O notável adestramento técnico dos poetas de hoje, se traduz num movimento inconcluso que parte de um “repetir para aprender†e não chega sequer a roçar as bordas de um “aprender para criarâ€. Eles exercitam uma escrita minuciosa, derivada de uma acuidade de scholars, mas, no mais das vezes, feita a medo, porque seu intuito se restringe a ratificar o continuum da tradição e do entorno poéticos a que eles mais se submetem do que problematizam. Esses poetas encaixam seus ombros dentro de uma moldura a que fazem jus por obra de seu excelente comportamento.
Amparo-me nestas considerações preliminares para aplicar à resenha trecho do poema “Outra noiteâ€, do livro Planos de fuga e outros poemas de Tarso de Melo (CosacNaify, 2005), diz assim: “é tarde, de novo/ a madrugada inscrita/ nas poucas janelas/ ainda acesas no prédio/ em frente; o vento,/ o guarda-noturno,/ alguma ave rápida/ e seu barulho/ resistem/ a se recolher (...)â€. Pois bem, sei que recorto e apresento ao leitor apenas o detalhe de um poema que, inclusive para constituir-se com tal, não precisa ser brilhante em todos os seus passos, e, por sua vez, não é senão um exemplar entre os cerca de setenta que estão enfeixados neste volume, forjado como uma coesão de significantes e significados no sucessivo encadeamento de suas peças. No entanto, o trecho sublinhado e justamente por sua inócua neutralidade, me parece paradigmático de um dilema que atravessa boa parcela da prática poética de agora-agora, e que eu, não sem alguma ironia - e me solidarizando com Leyla Perrone-Moisés - chamaria de o dilema da “retomada†do poeticamente correto.
Posso ser, ainda, mais injusto com o poeta Tarso de Melo - ou, parcial, isso se é verdade, como diz Baudelaire, que toda crÃtica toma partido e que, portanto, está sujeita a cometer injustiças(1). Com efeito, mais do que investigar a eventual singularidade de linguagem que seu livro teria a nos oferecer - quando de fato não oferece -, me interessa aqui abordá-lo em sua condição, digamos assim, de sintoma, ou melhor, de Ãndice (em sentido semiótico). Ou seja, na trama do livro restam marcas, inscrições da passagem de um estado recente de nossa mentalidade quando a questão em causa é o poético. E Tarso de Melo nos propõe uma figura provável para essa mentalidade na qual estamos implicados, a saber, a linguagem mesma que informa o seu Planos de fuga e outros poemas. Não posso imaginar o que pensa, ou que julgamento faz o leitor a propósito do fragmento do poema “Outra noite†com que abrimos a presente abordagem, mas ele suporta - não obstante se deva observar em sua defesa que o aproveitamento de elementos prosaicos vem sendo, há muito, incorporado à poesia -, um complexo de imagens extremamente convencional a emoldurar uma dicção “de poesia†que evoca um tom entre light e cult, de evidente qualidade literária, mas que qualquer indivÃduo pode “acessarâ€. O lance dos jogos de espelhos em abismo, isto é, o poema que esbarra no poema, o onanismo da auto-referência e as metáforas alusivas à entidade do poema, são convocados com a maior naturalidade. Então, tornam-se recorrentes menções do tipo: “anotações para um mapa qualquer†(pág. 8); “a paleta†e “o poema silente - cego boletim de ocorrência†(pág. 11); “sombra dos poemas†(pág. 14); “o poema,/ fazê-lo surgir/ minúcias nos cortes†(pág . 29); e, finalmente, a peça intitulada “A certa alturaâ€, onde Tarso de Melo “lê†um poema de Ruy Belo (págs. 34-35). Listar mais passagens similares seria ocioso.
Planos de fuga está, portanto, repleto de estilemas tÃpicos de um perÃodo onde são encarecidas e cobradas competências poéticas e filiações consagradas e consagradoras. Dentro dessa perspectiva, a poesia recente não se recusa a uma inserção filisteÃsta nos quadros de um sistema literário cada vez mais chapa-branca e coincidente com as ondas canônicas propostas pelo mercado livreiro-editorial. Estamos condenados a uma poesia que incorpora como um fim aquilo que, seja para a tradição, seja para a alta modernidade, era tão-só um meio, a saber, sua mise-en-scène. Outro traço dessa geração de poetas parece ser o de uma vocação para uma poética que se espoja num pastiche tanto do passado como de um futuro algo cÃnico. Poesia da diluição e do relativismo de fast thinkers; mixagem espirituosa de alta e baixa cultura. E neste tocante, Tarso de Melo, involuntariamente, nos ministra a filosofia “da casca de banana†do Machado de Assis, cronista de A Semana (de 1892 a 1900), que escreve: “tudo provém dela (...) se está mais próxima do bico do sapato, faz cair de ventas, se mais perto do tacão, faz cair de costasâ€. Em Planos de fuga, o poeta mostrando correto jogo de cintura, machuca com o bico do sapato uma epÃgrafe de Paul Valéry e com o tacão, em outro momento, cutuca uma epÃgrafe de Mano Brown com a qual fecha o volume.
Tarso de Melo, e, como de resto, a imensa maioria dos seus pares, se distingue por dominar o nÃvel de competência da tecnologia poética. Isto é, o poeta paulista, por meio de seus poemas, demonstra conhecer, por exemplo, os pontos cruciais da tradição literária do ocidente; estar familiarizado com a voz dos mestres do modernismo histórico; ter um bom ouvido para os traços distintivos dos recursos da versificação, quer seja livre ou metrificada; e, por fim, simpatizar com as proposições das vanguardas de quatro décadas atrás, que, agora, passados os sobressaltos, já podem fazer parte do piquenique domingueiro do sistema literário. Mas, o nÃvel de competência, ou seja, o repetir para aprender, é aquilo que fica a caminho de algo, aquilo que vale como tarefa; enquanto o nÃvel de desempenho, o aprender para criar - que supõe um renovar -, é que determina se o conteúdo do barril será de vinho ou de vinagre.
Para exemplificar até onde vai o nÃvel de competência do poeta, vejamos as referências incrustadas em alguns textos de Planos de fuga. Na primeira seção, de onde o autor extrai o tÃtulo do livro - que se divide em cinco outras -, deparamos dezesseis fragmentos de poemas em prosa, estruturados em torno a um comportamento de linguagem que, para não escapar ao habitual, oscila entre o monólogo interior à maneira de Joyce e a montagem cinematográfica de flashs imagistas. ExercÃcios de monótona proesia em decupagem enumerativa: “A memória organiza - agoniza - infinitos recortes de jornal, o mosaico dos fatos entrega um grito, devora-se, vale-se da caricatura de um outro - o vulto avança†(pág. 18). Na seção “Canções para depoisâ€, Tarso de Melo apresenta as suas credenciais ao fazer um encômio metalingüÃstico a um dos “trigênios vocalistas†da poesia concreta no poema “Commedia para Haroldoâ€. Saúda com intimidade em tercetos brancos (não rimados) o tradutor-transcriador de Dante, numa empostação que denuncia ressonâncias das Galáxias do poeta poliglota, morto em 2003: “... a música que levo dessa margem a outra/ é a música que invade o resto do riso, // é a música que amarra as festas da fala, / fende a razão, prende, entalha um astro// em cada asterisco, deus em cada traço...†(pág. 53). A penúltima seção do livro “7 X 2 (Drummond em retrato)â€, escrita a quatro mãos com Eduardo Sterzi, dá prosseguimento ao expediente cada vez mais kitsch da “re-leituraâ€, intertextualidade rebaixada a burocráticos empréstimos do vocabulário estilÃstico do autor de As impurezas do branco (1973). De Drummond, sobram breves pontos luminosos que rompem a casca desses poemas vazados em opacidade mais irritante do que intransitiva, porque inercial; espécie de hermetismo soft que se deteriora em esgarçamento verbal travado numa parataxe a ponto de exaurir-se. E aqui cabe lembrar Horácio que, na Epistula ad Pisones, censura a linguagem pela qual se alcança uma obscuridade que faz lembrar os oráculos de Delfos. Duplos de Tarso de Melo, lemos a toda hora em revistas como Sibila, Inimigo Rumor e outras, esses sujeitos inventores da poesia mestranda ou doutoranda, versões recondicionadas e atualizadas daquela poesia “preparatoriana†que Mário de Andrade, lá nas primeiras décadas do século 20, soube identificar no livro de estréia do medÃocre Luis Aranha.
Planos de fuga, infelizmente, é mais um livro que não foge à s exigências do cânone da poesia presente, que se impõe como eclética e recessiva. E Tarso de Melo dá a sua cota de sal para a reificação de um cÃrculo vicioso de auto-referências e auto-reconhecimentos, cujo resultado é essa sorte de submissão a um acordo tácito em torno do virtuosismo técnico, da erudição intertextual perdulária e sem razão de ser e da eficiência diluÃda em esnobismo. Tal crÃtica desenha um panorama cujo diagnóstico talvez indique um processo, senão de decadência, no mÃnimo de estagnação ou acomodação. Toda essa competência poeticamente correta - que mal-esconde a mediocridade de que se constitui, pois se compraz na autopromoção e no elogio mútuo e, ainda, num desaprender no repetir-se, mas cum laude - é agenciada dentro dos estritos limites do contemporaneamente tolerável. O artista, e o poeta em particular, inclusive porque ele é, ou deveria ser, o “inventalÃnguasâ€, o transgressor incestuoso do idioma materno, ainda ocupa, apesar ou mesmo devido a sua excelente formação, o lugar do bufão de costume. Ele é tolerado. Mas, tolerância e desde o ponto de vista de quem administra suas regras, quer significar, mesmo: até certo ponto. Em outras palavras, o poeta que não tenta, ao menos, romper a margem ou o lugar-comum da tolerância, não presta para nada.
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(1) “...o comentário demasiadamente elogioso produz mais indiscrições que a censuraâ€, Nietzsche.
Ronald Augusto Poeta, músico, letrista e crÃtico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992) e Confissões Aplicadas (2004).
Quero antes de mais nada, antes de qualquer concordância ou discordância, aplaudir a qualidade do seu texto. Antes de cruzar o cabo de seu terceiro parágrafo já sabia que este teria meu voto, embora não soubesse ainda ao certo se concordava ou discordava dele, e em quê.
Imodestamente, se é que há agressão à modéstia em me declarar como tal -- sou também poeta. Poeta preguiçoso, por vezes esquecido da própria natureza, mas ainda poeta. Posto isso, posso agora apresentar o que penso.
Penso que seu texto, tão bem construÃdo à s raias do gongorismo (que acabam por ditar, talvez por ironia ou graça, também meu comentário) tem sua razão de ser. Peca, contudo, em criticar a vaidade acomodada de forma vigorosa, porém igualmente vaidosa. Na preguiça -- porquê não usar tal palavra? -- que tantos poetas tem de realmente criar, reside um eco da falta de verdadeira sensibilidade destes tempos de múltiplas experiências por minuto. Posto que há cada vez mais avidez por ver e ouvir o que é mostrado e dito, há por conseguinte avidez cada vez maior de se mostrar e dizer sem que se pense ao menos o quê. Há uma sede estética, quase uma demanda de costumes, pela poesia, qualquer que seja, em certos cÃrculos. Mas é a poesia que apenas o é por assim ser chamada -- poesia que pode ser chamada de poesia e portanto cumprir um papel, burocráticamente, nas estantes das casas de alguns e em em discussões rasas sobre o que poesia. Posto isso, não é de se assustar que se faça poesia sem criação, sem ousadia, sem novidade. A poesia que cria, que inova, que muda a linguagem e a sensibilidade é muito difÃcil de deglutir. Muitos não a querem, poderiam não reconhecê-la como poesia -- e com decerto não a reconheceriam -- e de que ela serviria então para eles? Muitos só querem ler e escrever poesia, seja esta como for, e mesmo que não o seja mas que assim possa ser chamada. É entre estes e para estes que florece a poesia para a qual você aponta sua obus acadêmico. Você acertou a mira, e não deixo de festejar seu tiro.
Mas a poesia -- aquela que é feita de inovação, de ousadia, de dizer o quê e como não foi dito -- sempre existirá, enquanto houver quem sinta dela a falta e o chamado. Que seja então urdida, feita, cuspida, por quem quer que queira e possa fazê-lo. Ela não é sequer arranhada, quiçá encoberta, pela poesia da mesmisse que você detona em boa prosa. Façamos poesia então, como achamos e sentimos que deva ser feita. Este é o nosso ofÃcio, se é que se pode dizer que é um ofÃcio dizer o que não se pode calar. Deixemos repetir aqueles que apenas desejam repetir. Há espaço para tudo na criação.
Concluo então, despindo-me de qualquer sofisticação para resumir em uma frase tudo que tinha realmente a dizer de seu texto desde o inÃcio:
"cada um cria aquilo que quer criar, como quiser criar, à sua imagem e semelhança -- e ninguém mais tem nada a ver com isso."
Abraços do Verde.
Bom. eu não presto pra nada e concordo, não sei como, se não presto pra nada, com o Daniel Duende, verde de raiva!!!!!
Poisé Rangel...
Mas, imprestável que sou, nem soube revisar direito meu comentário e estou rindo de minha própria cara ao encontrar tantos erros de edição... :D
Tenho ditas minhas palavras, de qualquer forma. Fico feliz que você concorde com elas.
Abraços do Verde.
caro daniel duende, ao final do seu comentário consta: "cada um cria aquilo que quer criar, como quiser criar, à sua imagem e semelhança -- e ninguém mais tem nada a ver com isso." acho que isso só faz sentido, ou funciona como desculpa, até o momento em que a obra não dobrou o cabo da publicação. não preciso dizer que um poema é um ato de comunicação, portanto, é um evento em que o leitor está implicado. o leitor fecha o circuito. e o leitor (mesmo o mais ingênuo, crÃtico ou chato) tem tudo a ver com isso. à liberdade de criação do autor, podemos propor uma equivalente liberdade de leitura crÃtico-criativa que é inerente ao desejo de linguagem do leitor. a crÃtica não é senão um exercÃcio de leitura. uma leitura possivel. valeu por sua leitura!
RonaldAugusto · Porto Alegre, RS 21/10/2006 21:19caro daniel duende, ao final do seu comentário consta: "cada um cria aquilo que quer criar, como quiser criar, à sua imagem e semelhança -- e ninguém mais tem nada a ver com isso." acho que isso só faz sentido, ou funciona como desculpa, até o momento em que a obra não dobrou o cabo da publicação. não preciso dizer que um poema é um ato de comunicação, portanto, é um evento em que o leitor está implicado. o leitor fecha o circuito. e o leitor (mesmo o mais ingênuo, crÃtico ou chato) tem tudo a ver com isso. à liberdade de criação do autor, podemos propor uma equivalente liberdade de leitura crÃtico-criativa que é inerente ao desejo de linguagem do leitor. a crÃtica não é senão um exercÃcio de leitura. uma leitura possivel. valeu por sua leitura!
RonaldAugusto · Porto Alegre, RS 21/10/2006 21:31
Texto irreparável.
Cada um cria o que quer criar; assim como cada um critica o que quer criticar.
Benny.
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