*Texto por Bruno Torturra
O deputado e pastor Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos humanos é abominável, mas é preciso reconhecer: não é uma aberração. Parece bizarro um homofóbico assumido, racista, obscurantista e hipócrita com a batuta dos direitos humanos no Brasil. Mas vamos pensar: que outro posto um militante da intolerância deveria almejar? Esse é seu campo de batalha. É ali, de fato, que ele precisa ficar sua bandeira. Amém?
Justa, naturalÃssima, a revolta dos que, como eu, acordaram com essa notÃcia. DestituÃ-lo da cadeira seria uma vitória. Mas uma tão improvável quanto paliativa. O posto de Marco Feliciano é a realização de um projeto de poder bem desenhado, articulado e executado de forma exemplar e que começou há tempos, sob o conveniente silêncio e apatia de muitos que hoje compartilham seu nojo nas redes. Marcos Feliciano lutou por seu lugar à s sombras. Quem de nós, caros libertários, estaria disposto a gastar tanto tempo e dinheiro para, quem sabe, assumir esse posto?
Por mais exuberante que sejo seu caso, Marco Feliciano é só a ponta de um iceberg reacionário que transcende igrejas. Está em cada esquina, em cada condomÃnio... Então, por isso mesmo, não vou dissertar sobre Feliciano e o projeto teocrático de poder. Vou contar o que vi na noite de terça-feira, na reunião de moradores da Praça Roosevelt... sempre ela.
Sessenta pessoas, se tanto, reunidas em um teatro. No palco estavam representantes da PolÃcia Militar, PolÃcia Civil, da Guarda Civil Metropolitana e da Ação Local (a tal associação de moradores da praça). Sob duras crÃticas dos presentes, o subprefeito da Sé não compareceu à reunião. A pauta do dia era elaborar estratégias e cobrar soluções das autoridades para problemas que os afligem. A primeira a falar foi uma senhora de sotaque argentino.
Ela exibe um slide de uma foto da praça lotada no Festival Existe Amor em SP. Um dos objetivos daquela reunião, segundo ela, era impedir que atos como aquele acontecessem na praça. E seguiu seu ponto com outro absurdo que ela testemunhou por ali:
Há dois dias gays e travestis estavam na praça fazendo brincadeiras como pega-pega. As crianças eram obrigadas a ver isso. Ela queria saber da polÃcia o que seria possÃvel fazer para impedir casos como esse. E o que poderia ser feito para que a parada gay não passasse perto da Roosevelt. Aplausos da maioria no teatro.
Ela exigia também que a Virada Cultural não utilizasse a praça depois das 22hs. E que não tocassem rock'n'roll por ali. Aplausos.
Moradores indignados com a Guarda Civil porque o policial que foi filmado agredindo skatistas foi afastado. “Isso é uma falta de autoridade da polÃcia!â€, gritou um morador. Aplausos. “Então se não podemos tratar mal os skatistas, o que podemos fazer?â€, pergunta outra. Aplausos. Anunciaram a intenção de proibir com liminares a realização do festival do Baixo Centro. Exigiram a presença ainda maior da polÃcia. Vândalo era sinônimo de skatista. Depredação era sinônimo de manobra. Um baseado era sinônimo de tráfico. Silêncio era sinônimo de ordem. Praça Roosevelt, reformada com dezenas de milhões de reais públicos, era sinônimo de quintal. Aplausos, aplausos, aplausos.
E encerro o relato com a cena que resumiu tudo:
Depois de ser cobrado por muitos, o Major Félix da PM começou a falar. E contou sobre casos que viveu em seus anos patrulhando a Roosevelt. E disse que se recordava do homicÃdio que houve há alguns anos no espaço Parlapatões na mesma praça. Ele se referia aos tiros que o dramaturgo Mario Bortolotto e o ator Carca Rah sofreram em 2009. Alguém corrige o policial:
Quase homÃcidio!
Alguém lamenta:
- Infelizmente quase!
O policial ouve e não diz nada. Apenas segue seu discurso...
Foi difÃcil e didático testemunhar um grupo como aquele. Não era uma igreja, uma seita, uma reunião da TFP. Mas um grupo de vizinhos que se articularam, se dedicaram e se uniram com o objetivo de reprimir à liberdade alheia em nome de uma ideal arbitrário de ordem. Conseguiram colocar 3 braços da polÃcia diante deles e os trataram como fracos. Querem mais força, mais autoridade na hora de garantir o que eles, os moradores, acreditavam ser, legal e moralmente, direito.
À vontade entre os seus, e diante da polÃcia, deixaram claro, mais uma vez, que amor à ordem é um tipo de ódio. E que o ódio à diferença nada mais é do que ódio à felicidade alheia.
Mas há algo mais importante do que expor essa turma. Há que se reconhecer que apesar de poucos, estão trabalhando e lutando pelo que acreditam. Não compartilham suas indignações na rede, apenas. Convocam autoridades, entram com petidos oficiais, elaboram planos e metas para transformar a Roosevelt e as leis em algo mais confortável para suas opiniões.
Marcos Felicianos estão por toda parte. E eles não ignoram nossos protestos após o fato consumado. Ao contrário, se alimentam disso como prova de seu sucesso.
Sobre o que fazer quanto à nova presidência da Comissão de Direitos Humanos, não estou certo... Me parece uma ótima ideia apoiar os parlamentares a fim de criar uma comissão paralela, extra-oficial. Perder o pudor de reconhecer que igrejas e sacerdotes de bom caráter são exceções cada vez mais raras. Respirar fundo e entrar no jogo pesado da polÃtica e do poder. E, sobretudo, antes de olhar para câmaras e palácios, olhar para o lado e cortar o mal pela raiz.
Por isso, lamento informar, há algo prático a ser feito aqui na esquina contra a articulação polÃtica da intolerância. De novo, voltemos à Roosevelt, o quanto antes, para tirar não só o sono, mas o discurso de ódio dessa turma de trás dos panos.
Assim, como há meses vem acontecendo, convocamos todos a fim de participar, para a reunião do Existe Amor em SP, terça-feira que vem, às 20hs, na Praça Roosevelt. Vamos planejar uma nova ocupação e abrir um novo campo de articulação para lembrar, mais um vez, que a praça, a rua e os direitos humanos não estão abertos para negociações com a PM, com a Guarda Civil ou com moradores de sono leve e alma pesada.
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