Morte e vida fonográfica

1
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ
10/2/2009 · 203 · 16
 

Neste começo de 2009, fim da primeira década do século XXI, dois livros antagônicos e complementares (por mais estranho que isso possa parecer) vieram parar na minha mão. "300 discos importantes da música brasileira" é de Charles Gavin com co-autoria de Tárik de Souza, Carlos Calado e Arthur Dapieve e tem objetivo explícito de "preservação de memória de um período da produção gráfica e fonográfica". É um livrão daqueles estilo coffee table book, fartamente ilustrado e com tamanho real de LP e muitas páginas, patrocinado pela Petrobras e publicado pela Editora Paz e Terra. A renda das vendas vai ser revertida a projetos de interesse público. "O futuro da música depois da morte do CD", organizado por Irineu Franco Perpetuo e Sergio Amadeu, conta com artigos de gente diversa e está disponível para download gratuito. Descobri sua existência ao acessar o Twitter do André Stangl, um de seus autores, onde havia um relato de sua experiência na Campus Party – o livro foi lançado lá. Link à mão, cheguei à obra.

Não existe a menor intenção em comparar dois livros incomparáveis. Mas, enquanto ia lendo os dois mais ou menos ao mesmo tempo – um na tela do computador e o outro, bem, o outro não foi feito bem para ser lido de vez, e sim degustado, apreciado, consultado – fui percebendo como havia ali uma complementariedade curiosa. "300 discos" tem cara de almanaque, até mesmo de reverência ao passado, e se remete, pelo nome e pelo tamanho (exatamente igual ao de uma capa da época) ao LP. Sim, long-play, aquele formato anterior ao CD – que já morreu, avisa o título provocativo do outro livro, por sinal uma ode ao futuro completamente diferente que se aproxima. Que tempos são esses em que vivemos, afinal?

O primeiro livro é um apanhado feito por alguns dos críticos e especialistas mais reconhecidos no país do que houve de relevante na música brasileira entre 1929 e 2007 – época em que só ficava registrado para a posteridade "oficial" o que era gravado e lançado comercialmente pela indústria fonográfica, com raras exceções. Em geral, vejo com alguma desconfiança essas obras com listagens querendo definir o que deve ser lembrado ou não. Mas me convenci do valor deste livro folheando suas páginas com belas fotos e informações preciosas, como trechos de entrevistas que Tárik que Souza fez com músicos ao longo das décadas (sem contar os dois discos que vêm de brinde, os de Moreira da Silva e de Elza Soares, respectivamente de 1958 e 1968). Valorizei também, possivelmente, por estar em leitura concomitante com o outro livro, que fala da falência do modelo de álbum, da invenção da figura do autor, da decadência das majors que lançaram boa parte dos 300 discos escolhidos ali.

Quando começou a onda do MP3, uma das questões mais instigantes na minha cabeça foi o iminente fim da ideia de álbum. Curtia imaginar o músico pensando numa obra completa, num conjunto de músicas que fizessem um sentido juntas. Foi interessante ler no "livro-túmulo do CD" como essa questão gera opiniões divergentes. No artigo de Alice Tomaz de Carvalho e Riverson Rios, "O MP3 e o fim da ditadura do álbum comercial", está dito: "As pessoas parecem não querer mais ter de pagar por uma seqüência de canções imposta previamente, como acontece em um CD, representando assim uma negação à ditadura do álbum comercial". Vão além, com um exemplo que me deixou intrigada:

"Mesmo nos casos de canções que têm uma continuidade lógica dentro de um mesmo álbum (como, por exemplo, as músicas do disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Clube Band, lançado pelos Beatles em 1967), não há nada que necessariamente as prenda juntas, na mesma ordem do álbum, após serem transformadas em MP3".

É verdade. Mas será que as músicas do Sgt. Pepper's teriam sido tão celebradas se lançadas separadas? É claro que não dá para ficar fazendo passado-futurologia barata, mas taí um exemplo de álbum que é significativo por seu conjunto... O músico André Mehmari expressa seu desconforto com o fim do modelo (que provavelmente ele não vê como uma ditadura, mas como algo que faz sentido para sua produção), num artigo de nome sugestivo, "O mundo mudou bem na minha vez":

"Acho que [a venda de música faixa-a-faixa] fere a integridade do álbum-­obra, como um livro com seus capítulos. Cada disco meu é como um livro que escrevi: não se deve alterar a ordem dos capítulos ou suprimir um ou outro. (...) Esse conceito é derivado do velho single, mais associado (mas não somente) à música pop, que "pega", que vira hit. Não tem muita relação com a música que eu e tantos colegas fazemos. Quero ter o direito de não ter meu álbum esquartejado e vendido (a preço, literalmente, de banana) em pedacinhos."

Está claro, para mim, que ninguém está certo ou errado. Como em toda fase de transição, as pessoas vão se agarrando em suas verdades, e todas são possíveis, pois dependem de suas vivências. Como o próprio Mehmani afirma, "as mídias vêm e vão, a música segue seu virtuoso caminho de mais de mil anos..."

É afinado com a ideia desta última frase que está o argumento de um dos artigos mais interessantes do livro, "A música na época de sua reprodutibilidade digital", de Sergio Amadeu. O título fazendo referência ao famoso texto de Walter Benjamin não é só uma gracinha: se o filósofo alemão afirmou que o diferencial da obra de arte está na unicidade, Amadeu observa que no mundo digital muita coisa pode mudar. "Música não depende de suporte exclusivo, tem características de todo bem imaterial: ausência de escassez e de desgaste de uso. A cópia e a disseminação não prejudicam o original. É preciso separar os bens informacionais dos suportes que o carregam".

Sendo assim, uma confusão proposital entre suporte e objeto teria sido criada pela mesma indústria que lucrou com a uniformização de gostos e massificação de estilos. Essa seria a maneira de controlar os produtos e negar acesso a eles de quem não estivesse autorizado. Acontece que, nas redes digitais, esse controle é cada vez mais difícil.

Boa parte dos artigos procura abordar este momento de indústria em decadência e novos modelos (e cabeças pensantes) despontando. Alguns fazem uma valiosa reconstituição histórica, seja do comportamento da indústria ("O impacto da tecnologia na cadeia da música: novas oportunidades para o setor independente", de João Leão e Davi Nakano), seja dos formatos de suportes de todos os tempos (Harry Crowl em "A criação musical erudita e a evolução das mídias: dos antigos 78rpm à era pós-CD"). André Stangl e Reinaldo Pamponet, por sua vez, discutem o valor da música para além desses suportes.

Há espaço para análises mais específicas. Laan Mendes de Barros exemplifica como Banda Larga Cordel, projeto do ex-ministro Gilberto Gil, integrou os fãs ao disco via internet. Adriana Amaral explica a relevância de redes sociais como o MySpace e o Last.fm neste novo cenário. Há ainda uma reflexão muito interessante de Ricardo Bernardes mostrando que a nova tecnologia é útil e relevante não só para bandas novas e DJs antenados. Seu "Músicas antigas e mídias modernas" mostra como o registro e a disseminação de músicas coloniais (ou de outras épocas pré-gravação) pode e deve se aproveitar dessas novas redes. "A que público e com quais expectativas essa música se destina hoje? Qual o papel das novas mídias no processo de divulgação menos carregada ideologicamente desse repertório? Com a "morte" do CD, como gerir a versão que será divulgada desse passado musical?"

A pergunta procede para qualquer tipo de música. Enquanto penso sobre ela, folheio a bíblia dos 300 discos, ouço o Kid Morengueira (num aparelho de som que para muitos já está obsoleto) e vou me preparando para o futuro que já está aí.

compartilhe

comentários feed

+ comentar
Evandro Bonfim
 

muitos albúns tem uma concepção de todo, que inclui as faixas, a arte. não me parece ser uma ditadura, mas uma proposta de comunicação de um artista, de um grupo. enquanto o CD não morre de vez, vou dando uma de etnomusicologista barato nas lojas americanas. excelente resenha/reflexão

Evandro Bonfim · Rio de Janeiro, RJ 10/2/2009 14:12
sua opinião: subir
joe_brazuca
 

Tudo bem complexo e de difícil "solução", se é que há algo a ser resolvido e/ou "dissolvido" ( acho que tá mais pra isso mesmo...rs)
Na verdade o que importa ai, é que a produção "de qualidade" não se extinga e não confundam ( alias, já esta sendo confundido, infleizmente, sinal dos tempos, não há como fugir disso...) facilidade de produção e recursos de sua "divulgação", com a "qualidade e integridade" de uma obra DE ARTE !...
È claro que quando se reune uma filarmonica com 140 músicos "de primeira", e se executa à perfeição, por exemplo, uma sinfonia de 4 movimentos, espera-se, por sue óbvio que, essa "peça" seja distribuida como um todo, para no mínimo, seja entendida !...
Não estou dizendo que DEVA ser ouvida dessa forma, em absoluto...Voce pode "se achegar mais" ao pra la´de conehcido 1º movimento da "sonata ao luar", de Beethoven, e ficar por ai...Mas certamente irá perder, a grandeza e sinergia do movimento subsequente, que por sinal é extraordinário !
Até o nosso queridíssimo KId Morigueira - MOreira da Silva ( que tive o prazer de conehcer perssoalmente, em uma entrevista que fiz com ele , aqui em Sampa, no anos 80, uma pessoa dotada de inteligencia e carisma superiores) merece ( ou mereceria ) esse "respeito", no mínimo ao aprendizado e sinergia de sua delicosa obra !
Disso tudo, posso dizer, que ao menos e graças a Deus, a hegemonia e "imperialismo" dos grandes corporativismos ( leia-se, "gravadoras"...) está indo "ralo-a-baixo", pelo seu óbvio, que acho não precisar entrar em maiores detalhes, assunto conehcido por todos, de sobejo...
Tudo ira se encaixando, e o tempo resolverá, mesmo que seja "pelas tabelas" !

Como sempre, seu artigo é primoroso, completo, e nos leva a divagar sobre as sendas da cultura, arte e educação !...Parabens , é pouco, Helena !
abraço

joe_brazuca · São Paulo, SP 11/2/2009 09:00
sua opinião: subir
joe_brazuca
 

KID MORINGUEIRA, digo...

joe_brazuca · São Paulo, SP 11/2/2009 10:12
sua opinião: subir
Sinvaline
 

Bela descoberta! Vou futricar tambem. Estou enviando o link para Djalma Correa, Kazadi e Sons do Cerrado
bjs
Sinva

Sinvaline · Uruaçu, GO 11/2/2009 10:34
sua opinião: subir
Monica Ramalho
 

bela investigação, helena. vou postar lá no 'laranja'.
beijos e volte logo! ;)

Monica Ramalho · Rio de Janeiro, RJ 11/2/2009 13:36
sua opinião: subir
Monica Ramalho
 

achei uma ilustração muito fofa pro post. vê lá, amiga: www.monicaramalho.com.br

Monica Ramalho · Rio de Janeiro, RJ 11/2/2009 14:11
sua opinião: subir
André Teixeira
 

Saudações Helena!

Muito proveitoso esse texto que nos presenteia com um livro fresquinho e comenta um outro que e$tá meio difícil de comprar... ambos servirão (e alguns outros, Tinhorão, Ruy Castro, Zuza, Tárik, etc) para compor bibliografia de livro que estou em vias de começar a escrever. A idéia dele (livro), no entanto está se desenvolvendo há alguns anos. 2009 escreverei sobre o Universo do vinil, colecionadores e vendedores de discos. Devidamente anotados! Seu texto também está salvo!!!

Obrigado,

A

André Teixeira · Aracaju, SE 11/2/2009 16:17
sua opinião: subir
Luiz Cabelo
 

ótimo texto, debate atual e instigante, parabéns!

Luiz Cabelo · Porto Alegre, RS 11/2/2009 20:28
sua opinião: subir
Kazadi
 

Bravo Helena!

Kazadi · Estados Unidos da América, WW 11/2/2009 22:50
sua opinião: subir
Edson Wander
 

Oi Helena, muito oportuna mesmo essa discussão. E ela fica mais interessante ainda se lembrarmos da notícia de retomada da fábrica de vinil de Belford Roxo, única da América Latina. A informação veio no apagar das luzes de 2008, dada pela Deckdisc, que capitaneia a coisa. E não é porque os diretores da cia acham o vinil lindo. É business mesmo, perceberam que o vinil voltou à baila e não só por culpa dos DJs. Muita gente voltou a comprar vinil e as grandes redes de livrarias já exibem gôndolas inteiras dedicadas aos bolachões, por ora importados. Sei não, mas com essa disseminação "inacompanhável" da produção independente-digital e apego táctil às coisas que tocam música, pergia vermos repetido na música a mesma convivência concomitante de formatos observada nos meios de comunicação. Lembram do papo de que a TV ia matar o rádio e o cinema ia matar a TV?... E o que deu? funk na cabeça de todas as formas, tudo ao mesmo tempo agora...
Bjs e abraços (a seus respectivos destinatários...)

Edson Wander · Goiânia, GO 11/2/2009 23:53
1 pessoa achou útil · sua opinião: subir
joe_brazuca
 

Muito bem lembrado e oportuno, Edson Wander.
E olha, como trabalho como engenheiro de som há 30 anos aproximadamente, vc tb deve saber da forte corrente mundial do "no digital" , no que concerne ao áudio, que persiste e cada vez ganha mais terreno.
Eu sou daqueles que acredito no híbrido, ou seja, acho que deva haver ai uma "mistura" das coisas, nme tanto ao mar, nem tanto a terra...
Uma coisa é certa : os grandes estúdios estão voltando às "velhas máquinas" analógicas, como gravadores multi-pistas não digitais, com a boa e velha fita, onde "não se sabe porque" ( alias, sabe-se sim, mas não vem ao caso agora...) o som tem mais pegada", mais peso, e agrada mais oas ouvidos "humanos"...
Qq dia, com mais paciência e tempo, tentarei discorrer sobre o assunto tão pol~emico e interessante : pura física !
um grade abraço

joe_brazuca · São Paulo, SP 12/2/2009 10:30
sua opinião: subir
Marquinho Garcia
 

Eita, mas esse debate ainda vai render muito, mas muito mais. Agora, com o colapso dos suportes físicos, transforma-se totalmente a prática da preservação/conservação, visto que o vínculo/dependência dos meios - e suas rápidas evanescências -- coloca-nos, reles produtores e consumidores, meio reféns da indústria computacional que para sobreviver se dedicará sempre em atualizar as extensões -- o s suportes atuais. Veja-se que é possível que o acervo que alguém tiver em MP3 pode de uma hora para outra não mais poder ser utilizado, se uma fagulha de interesse macroeconômico e "legal" passar pela cabeça das majors microsoft, apple, etc. Falei besteira? ou há algum fundamento? Parabéns pelo artigo.

Marquinho Garcia · Brasília, DF 12/2/2009 19:20
sua opinião: subir
joe_brazuca
 

Oi Marquinhos !...está certo, é isso mesmo...basta um "bitizinho" besta que só, pra ter que mudar tudinho...e la nave vá...os mesmos "majors" acabam ditando...rsrs
Agora, "colapso dos suportes físicos", é uma bobagem sem tamanho, né não ?..pensa bem...A não ser que vc esteja num teatro ou na rua, ou seja la onde for, qeu esteja ouvindo algo "ao vivo", o restante, precisa de algum suporte sim !...o mp3, por ex, ja que vc citou, precisa do tocador de mp3 !...que no frigir dos ovos, é uma memória super-física, paupável, enfim "matéria" em sua forma mais "primitva"...Muda-se os nomes e formatos, mas tudo continua o mesmo...né não ?...rs
LP, precisa de "pickup"
CD, precisa de player...
mp3 ou qq "droga" que inventem, ou PRECISA de um computador, ou de um palyer tb...rsrs
ou seja, que vantagem maria leva ?...rs
grande abraço...e como vc disse, o debate renderá, pro nosso próprio deleite e parendizado, claro...

joe_brazuca · São Paulo, SP 12/2/2009 20:11
sua opinião: subir
joe_brazuca
 

aprendizado...

joe_brazuca · São Paulo, SP 12/2/2009 20:13
sua opinião: subir
joe_brazuca
 

desculpe, quiz dizer MARQUINHO

joe_brazuca · São Paulo, SP 12/2/2009 20:28
sua opinião: subir
Helena Aragão
 

Valeu pelos comentários, pessoal. Edson, quem sabe vai ser por aí mesmo, vários formatos convivendo harmonicamente, sem necessariamente ter que enterrar um ao outro... Vamos observando e nos adatando a esses tempos de transição!

Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 25/2/2009 18:16
sua opinião: subir

Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.

filtro por estado

busca por tag

revista overmundo

Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!

+conheça agora

overmixter

feed

No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!

+conheça o overmixter

 

Creative Commons

alguns direitos reservados