Língua e lugar, rima, região, rap e dez de quadrão

Vitor Pirralho ao vivo. Foto: Marcelo Albuquerque
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Marcelo Cabral · Maceió, AL
18/8/2006 · 69 · 7
 


Intrigado por saber de onde vinham as rimas de dois nomes de destaque do atual cenário da música autoral em Alagoas, fui conversar com Railton Sarmento, o Rato, 42 anos, flautista e vocalista da banda Xique Baratinho, pesquisador da cultura popular alagoana e designer, do outro lado do ringue, Vitor Pirralho, 24 anos, rapper e professor de literatura. Perguntei de onde surgiram suas rimas, de onde vinha tudo aquilo, e eis o que me contaram os dois:

Railton “Rato” Sarmento – Xique Baratinho

Marcelo – De onde vem a rima do Rato?

Rato - Quando eu era criança, por volta de 6 a 7 anos de idade, meu avô tinha uma Rural onde ele me levava com meus irmãos pra sua fazenda em Correntes, interior de Pernambuco. Meu avô escutava muito Jacinto Silva e Coronel Ludugero, que tinha uma música que era um dez pés de quadrão do martelo alagoano, baseado em perguntas e respostas de conhecimentos gerais entre dois interlocutores, e que dizia assim:

Ô caroba seja “homi”/ trate de esquecer a fome/ conte um, dois, três.
Um, dois, três eu tô contando / minha fome tá passando / lá vai quatro, cinco, seis.

(Mote) Você cai
Se cair eu me alevanto / mas não vou sair do canto / nos dez pés quadrão lá vai.

Me “arresponda” e me convença / quem inventou a imprensa / dou-lhe um, dois, três.
Lhe “arrespondo” como “homi” / Gutemberg era seu nome / dou-lhe quatro, cinco, seis.

E assim por diante, aquilo foi despertando meu interesse pela rima.
Ali em Correntes eu ia às feiras com meu irmão mais novo e observávamos os emboladores de coco com suas rimas e seu improviso. Ficávamos reparando naquilo e em casa a gente reproduzia pra família batendo em qualquer coisa que simulasse um pandeiro, pra muito gosto da nossa avó, Elvira, que incentivava a cantoria e mostrava pras visitas. De lá pra cá vim pesquisando o assunto.
O que mais me impressiona nessa modalidade dos emboladores é a capacidade de improviso, a velocidade de raciocínio pra embolar um mote que é tirado em um papel de dentro de um saco, com qualquer tema inesperado, que pode ser a última notícia dada no telejornal há poucas horas atrás ou um fato histórico de séculos passados. Não importa, o embolador tem que fazer a rima, titubeia, mas não cai. E tudo isso obedecendo rima, métrica e oração.
Digo que é isso que mais impressiona porque o verso em si, pensado, analisado e editado, é relativamente fácil de ser feito. Como disse Alceu de Paiva Valença, “um verso vadio, feito de repente, retrata pra sempre o que viu no clarão”, e é nesse clarão que o repentista de viola ou o embolador de coco se agarra. Na cabeça do rimador esse clarão está sempre aceso, sempre pulsando.
O povo humilde e carente de educação do interior nordestino tem uma incrível capacidade de processar temas com absoluta profundidade poética, mesmo utilizando uma linguagem simples, com tanta beleza quanto qualquer erudito.

M – Saindo da cantoria pra tocada. O pífano e a flauta? Como surgiram nesse trajeto?

R - Nos anos setenta tinham muitas bandas de pífano tocando nos bairros de Maceió, eu tinha por volta de 10 anos e minha brincadeira era acompanhar as bandas pra ficar chupando limão bem na frente do pifeiro, pra ele salivar, babar mesmo e estragar a festa.
Quem desdenha quer comprar né? Não podia ver um talo de mamão ou um pedaço de cano que começava a fazer os furos pra tentar tocar naquilo. Quando descobri que podia tirar um som, passei a estudar e pesquisar o instrumento.
A flauta surgiu por culpa do senhor Ian Anderson, flautista e vocalista do Jethru Tull, a primeira vez que vi aquela banda fiquei impressionado, aliás, é uma influência inegável na música que fazemos com o Xique Baratinho. Outro sujeito que me influenciou muito foi o Zé da Flauta, que tocava com o Alceu.

M – Qual a relação entre sua vivência com as rimas e outras manifestações da cultura popular alagoana e o trabalho do Xique Baratinho?

R - A banda tem esse caráter mesmo, utilizar instrumentos universais da formação básica do rock: baixo, guitarra, bateria, e claro, a flauta, para reler as coisas daqui.
A matéria prima das letras é a cultura popular e a linguagem do povo alagoano, eu e o Lelo Macena, baixista e vocalista, somos os responsáveis por esse conteúdo na banda.
Essa coisa da mistura, do novo com o tradicional, o local e o universal, é muito forte aqui na nossa cultura, em todos os sentidos. Se no Brasil todo mundo é vira-lata, Alagoas é o supra-sumo da vira-latisse.
O Xique Baratinho surgiu num momento bacana em Maceió, no comecinho dessa década, quando todos os meninos nas faculdades andavam carregando um pandeiro embaixo do braço e havia uma verdadeira comoção na juventude da cidade por um retorno às raízes da cultura popular.
Enfim, tá no sotaque, no recado e na língua. Quer ser universal? Cante sua terra.

M – Com tantos anos vivendo de perto essas manifestações da cultura alagoana, você acumulou bastante material, faço então um convite público aqui, para que você disponibilize seu acervo, ou parte dele, no banco de cultura do Overmundo. Podemos fazer isso?

R – Claro, com o maior prazer, sentamos e selecionamos isso, tá na mão.

M – Rato, uma rima, por favor, pros nossos leitores e colaboradores no Overmundo.

R – Certo, lá vai...

Rimando eu faço negócio
Dou, empresto, levo e vendo
Corro, mato e compreendo
E morrendo deixo meus “osso”
Pra qualquer amigo nosso
Qualquer coisa eu quebro um galho
Surgi na gota do orvalho
Que a ponta da minha língua
Não vai, nem volta, nem mingua
Eu remendo, corto e retalho

Disco do Xique Baratinho para baixar
www.mp3magazine.com.br
www.tramavirtual.com.br/xique_baratinho

Vitor Pirralho e Unidade

Logo no começo da conversa, fiquei surpreso ao saber que Vitor, alagoano de nascimento, é pernambucano de formação, criado e crescido por Caruaru, Recife, Belo Jardim e Olinda desde criança, e voltou a viver em Maceió há apenas seis anos. Minha surpresa em relação a isso é pelo fato do rapper dominar com tanta propriedade a linguagem da “maloqueiragem” de Maceió, das “grotas” às praias. Aliás, ele é porta-voz dessa linguagem popular e contemporânea das beiradas da capital alagoana.

Marcelo - Onde e quando surgiu o rap na sua história? As rimas? Seu envolvimento com esse movimento? Em Recife ou em Maceió?

Vitor - Em Recife, comecei a gravar umas coisas em casa mesmo, no computador, com um microfone bem fuleiro e um programinha de hip hop, nada ao vivo, bem caseiro mesmo, laboratorial. Orbitava por ali naquele começo de movimento na cidade. Depois disso vim morar em Maceió em 2000, onde já existia um movimento nas periferias distantes como os bairros Dubeaux Leão e Salvador Lira, e foi aqui que comecei a produzir o que viria a ser o trabalho que faço hoje com a Unidade.

M - O movimento hip hop e a produção local de música rap ainda são recentes e tímidos por aqui. Quando se fala em cultura hip hop sempre me remete à cidade de São Paulo, onde o movimento é muito forte, e tem toda a estética da urbanidade e a linguagem da periferia paulistana. Mais ou menos como quando o movimento punk aportou no Brasil há uns 20 anos atrás e se arraigou ali no ABC paulista, as bandas eram formadas por operários e aquilo marcou a imagem da primeira geração desse tipo de música no país.
Com o rap, Como você conseguiu traduzir essa linguagem para Maceió, parindo esse rap praiano que você faz, com uma cara tão daqui?

V - Quando comecei a fazer rima em Recife o papo das rimas era Recife, quando vim pra Maceió passei a retratar o ambiente daqui, aliás, acho que é disso que se trata o rap, retratar a realidade a sua volta através da música...

M – Como um repórter da rima?

V – Isso! Exatamente, como um repórter da rima. Quanto ao movimento em Maceió e no nordeste, acho que ainda é tímido mesmo, mas tende a crescer. No feriado de 7 de setembro vamos tocar no primeiro Encontro Nordestino de Hip Hop representando Alagoas. Acredito que o rap é o movimento de vanguarda do século XXI.

M - Seu trabalho vem angariando fãs em Maceió a cada apresentação ao vivo, me fale da sua banda, a Unidade.

V - Quando cheguei a Maceió comecei a cantar em uma banda chamada Cogumelos, essa banda deu origem à Dona Maria, e eu fazia umas participações com eles ao vivo também, daí o Pedro Tup que tocava com eles me chamou pra montarmos a Unidade, ele ficou encarregado das batidas, chamamos o André Meira (baixo) e o Dudui (guitarra). Logo depois de montar a banda, participamos do projeto Alagoas em Cena do governo do estado, na categoria música, e ficamos entre os três primeiros colocados, garantimos com isso a gravação do nosso disco. Essa é a formação da banda desde o início, isso já faz 3 anos.

M - Quando sai o primeiro disco do Vitor Pirralho e Unidade?

V - O disco já está gravado e o projeto gráfico finalizado, está na etapa de prensagem pra ser lançado em breve. Este trabalho foi mixado no Rio de Janeiro com o Pedro Garcia, baterista dos Seletores de Freqüência, a banda do B Negão.

M - Pra terminar, satisfaça minha curiosidade inicial, de onde vêm suas rimas, quais suas influencias, o que levou você a fazer rap?

V - Na verdade, minha relação com a palavra e a rima vem antes da literatura e poesia que da música, comecei a escrever influenciado por isso e procuro fazer mais literatura do que música, que acredito ser o melhor suporte/canal para os meus versos. Essa relação com os livros me levou também a ser professor de literatura.
Nosso trabalho se baseia muito no conceito de antropofagia de Oswald de Andrade, ou seja, devorar tudo, toda a cultura que nos cerca, descartar o que não serve e digerir o que é bom, transformando numa coisa nova. Nada nem ninguém é totalmente original.
Influências musicais são as mais diversas, mas eu diria que Chico Buarque por parte de pai, Renato e seus Blue Caps e Reginaldo Rossi por parte de mãe.

Letra de “Dialeto” (Vitor Pirralho e Unidade):

Eita, fi da peste, é doidera
Boba da peste, lomba da pêga
Pra casa da peste, parêa
Os fi do cranco não güenta a pressão,
É uma pena
Agora seja...
Não tenho pena de puto de merda
De verme que rasteja
Que mexe com as piveta, na festa
E não respeita
Quer ser sujeito homem
Mas quando vê os homem
Some, sai fora
É, meu véio, bote sua mola
Tão na sua cola
E agora?
Se arrombe, tome
Quero ver o super-homem
Eita porra, foi mal, não é esse o teu nome
Ratei, confundi, foi foda
Só que me poquei, ficou na moda
Né mermo o que tu quer ser, superman
Bem, ratei e sem querer acertei
Né mermo o que tu quer ser, superman
Bem, então agora eu quero ver, vem

Eita, eita
Nem oito nem oitenta

Nem oito nem oitenta, tem que ser na medida
Tem uns cara que não güenta e enche logo a barriga
É esse os oitenta
Não se contenta com a vida mansa
Não pensa, se adianta
É tudo garotão, só vive alterado
Mas, mas, mas menino...
É tudo uns coitado
Quer arrumar encrenca? Vai-te embora sozinho
Eu vou ficar trocando idéia, aqui, com Luizinho
Eu vou ganhar bem mais
Mensagem positiva, vibração de paz
Mas rapaz, foi outra sensação
Quando eu abri os olhos pra revelação
Eu vi bem mais além
Aí, cabeça, tu devia ver também
Mas nem, nem...
Tu acha que tá certo
Então fazer o quê? Deixa quieto
Tua vida é um labafero
Eu sei como é que é, tou esperto
Não me procure, nem me chame
Não tou a fim de enxame
Meu dialeto, sem vexame
Sem nenhuma paieza, vai à vonts

Eita, eita
Nem oito nem oitenta

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Hermano Vianna
 

sou fã do Vitor Pirralho desde que escutei pela primeira vez o rap Made in Nordeste (rimando alagoanos com ramos - de Graciliano - e clima com Jorge de Lima - um dos meus poetas preferidos)

Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 16/8/2006 12:03
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Tati Magalhães
 

Eu sou fã dos dois hehehe
O legal da letra do Dialeto (talvez os desavisados na alagoaneidade precisem de dicionário) é que brinca também com o sotaque daqui. Assim, leia-se "oitcho ou oitchenta". E como não podia deixar de ser, dialoga com outras referências da música local, como o Luizinho, cantor do Vibrações Rasta ("abri os olhos para a revelação", é o trecho dessa banda de reggae que é a mais famosa por essas bandas). Boa, Marcelo!

Tati Magalhães · Maceió, AL 16/8/2006 15:06
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Marcelo Cabral
 

Olá pessoal
Hermano, made in nordeste foi a música que eles inscreveram nesse projeto do governo no qual ficaram entre os 3 primeiros premiados com a gravação do CD.
Tati, muito pertinente, é oitcho e oitchenta mesmo, quase espanhol, falamos assim no alagoanês, o Vitor nos prometeu uma transcrição fonetica dessa letra, que ele tem pronta escrita num papel, para o banco de cultura do Overmundo, la ele vai explicar o que é essa transcricão, que é mais ou menos a escrita do sotaque, ou melhor, do som de quem diz.
abraços

Marcelo Cabral · Maceió, AL 18/8/2006 09:01
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Petrônio Viana
 

É incrível como músicos e bandas de gerações completamente distintas conseguem completar uns aos outros para pintar um quadro da realidade, da cultura e dos anseios da juventude alagoana. Fiquei muito feliz em saber do convite para o Pirralho tocar em Recife, mas continuo sentindo muita falta do Xique na cena musical daqui. A gente precisa fazer uma "pressão" pelo retorno imediato e definitivo dessa galera. Parabéns para o Marcelão, para o Railtinho e para o Pirralho, todos "brothers". Abraço.

Petrônio Viana · Maceió, AL 18/8/2006 10:13
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Carla Chinaski
 

"Eitha, eitha... nem oitcho e nem oitchenta". Gostei muito das entrevistas, Marcelo... Rato, Lelo, Vitor Pirralho são alguns responsáveis por aproximar a galera da arte da rima! O resultado é muita criatividade por parte deles e, por parte do público, muita vontade de ver de novo! Vitor Pirralho aparecu numa época de "seca" na produção em Maceió. Na época, dois, tr~es anos atrás, muita banda havia ido tentar espaço fora daqui e nos restou aguardar novidades. Algumas bandas ainda continuam tentando agradar, Vitor Pirralho e Unidade, com os dialetos, foi certeiro. Gosto muito do trabalho deles! Era massa um link para a galera ouvir o som!

Carla Chinaski · Maceió, AL 13/10/2006 14:24
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Chalice Pinheiro
 

Amei ver meu primo Vitor dando entrevista. Sou sobrinha da mãe de Vitor e o vi nascer. Espantei-me e orgulhei-de ver sua entrevista, pois pra mim ele é ainda era o mesmo pirralho que vi nascer tempos atrás ( por isso o espanto). O orgulho chega, quando confirmo que ele fez o mesmo curso que eu, que também é professor da área de Letras e que é um Albuquerque famoso. Nosso avê, que não conhecemos, o tenente Honório, deve estar muito orgulhoso de suas crias.
Bom, como não entendo nada de hip hop, deixo pra quem sabe os comentários dessa vertente musical bem importante nos dias de hoje.
Beijos, primo! E parabéns pelo sucesso!

Chalice Pinheiro · Caruaru, PE 7/9/2008 10:50
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Chalice Pinheiro
 

Amei ver meu primo Vitor dando entrevista. Sou sobrinha da mãe de Vitor e o vi nascer. Espantei-me e orgulhei-de ver sua entrevista, pois pra mim ele é ainda era o mesmo pirralho que vi nascer tempos atrás ( por isso o espanto). O orgulho chega, quando confirmo que ele fez o mesmo curso que eu, que também é professor da área de Letras e que é um Albuquerque famoso. Nosso avô, que não conhecemos, o tenente Honório, deve estar muito orgulhoso de suas crias.
Bom, como não entendo nada de hip hop, deixo pra quem sabe os comentários dessa vertente musical bem importante nos dias de hoje.
Beijos, primo! E parabéns pelo sucesso!

Chalice Pinheiro · Caruaru, PE 7/9/2008 10:51
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