Como se faz para ler uma cidade? Ler um livro parece ser mais simples, porque, ao decodificar a palavra, é só lançar luz sobre o sentido do texto a partir de outras leituras sem ignorar o mergulho idiossincrático do autor ali. Num romance, lê-se para saber o final da história e, sendo o leitor mais atento, para saber como o autor trabalhou, pensou, sentiu e se esforçou até chegar àquelas linhas narradas.
Na filosofa lê-se para sugar o pensamento do outro até obter conteúdo e riqueza – lastro intelectual – e então desenvolver sua própria filosofia, consumindo o pensamento do outro para poder pensar.
Mas uma cidade! Como se lê? E São Paulo – livro grande diante de olhos tão pequenos? Em que veias fluem sangues tão impuros? Jogar-se de corpo e alma e morrer tentando? Não é nas esquinas que está o encantamento. É no meio de toda rua. As esquinas são apenas o dobrar de páginas. É o momento do fôlego refeito, para logo adiante extasiar de medo e prazer, entregar-se ao rio de angústia nos lugares pobres e ao fio tênue de contentamento nos nichos nobres. Sem nunca desprezar o efeito contrário.
Mas como se lê isso? O que posso tirar de um olhar? Ler São Paulo: andar pelo Morumbi e não ver ninguém; apressar-se pela XV de Novembro e sentir o ar, o riso, o calor da multidão. Raskolnikov está presente? Está. Karenina veio? Veio. E Capitu? Também. Estão todos ali. Mas na avenida Lopes de Azevedo com a rua Gália, o que permanece é o silêncio do lado de fora e Plutão arrotando confiança no interior de seu palácio.
A praça VinÃcius de Moraes está no lugar errado. Estaria melhor no Centrão, entre a Consolação, a Amaral Gurgel e a São João, em algum lugar ali, no triângulo sem glamour mas cheio de vida e de poesia, no meio do caos e do povo, distante da frieza verde dos morumbis. A praça não é mais plebéia.
Ler São Paulo: uma brasa riscando a noite em Pinheiros, correndo para a Vila Madalena e ali bebendo a saúde dos seus. Mauricinhos comentando o cinema do dia. Escritores quase pobres divulgando sua verve entre o som da rua e do bar e a voz etÃlica.
Na Praça Roosevelt, o risco é outro: salvo mirrados oásis, o artista falido levantando fundos, em meio a putas e veados, intelectuais malogrados e outras naturezas menos ofensivas. Uns correm pela Rego Freitas e se jogam nas boates gays, encenando o frenético drama de não estar certo de sua identidade, como aquele velho Batman de Um Cavalheiro da Triste Figura, de Jorge Miguel Marinho.
Outros, velhacos, em surdina, enfiam-se em colos de meretrizes desfalcadas de grana, em frangalhos, perdidas na noite de Sampa, pela Augusta, nas entrerruas, nas vias de acesso à perdição total. Há quem queira matar. Há quem queira roubar, amar, sumir, surgir, refazer-se na angústia de uma solidão por entre gente na madrugada sem tino.
Ler São Paulo: visitar sebos e não comprar nada. Comprar tudo e não ler nada. Trabalhar, trabalhar, trabalhar. Conclusão de uma leitura: as pessoas bebem para agüentar o porre de trabalhar todo dia suportando encheção de saco de chefe enrrudecido pelo tempo.
Ler a Paulicea: evocar Baco e aventurar-se na Vila OlÃmpia; correr o risco de morrer tentando pegar uma patricinha endinheirada. Morrer. Morre-se muito em São Paulo.
Não dá pra ler São Paulo. ImpossÃvel cidade. Nada se esgota. Na verdade, nenhuma leitura se esgota, pelo menos nas melhores obras. Mas São Paulo é inesgotável demais para minha compreensão. E ainda assim é preciso tentar ler a cidade. É a única coisa válida quando se está dentro da Desvairada, porque é ela, é ela a esfinge que olha para o transeunte, para o trafegante, o motoqueiro, o motorista, o maloqueiro, a diarista e diz: “decifra-me, ou devoro-teâ€. Todo dia morrem 200 pessoas em São Paulo. Poucas são as que falecem pela Boa Morte. A maioria esmagadora não soube ler, não soube decifrar o enigma da detentora de nosso destino humano.
Olá Gilberto. Texto interessante. Bom quando nos oferecem uma visão um pouco mais poética da cidade. Mas não seria mais interessante colocá-la no Banco de Cultura? Acho que lá seria melhor apreciada.
Thiago Perpétuo · BrasÃlia, DF 13/3/2007 19:47
Leituras bacanas, Gilberto! A sua de São Paulo, a minha de seu texto :-) Até entendo o ponto de vista do Thiago, mas votaria para continuar no Overblog. Acho inusitada a maneira que você escolheu para falar sobre "São Paulo"; pouco convencional e escrito "com capricho": uma beleza de ler!
Uma vez na fila de edição: e se você incrementasse as "tags"? algumas sugestões: cidade, leitura, enigma
Obrigado pessoal! Vou tentar encontrar uma solução para as ilustrações, porque eu também gostaria de fazer isso.
Gilberto G. Pereira · São Paulo, SP 14/3/2007 09:31Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!
+conheça agora
No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!