Ler a nova poesia, quem é capaz?
A crÃtica sempre se mostrou mais ou menos incapacitada para dar conta do fenômeno poético de seu tempo, principalmente quando desdenhou as obras que se negaram a um esgotamento precoce ou quando fizeram apressadas idealizações. Por outro lado, muitas vezes denunciou equÃvocos e o sepultamento prematuro de obras que ainda se prestariam a inúmeras ressurreições. Mas que salto qualitativo ou quantitativo foi este que blindou a poesia contemporânea de qualquer avaliação plausÃvel, de um mÃnimo “diagnóstico por imagem†ou de uma trans-figuração livre e vulgar? Por que se diz que ainda não surgiu uma crÃtica apta a ler com propriedade a poesia contemporânea? Isso se deve a uma incapacidade de avaliação em si ou uma refratariedade programada dos novos modelos estéticos? E essa nova estética, se existente, mereceria a intervenção de um mediador tão qualificado? Em que medida? Há necessidade, enfim, desse urgente interlocução? Suspenda-se, por enquanto a indagação, sempre recorrente, de se há efetivamente “poesia contemporânea†ou equivalente.
Seria normal destinar o texto poético previamente a determinada faixa de competência analÃtica? E feito isso, a opacidade desse mesmo texto não inviabilizaria as incursões transcriadoras, disruptivas, corrosivas de um leitor indisciplinado e leigo?
Essas questões surgem a propósito de afirmação recente feita por alguns novos poetas de que não há uma crÃtica apta a abordar com propriedade e avaliar a poesia que se produz atualmente. Normalmente aponta-se a imperÃcia da crÃtica, impregnada de vÃcios estéticos, para abordar a inabarcável produção contemporânea, desde um prisma desconstrutivo, fragmentário, caótico. Tal observação, quando dirigida a certa crÃtica acadêmica que ainda pratica dicotomias redutoras, analógicas, ainda nutridas nos moldes modernistas do século passado, tem sua razão.
De fato, apesar da constante recomendação para que se olhe com olhos novos o que surge, as obsoletas ferramentas modernistas são no mÃnimo inadequadas para dar conta da produção poética atual - mesmo com a ressalva de que crÃtica alguma deu-se ao trabalho de esgotar as linguagens de seu tempo. No entanto, tal deficiência deve ser vista com cuidado, principalmente levando-se em conta o cÃrculo vicioso da competência poética em que se meteu a poesia de hoje, a qual, desdenhando todas as tentativas de ruptura e julgando já a intransigência e subversão como simples operações fora de foco, parece atravessar o âmbito folhoso e ameno de um terreno conquistado. Ora, na medida em que a própria atividade poética abdicou de aderir a um projeto de vanguarda e de uma prática subversiva, como cobrar da crÃtica uma leitura fidedigna, pertinente ou equiparável a seu desencanto histórico e sua desvinculação objetiva a um desfecho? Em função disso, a afirmação parece esconder menos um pleito por uma interlocução válida que um propósito velado de auto-preservação.
A denúncia feita pelos poetas cria, de qualquer forma, uma problemática. Mas talvez caia num perigoso jogo de excelência se considerar a nova poesia, dada sua privilegiada carga de informação acadêmica, acessável de forma global, como imune a todo e qualquer espicaçamento crÃtico e, por extensão, a toda revogação ditada pelos atritos estéticos com outras linguagens e com ela própria. Desconfia-se, por exemplo, que uma ostentação cosmopolita, repetindo o mesmo equÃvoco humanista do passado, busque imunizar-se não só de uma inevitável leitura contingenciada, como dos precários sismógrafos de um indisciplinado leitor transgressivo e transcriador. E quanta energia não se gasta em esquivar-se de um atrito não-edificante!
Podemos até concordar com o decreto, na medida em que uma poesia contemporânea está ainda sendo feita, não tendo ainda tempo de estabelecer-se como matéria manipulável, em que pese toda “poesia in progressâ€, através de uma manobra de reflexos, negue-se a uma apreensão exaurÃvel, presente ou futura. Mesmo assim ocorrendo, não seria possÃvel essa poesia lograr aliciar o SEU leitor ou SUA crÃtica? Uma poesia que só timidamente mostra sua nervura? Vá lá. No entanto, desconfio que melhor faz a crÃtica em tatear, errar em terreno temporal também instável para a in-formação poética, sobre o que ainda não se deu, evitando sujeitar-se a precipitadas totemizações, até porque, quer queira quer não, ela sempre se sustentou sobre obras relativamente “elaboradasâ€, tirando delas o seu magro sustento.
Confrontos à parte, cabe lembrar que, se a arte contemporânea não tem lugar nem vez para a crÃtica de seu tempo, nem se permite um convÃvio mÃnimo, para quem afinal é escrita e por que ainda é produzida? O fato de já nascer crÃtica dispensaria a poesia de um olhar de fora, um ver-ler de qualquer espécie?
Com efeito, essa poesia, que prima pela alta voltagem informacional de seus praticantes, sem perceber parece ressuscitar uma “necessidade de épocaâ€, em que pese a arte contemporânea pautar-se na ausência de paradigma e linhas de definição nÃtida. E se de fato há esse gosto nivelador ou uma total ausência de avaliação, espera-se pelo menos que a poesia desenvolva a capacidade de discrepar de seu entorno e cobrar de si uma radicalidade cada vez mais inventiva. Vale lembrar também que, autônoma ou não, a crÃtica como discurso é algo que vem posterior à obra poética. Convenhamos, embora não seja ela tributária de todos os equÃvocos cometidos, muitas vezes ressente-se de obras-referência (esse é seu “papelâ€?) e sua autonomia não vai ao ponto de justificar o injustificável ou de preencher a lacuna estética que as próprias obras não deram conta de fazê-lo.
Para uma produção poética que já não se arrisca ao erro e ao passo em falso e não mostra fissuras apreciáveis, seria cômodo demais debitar o passar em branco do seu discurso à inaptidão do leitor (e da crÃtica) para penetrar seu espÃrito. Garante-se, assim, um transcurso incólume, mesmo com o risco maior de ir “emudecendo em meio à não-diferença†(Adorno). Normal também esquecer que o desafio maior, além do que percorrer um caminho estético sem fissuras e erros é, muitas vezes, pinçar o que há por trás desse relato e desse texto que flui em todos os tempos, aparentemente sem discrepância, muitas vezes sem marcas de contemporaneidade e com a falsa aparência de costume e repetição.
A propósito, em recente entrevista, Wilmar Silva formulou a seguinte pergunta a um poeta contemporâneo: se a poesia é “a liberdade da minha linguagem†por que os poetas escrevem com medo de errar?†A pergunta é pertinente ao que ora se expõe, quando, diante de certa monotonia de sons de uma técnica dominada, o leitor parece mover-se numa plano poético sem rebites, saliências ou ruÃdos de elaboração. E, pior, desautorizado previamente a encontrar “algo mais além†do que dispõem os produtos poéticos cooperativados.
Apesar de todas as chamadas que os crÃticos literários levaram, quase sempre com acerto, se o comportamento para com estes é o da desautorização pura e simples, imagine o que não se reserva ao leitor não-especializado, imperito, mas capaz muitas vezes de uma compreensão, de uma apreensão formal ou conteudÃstica, uma des-integração poética.
Ora, se uma poesia não for lida (ou sequer repudiada) por sua época, nem se oferece ao pasto de um retardatário olho congestionado de conceitos revogados e nem se submete à s suas intrigas, pelo menos para deixar claro seu não-pertencimento a um mundo absoluto, deve, de preferência, mostrar sua quota de subversão, sob pena de, paradoxalmente, destinar-se mais livremente à degradação que a auto-referência induz e, pior, sem tocar sequer a lava do historicismo. Enfim, como costuma acontecer à arte que escolhe seu público, pode caminhar docilmente a mais um “cerimonial vazio do concertoâ€.
É verdade que toda arte que se preze traz em si uma “negação elaboradaâ€. Mas esse elemento em si não menospreza o acaso, as invasões da diversidade, nem se presta a estabelecer pré-indicações valorativas de quem pode ou não pode usufruir de sua estrutura objetiva e libar suas conseqüências estéticas. A rigor, o produto estético é sem rótulo de indicação.
Convém lembrar, uma das caracterÃsticas da poesia de hoje é que ela, atingindo alto grau de lucidez, se permite atestar sua inutilidade, sua indisposição à imortalidade programada, alguma transcendência pré-concebida, a irrelevância histórica a um tempo determinado.
Por outro lado, esses elementos paradoxalmente se perfilam numa angustiante espera por uma crÃtica que não comparece, paradigmática (por que não?), totalizadora (idem) e, afinal, tanto quanto competente ou mais que as obras em curso. Ocorre que, para o bem e para o mal, nascendo depois das escrituras, à crÃtica quase sempre restará inviabilizada uma resposta em tempo oportuno.
Por enquanto, mesmo sujeitos a um diagnóstico falho, preferimos acreditar que a uniformidade abstrata e mais ou menos rarefeita da poesia atual deve-se mais a uma abertura franca à s múltiplas leituras e interpretações não-autorizadas e seu dinamismo tecnológico (quase uma “tendênciaâ€) que à sua predisposição para atender a um “gosto niveladorâ€, professoral e autoritário. Para uma avaliação minimamente válida, cremos ser necessário pôr de lado os patéticos e inofensivos torneios geracionais em que se adiam questões estéticas objetivas sobre os textos e as debilidades são reciprocamente disfarçadas. Sim, porque à obtusidade dos retardatários em insistirem com clichês poéticos sepultados, corresponde a tática de seus opositores novÃssimos em não deixar ver em seu material os sinais de alguma imperÃcia ou indÃcios de sutil reverência a um passado esteticamente emoldurável.
Todavia, essa reação, lançada no contrapé da arquejante crÃtica, trilhando o caminho inverso à histórica ojeriza dos inventores aos clÃnicos, não é já um sintoma de contemporaneidade e não expõe um grande impasse com que deve lidar a poesia de agora? Calculamos que sim. É possÃvel afirmar que a crÃtica ainda não “falou†da poesia contemporânea enquanto larva desconforme com os modelos estéticos e culturais ainda vigentes, e como matéria que se nega à própria abordagem prospectiva, mas jamais como invulgar instância formal indescritÃvel. Não como construção que, dada sua rareza, não encontrou ainda instrumento idôneo de leitura. Fosse assim, para ficar num só aspecto, não estaria tão viva a dialogia das traduções e a releitura de poetas exumados.
Por outro lado, é também possÃvel interpretar esse gesto como uma performance de “negação arrojada†(Adorno), se já não fosse esse “um gesto quase da natureza†da arte em geral. Mas...a notoriedade da poesia está menos em alcançar alguma relevância polÃtica que em assumir seu fracasso histórico e programático, dando-se ao luxo de, na passagem, descartar qualquer conciliação com a crÃtica. De qualquer maneira, seria no mÃnimo estranho que uma poesia se ufane por não ser devidamente lida ou interpretada pelos que lhe são contemporâneos ou se lamente disso.
Ora, ainda que sujeita a leituras estrábicas (e, repetimos, inofensivas) de uma retardatária crÃtica embaçada por fuliginosos paradigmas modernistas e dos velhos cultores de metáforas, essas são ainda leituras (ou testemunhos de um fazer?), equiparáveis tanto quanto aos visitantes potenciais/virtuais do texto, espalhados pelo futuro. E para aqueles talvez já soe indiferente ou inócua a expulsão ou a barração compulsória na festa do pensamento.
Cândido Rolim – nasceu no sul cearense, autor de Exemplos Alados, Pedra Habitada e Fragma. Possui artigos, textos e resenhas na web , em jornais e revistas. Contato: candidorolim@hotmail.com
- Sabe Candido, tu tens razão - é preciso dar voltas, contornar entendimentos; apressar, baixar o passo... Eu gosto daqueles que não gosta dos crÃticos. Mestre de Capoeira é taxativo: "Eu gosto é de elogios e não de crÃtica". Particularmente sou mais Patativa do Assaré. No resto, ando em tronco de bananeira em rio cheio, deito em cima e deixo me levar...
Andre Pessego · São Paulo, SP 15/7/2007 18:02- Mas gostei, da abordagem aprendi sobre maneira, até por que não sobra mais tempo pra se ler coisas que não tenha tabela.
Andre Pessego · São Paulo, SP 15/7/2007 18:03
Cândido,
A poesia de um tempo terá juÃzo na crÃtica e nas pessoas que a lerem nesse tempo ou, conforme teu belo conceito, pelos visitantes potenciais/virtuais do texto, espalhados pelo futuro .
Estando ela além do que já feito, terá mérito de superá-lo, estando aquém, ainda assim terá mérito de ter sido feita.
E ainda, o leitor da poesia assim feita, em plano dela outro, poderá dela achar que avança e com ela se ergue, assim como o que está à frente dela, ou acima, ou apenas em outro lugar, poderá achá-la uma perda de tempo.
Então, a crÃtica fala da poesia deste tempo.
E deveria ser de alguma poesia que falasse.
Assim, crÃtica e poesia avançariam de patamar por igual, porque há poetas que podem da crÃtica ter os mesmos juÃzos antes citados para a poesia.
E falo tão somente do que restou publicado, nem das pessoas que escrevem a crÃtica, nem das pessoas que escrevem poesia.
Enfim, não será tão-só, se olharmos a volta do mundo todo, da poesia que se vá requerer "ruptura", "intransigência e subversão".
Rebeldia, se tanto, benvinda já seria.
bola pra frente, cândido! votei com gosto!
abraços!
texto de fôlego. vou imprimir pra ler com calma, mas já gostei do rigor crÃtico. fico pensando como cairia bem um artigo assim nos frios encontros das irmãs ABRALIC/ANPPOLL. Abraço.
ronaldo machado · Porto Alegre, RS 16/7/2007 19:10grato pelos comentários, amigos. dialogia de peso. abraços Cândido Rolim
candido rolim · Fortaleza, CE 19/7/2007 11:55
Bom texto Candido (Fiquei aqui pensando.. Alguém tem que criticar o criticos. Não é verdade?)! Por falar em poesia comtemporânea quando puder de uma olhada nos trabalhos que postei. Gradne Abraço
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