COMO A SELVA DE PEDRA OPRIME E SOÇOBRA A
CANDURA E O LIRISMO.
Votado. a foto tb está muito boa. Um abraço afetuoso do Faraó
A música parece até um quase sonho, daqueles que as vezes a gente tira um cochilo sem querer na aula ou no trabalho e acorda assustado, com alguma violência do sono,ou com a agunia do que vai ter que correr para conseguir fazer alguma coisa. Pensativa, sufocante.
;)
É, ao mesmo tempo, tudo muito real e tudo muito imaginário. A beleza também é assim.
Agradeço os comentários. Nas cidades, onde a maior de nós vive, se misturam ilusões e realidade, sonhos e pesadelos, delÃrios reais e imaginários. Calvino descreve uma cidade nascida na sua imaginação:
“Naquela direção, após sete dias e sete noites, alcança-se Zobeide, cidade branca, bem exposta à luz, com ruas que giram em torno de si mesmas, como um novelo. Eis o que se conta a respeito de sua fundação: homens de diferentes nações tiveram o mesmo sonho – viram uma mulher correr de noite numa cidade desconhecida, de costas, com longos cabelos e nua. Sonharam que a perseguiam. Corriam de um lado para o outro, mas ela os despistava. Após o sonho, partiram em busca daquela cidade; não a encontraram, mas encontraram uns aos outros; decidiram construir uma cidade como a do sonho. Na disposição das ruas, cada um refez o percurso de sua perseguição; no ponto em que havia perdido os traços da fugitiva, dispôs os espaços e as muralhas diferentemente do que no sonho a fim de que desta vez ela não pudesse escapar.†( Italo Calvino – “As Cidades e o Desejo 5†in “As Cidades InvisÃveis†– tradução de Diogo Mainardi)
Discussão de altissimo nÃvel. Parabéns. Lila Su.
Lila Su · São Paulo, SP 5/1/2009 12:25Parabéns pela genialidade, meu pai. O caos urbano é inevitável. Viver em cidades também. Desde a lembrança sombria e rural da Idade Média a alma humana reluta em desenvolver-se na cidade, nosso habitat social em que é possÃvel evoluir culturalmente. A despeito de muitas vozes dissonantes (termo que utilizo para entrar no universo musical do inspirador Lenine - que nasceu no manguetaown e batiza de labiata - espécie de orquidea que ele coleciona, talvez para suavizar a concretude da cidade,- seu ultimo trabalho), a procura pelo modo de vida rural está cada vez mais escassa. Todos querem plantar amigos e "discos", idéias, oportuniddes na cidade ainda. Entretato, provoco uma outra discussão - considerando que os locais não sao mais materiais,mas sim virtuais e cibernéticos, há espaço para tanta idéia no mundo todo, na cidade, na roça? Ou é inexorável que estamos fadados a vivermos todos em cidades - com todo o caos e encanto que isso nos provoca - que serão continuas - se nao territorialmente, pelo menos ciberneticamente? Há de haver mais espaço para inclusão? Quem quer morar na cidade? Quem quer continuar na cidade? Já veio a cidade!!!! Beijos mil! Carol
Carol Jatôlah · BrasÃlia, DF 24/1/2009 10:49Obrigado pelo comentário, Carol. O caos urbano é evitável. Veja o exemplo de algumas cidades européias que conseguiram alcançar uma excelente qualidade de vida urbana. Mas é claro, a realidade social, econômica e cultural é outra. E elas não têm mais do que 500 mil habitantes.Evitar o caos nas populosas cidades dos paÃses em desenvolvimento é bem mais complicado. Quanto mais gente nas cidades, mais difÃcl administrá-las, ainda mais no contexto socioeconômico e polÃtico em que vivemos.
Gyothobat · BrasÃlia, DF 25/1/2009 10:42O destino da humanidade é humano. O percentual de quase 100% das pessoas vivendo nas cidades, que já ocorre nos paÃses desenvolvidos. será gradativamente atingido pelos demais paÃses a medida em que se desenvolverem. Mas o ideal bucólico da vida no campo com o conforto da cidade, que já era sonho de consumo da alta classe média desde o século XIX, continua sendo um dos modos de vida mais "cult" e caros hoje em dia.
Gyothobat · BrasÃlia, DF 25/1/2009 10:58quero dizer O destino da humanidade é urbano
Gyothobat · BrasÃlia, DF 25/2/2009 22:22Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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