A viola de arame, de dez cordas dispostas em cinco ordens, aportou no Brasil na metade do século XVI, a tiracolo dos colonizadores portugueses e dos padres jesuÃtas. Os primeiros trouxeram o instrumento para animar folguedos; os outros, para utilizar no processo de catequização do Ãndio nas terras recém-descobertas.
Desde a colonização, diversas citações na literatura brasileira testemunham ter sido a viola, se não o mais popular, certamente um dos mais importantes instrumentos no acompanhamento da modinha e do lundu nos séculos seguintes.
No romance histórico As mulheres de mantilha, ambientado entre 1763 e 1767, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, à época capital do Brasil, o escritor fluminense Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) dá depoimento do uso da viola em alegres reuniões noturnas da sociedade local.
Em um desses agrupamentos, uma moça, ao tomar de uma viola para cantar um lundu, é perguntada por um presente qual a razão de não cantar acompanhando-se ao cravo? E o diálogo, em seguida, vem nestes termos: “O cravo é mais nobre, pertence à s xácaras e à s baladas; o lundu é mais plebeu e cabe de direito à viola, que é o instrumento do povoâ€.
O lundu é canto de origem africana, que teve grande destaque no Brasil do final do século XVIII ao começo do XIX, enquanto a xácara, canção de versos sentimentais, de origem árabe, tornou-se popular na PenÃnsula Ibérica, por volta do século XVII.
O pesquisador de música e radialista baiano de Juazeiro, Perfilino Eugênio Ferreira Neto, 67 anos, escreveu, em 2000, na apresentação da coletânea Do lundu ao axé, que o poeta soteropolitano Gregório de Mattos Guerra (1633-1696) “fazia conquistas amorosas no recôncavo baiano, cantando lundus com versos saÃdos da imaginação e acompanhando-se numa viola de arame, por ele mesmo improvisadaâ€.
No conto infantil A festa no céu, do folclore brasileiro, é relatada a façanha do sapo que voou com o urubu, dentro de uma viola. Ao longo de toda a narrativa, o instrumento é citado quase uma dezena de vezes – algumas versões fazem referência ao violão, mas este instrumento somente passou a ser conhecido do brasileiro por volta de 1830.
O cearense José de Alencar (1829-1877) também escreveu romances históricos inspirando-se no passado do Brasil, e um deles foi Guerra dos Mascates, em 1873, onde, em uma das passagens, apresenta o personagem Cosme, vÃtima do cacoete, com gesto rápido, passar pelos beiços a unha do polegar da mão direita e esfregá-la ao peito, contra a roupa.
Para descrever a luta do infeliz personagem, José de Alencar vale-se da imagem do violeiro, narrando que, mesmo após colocar muitos meios em prática para combater o cacoete, o roedor de unhas “via com desespero o brejeiro do dedo tocando viola no peito da roupetaâ€. O tocador não tange, com a unha do polegar direito, as cordas da viola, apertada contra o peito?
Duas décadas antes, o fluminense Manuel Antônio de Almeida (1830-1861) escreveu mais do que o cearense e citou a viola em cerca de 15 passagens no romance Memórias de um sargento de milÃcias, divulgado pela primeira vez, de junho de 1852 a julho de 1853, em folhetins, e publicado, em 1863, em edição póstuma. Bom narrador, o fluminense deixa um pouco de falar das caracterÃsticas do sargento Leonardo e se aventura, com sorte, a exaltar a música difundida pela viola. Ao descrever o ambiente de uma festa, ele narra: “(...) A música é diferente para cada uma, porém sempre tocada em viola. Muitas vezes o tocador canta em certos compassos uma cantiga à s vezes de pensamento verdadeiramente poéticoâ€.
Igualmente, em um trecho do romance A ilustre casa de Ramires, de 1900, o escritor português Eça de Queiroz (1845-1900) cita, com destaque, a viola de arame: “E até Videirinha, que de novo afinava a viola, se preparava para um solto descante ao luar, murmurou respeitosamente por entre abafados arpejos: – Não vale a pena, Sr. Doutor... Realmente não vale a pena, porque em PolÃtica hoje é branco, amanhã é negro, e depois, zás, tudo é nada!â€
Outro fluminense, Raul Pompéia (1863-1895), mesmo que por uma única vez, faz alusão ao som da viola em Uma tragédia no Amazonas, romance publicado em 1880. Ao falar da alegria na casa do ex-subdelegado Eustáquio, nos dias do nascimento do seu filho, narra: “(...) Lá dentro, entre suas pobres paredes de barro, mãos de rústico, lassas do ferro agrÃcola, tiravam das cordas de uma viola acordes cadenciados, de um encanto que só pode avaliar quem já os ouviu, os quais mergulhando na floresta iam suavizar o sono das avezinhasâ€.
São muitos os romances de autores brasileiros e portugueses onde a viola, como instrumento musical, aparece em meio a personagens, na maioria das vezes com perfil de homem rural, de mãos rústicas e marcadas pelo trabalho duro, mas capazes de tirar belas melodias das cordas de arame. Tão contagiantes essas melodias que no século XV, em Ponte de Lima (Portugal), procuradores fizeram reclamação de alguns aspectos que consideraram daninhos ao reino.
Citando documentos datados de 1459, o compositor e pesquisador mineiro Roberto Corrêa, 55 anos, diz em seu livro A arte de pontear a viola, de 2000, que dentre alguns desses males está registrado que certas pessoas usavam a viola para, tocando e cantando, mais facilmente roubarem as casas e dormirem com as mulheres, filhas e criadas, que, quando “ouvem o tanger a viola, vamlhes desfechar as portasâ€.
Tal qual exprimem os versos do poeta baiano Castro Alves (1847-1871) no canto Os três amores, que está em Espumas flutuantes:
OS TRÊS AMORES
1
..............................
2
.............................
3
Na volúpia das noites andaluzas
O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan!... Donzelas amorosas,
Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha...
Eu morro, se desfaço-te a mantilha...
Tu és - Júlia, a Espanhola!. . .
E em Maria e O bandolim da desgraça, ambos em Cachoeira de Paulo Afonso:
MARIA
.........................
Ah! Quem dessas primaveras
Pudesse a flor apanhar!
E contigo, ao tom d’aragem,
Sonhar na rede selvagem...
À sombra do azul palmar!
Bem feliz quem na viola
Te ouvisse a moda espanhola
Da lua ao frouxo clarão...
Com a luz dos astros — por cÃrios,
Por leito — um leito de lÃrios...
E por tenda — a solidão!
O BANDOLIM DA DESGRAÇA
Quando de amor a Americana douda
A moda tange na febril viola,
E a mão febrenta sobre a corda fina
Nervosa, ardente, sacudida rola.
A gusla geme, s’estorcendo em ânsias,
Rompem gemidos do instrumento em pranto...
Choro indizÃvel... comprimir de peitos...
Queixas, soluços... desvairado canto!
E mais dorida a melodia arqueja!
E mais nervosa corre a mão nas cordas!...
Ai! tem piedade das crianças louras
Que soluçando no instrumento acordas!...
“Ai! tem piedade dos meus seios trêmulos...â€
Diz estalando o bandolim queixoso.
... E a mão palpita-lhe apertando as fibras...
E fere, e fere em dedilhar nervoso!...
Sobre o regaço da mulher trigueira,
Doida, cruel, a execução delira!...
Então — co’as unhas cor-de-rosa, a moça,
Quebrando as cordas, o instrumento atira!...
. . . . . . . . . . . . . . .
Muito obrigado pelo comentário e pela sugestão, minha cara Helena. Realmente, fica bem mais arejado. Um abraço
Ari Donato · Salvador, BA 19/6/2008 19:09
Que maravilha o seu texto, Ari. Aprendi muito sobre o instrumento e a relação da nossa cultura com ele. Senti um pouco de falta de algo sobre a viola hoje. Vai sair outro post??
Abraços
Minha cara, pretendo, assim que este texto seguir mais adiante. Se não não for pedir muito, sugiro que quando tiver um tempinho, dê uma olhada no meu blog http://blog.terra.com.br.
Abraços e obrigado.
Ari,
Bela pesquisa. Bom recorte da história de um instrumento-sÃmbolo da cultura de Brasil possÃvel.
Bacana também ter citado a alentada relação entre viola e Lundu, este, que vai se descobrindo aos poucos, ser um gênero-chave na estruturação da moderna música brasileira já que vem de uma estranha mistura coreográfica e etimológica entre o Ka-lundu angolano dos escravos nos terreiros das fazendas (o que vem dar, logo depois, no Jongo) e o Landum ou Lundum dos salões das cortes européias (espécie de minueto de dondocas) que deu Modinha, musica brasileira esta aliás tão visceralmente ligada ao violão, irmão carnal (ou sobrinho, filho, sei lá) desta viola mãe musical de todos nós.
Manda mais, Ari, manda mais!
Abs
Obrigado, amigo. Vou aguardar este teste seguir seu caminho, para dar espaço. Abraços
Ari Donato · Salvador, BA 21/6/2008 09:27
Ari, o link pro seu blog dá na página inicial do terra blog. Manda novamente!
Abraços
Tens razão, minha amiga. Veja agora, por favor. Abraços
http://aridon.blog.terra.com.br/
Resgatar a essencia da cultura brasileira é o papel de todo cidadão. A tela O Violeiro é tão viva que parece que podemos ouvir o som da viola. Seu texto é diversificado e rico. Votado.
Bruxinhachellot · Nova Iguaçu, RJ 21/6/2008 17:19
Belo trabalho, Ari. E viva a viola! Que eu adoro...
Abraços
Nydia
Belo texto Ari, uma pesquisa que ficara para a posteridade.E lembrei de uma coisa. Quando eu casei não podia haver dança pois o pai de meu marido havia falecido recentemente. Mas alguém que não sabia disso, acabou trazendo uma viola e um gaiteiro e foi "aquela" festa. Ainda vou escrever sobre isso. Bjs e votos.
Doroni Hilgenberg · Manaus, AM 22/6/2008 11:35Minha cara Doroni, a primeira entre todos a fazer um comentário sobre o que postei, pela primeria vez, neste espaoço. Jamais me esquecerei de suas palavras. Sou imensamente agradecido a todos vocês pela votação obtida e que Deus nos abençoe a todos.
Ari Donato · Salvador, BA 22/6/2008 11:46
OPa, Ari, isso é eh magnifico. Olha so o comentario maravilhoso desse mestre o Spirito Santo. Qdo participei do espetaculo Chiquinha Gonzaga, la no SESI da Paulista, li centenas de livros e sobre Lundu, Kalundu, mas nao tinha lido nada sobre viola. O som da viola eh algo incomparavel.
Vc esta de parabens e dou meu voto de pé.
abcs
ariame, pinho, descascando cebolão cachoeira abaixo riachão acima. pois é lida a lira!
f?ribeiro · São Paulo, SP 22/6/2008 13:55Muito obrigado Nic e f?ribeiro. Fico feliz e mais ainda por ter ajudado na divulgação desse instruemnto tão brasileiro.
Ari Donato · Salvador, BA 22/6/2008 13:59
Materia das mais importantes que já li no overmundo. Fantástica. Parabéns.,
andre.
BrasileirÃssima, a viola é realmente conquistadora. E esse apanhado que você fez é informativo, tocante e bem escrito. Parabéns.
Peterso Rissatti · São Paulo, SP 22/6/2008 20:49Meus caros André e Peterso, vocês me deixaram muito feliz com os comentários, principalmente por eles virem de dois que vivem em São Paulo (ou são filhos de SP, não imporata, antes são brasileiros), Estado onde a viola é aplaudida.
Ari Donato · Salvador, BA 22/6/2008 21:23
Que beleza de texto,Ari, meu conterrâneo!
Uma pesquisa profunda e emocionante...histórias en(cantadas) pelas violas espalhadas por esse mundão afora ...
Super parabéns!
Uma lição que vou guardar com carinho....
Um beijo azul...
Raiblue
Fico feliz Raiblue, fico feliz. Vi seu poema, também me encantou. Fique com Deus.
Ari Donato · Salvador, BA 22/6/2008 21:31
Ari, acabei de achá-lo por aqui.. vc vai clicando e de repente chega em algo q fala de perto. Adoro essa viola, os violeiros..( Elomar)por aÃ.. Tinha muita curiosidade e acabei de ler seu txt. Muito interessante - abrir portas que desconhecemos.
Obg, Thiers
> na música erudita a viola tem acrescentado viola da braccia.
Gst de ambas violas
É Thiers, a viola é um instrumento antigo e tem raÃzes profundas, ao contrário do violão, mais novo, embora descendente de instrumentos de corda também antigos. Elomar, catingueiro de Vitória da Conquista (BA), tem suas canções mais puxadas para o trovadorismo, coisas lindas e pouco conhecidas. Ele não toca viola (nem sei se já tocou), é um cantador, e tira das cordas do seu violão belas melodias. Este papo é legale sadio. Ganhamos muito com isso. Abraços
Ari Donato · Salvador, BA 22/6/2008 23:48
Ari, meu bom baiano. Conhece isto?
Quando da brisa no açoite a flor da noite se acurvou
Fui encontrar com a Maróca meu amor
Eu senti n'alma um golpe duro
Quando ao muro já no escuro
Meu olhar andou buscando a cara dela e não achou
Minha viola gemeu
Meu coração estremeceu
Minha viola quebrou
Meu coração me deixou
Minha Maróca resolveu prá gosto seu me abandonar
Porque o fadista nunca sabe trabalhar
Isto é besteira pois da flor
Que brilha e cheira a noite inteira
Vem depois a fruta que dá gosto de saborear
Minha viola gemeu
Meu coração estremeceu
Minha viola quebrou
Meu coração me deixou
Por causa dela sou um rapaz muito capaz de trabalhar
Todos os dias todas noites capinar
Eu sei carpir porque minh'alma está arada e loteada
Capinada com as foiçadas dessa luz do seu olhar
Isso é "Viola quebrada", do nosso grande folclorista Mário de Andrade. Tente ouvi-la na voz de Inesita Barroso.
Abraço do Mário Henrique
Parabéns, a literatura da viola é interessante, gostei muito, depois lhe passo as fotos de violas antigas qeu consegui por aqui.
bjs
sinvaline
Êi! Ari,
creio que o mestre Renato Andrade tá
te aplaudindo lá de onde está com sua
viola a tiracolo e os dois braços cruzados
no peito, sua marca, por esse artigo bem
feito
viola minha, nossa viola,
abraços,
Carlos Mota
Excelente contribuição, Ari, muito boa sua pesquisa e muito bom seu texto, parabéns!
Poeta Jorge Henrique · Nossa Senhora da Glória, SE 23/6/2008 14:05Muito bom,parabéns pelo texto,eu voltei,boa noite!
Elliana Alves · Petrolina, PE 23/6/2008 22:48Caro M.H.Rolim, conheço sim. Na voz da esplêndida Inesita e, também, na voz de Clara Becker, filha dos atores Walmoar Chagas e Cacilda Becker, já falecida. São duas vozes diferentes, mas ambas bonitas. Obrigado pela letra, vou guardá-la aqui em meus documentos.
Ari Donato · Salvador, BA 23/6/2008 23:14Também agradeço a Poeta Jorge Henrique, a Carlos Mota e a Eliana Alves, pelas palavras. Carlos me fez lembar do mestre Renato Andrade, com aquele jeito mineiro de contar causos e a forma única, própira, de tocar a viola. Que Deus o tenha entre os seus.
Ari Donato · Salvador, BA 23/6/2008 23:18Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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