De xodó do público universitário da capital federal, a banda Móveis Coloniais de Acaju vai se firmando como atração de alcance nacional. Os degraus vão ficando para trás: participação em festivais de destaque, apresentações em premiações televisivas de peso, capa de revista, faixas em trilhas sonoras, shows fora do paÃs.
O que tem conquistado os ouvidos é a mistura sonora – autodenominada “feijoada búlgara†– de rock, ska e outras vertentes do pop com ritmos brasileiros e do Leste Europeu, somada a uma quente performance de palco, que, aliás, sempre vai além do palco e catalisa manifestações ensandecidas do público. O que nem todos podem ver na ponta é que um modelo de negócios e arranjos singulares de organização alavancam esse sucesso crescente.
Trata-se de uma combinação de autogestão, profissionalização, estreita ligação com os fãs, uso intensivo de redes sociais, processo coletivo de criação, envolvimento direto dos músicos com as tarefas logÃsticas e administrativas e adesão a formas não-convencionais de distribuição e remuneração.
Estalo
O conjunto teve inÃcio em 1998. Em 2003, foi o grupo local convidado para o palco principal do BrasÃlia Music Festival, estrelado por Charlie Brown Jr., Ultraje a Rigor e a norte-americana Live. “Esse foi o grande estalo para encararmos a banda profissionalmenteâ€, lembra o produtor FabrÃcio Ofuji. “A banda viu que precisava ter um produtor, uma equipe técnica consolidada.†O circuito de apresentações até então praticamente se restringia a BrasÃlia, com exceção de algumas idas a Goiânia e São Paulo, e incluÃa bailes de formatura e festas de centros acadêmicos, além de shows de perfil variado. Havia pouca preocupação com as questões técnicas que envolvem uma performance ao vivo e o grupo era a ocupação secundária de seus integrantes.
Dois anos depois, o Móveis (eles se referem a si no masculino e no singular, e os fãs assim os chamam) lançou o seu primeiro álbum, Idem, em festa de iniciativa própria e de parceiros locais. Fundido com as festas Criolina e Move/Frenética, reuniu mais de 3 mil pessoas. Nesse momento, o grupo reforçou o lado empreendedor e começou o investimento em apresentações além do quadrado do Distrito Federal.
C_mpl_te, o trabalho seguinte, recebeu diversas premiações e destaques e foi eleito um dos cinco melhores de 2009 pela revista Rolling Stone. Tornou-se o trabalho mais baixado no projeto Ãlbum Virtual, da gravadora Trama, desbancando o recordista anterior, Piquenique, de Ed Motta, e nessa liderança permanece até aqui. Até 30 de março de 2011 foram 85.632 downloads do disco, realizados em pouco menos de dois anos. Segundo os números do projeto, o número de streamings (audições online) representa em média 3,2 vezes o de downloads.
“É uma banda icônica dessa geraçãoâ€, diz João Marcello Bôscoli, presidente da Trama. Ele lista o que considera as razões da ascensão moveleira: “Eles combinam show incendiário, com muito público, qualidade musical e postura inovadora, com microprojetos na internet, diálogo com os fãs. Trabalham de jeito muito intenso no ambiente de rede e agradam tanto o público mais ligado em pop quanto o de perfil mais independenteâ€.
Banda empresa
O perfil de self-made band remonta ao lançamento de Idem. A banda conversou com selos interessados em botá-lo no mercado e esses não se dispunham a prensar de saÃda a quantidade desejada de 3 mil CDs. A decisão foi ratear o valor da prensagem e vender o disco por conta própria. Em dez dias, cerca de 2 mil foram vendidos, o que levou os músicos a concluir que teriam perdido dinheiro caso começassem com uma quantidade menor.
“Hoje, somos uma banda empresa, que ainda não sabe se é banda/empresa ou banda-empresaâ€, diz FabrÃcio Ofuji. Em setembro de 2008 eles se formalizaram como pessoa jurÃdica. Com base em consultoria administrativa no inÃcio de 2009, criaram inclusive diretorias.
A condição de empreendedores se reflete na formação do grupo: Ofuji é integrante (e sócio), ao lado dos músicos, quando o costumeiro é o produtor ser colaborador ou contratado.
Os dez também “carregam pianoâ€, quase literalmente. Em muitas de suas viagens e exibições, fazem as vezes de roadies, carregando os próprios instrumentos e montando o palco. “Priorizamos a contratação de técnicosâ€, explica Ofuji. “Temos um padrão muito ágil de troca de palco. Recentemente, por conta de um acidente na estrada, precisamos botar tudo em ordem e passar o som em 40 minutosâ€.
Ao lado disso, a formação de cada um é aproveitada nas tarefas extrapalco, como mixagem, agendamento, assessoria de imprensa, identidade visual e até finanças. Sem falar nas vendas diretas (principalmente CDs e camisetas), parte importante dos ganhos.
Daà a comparação futebolÃstica ao “carrossel holandêsâ€, a seleção de Cruyff, em que os jogadores atuavam em diversas posições, de forma taticamente inovadora e solidária.
“Não dá para o artista ser simplesmente ‘o Artista’. Michael Jackson, o maior artista pop contemporâneo que vimos, é o grande exemplo disso. Participava de todas as etapas de produção – coreografia, clipe, produção musicalâ€.
Esse time não tem hoje um capitão, assume-se com caráter predominantemente coletivo. As decisões são tomadas de forma colegiada (há, inclusive, uma instância assim constituÃda, que reúne os dez integrantes, para as decisões em que o desejado consenso não vem).
Os shows respondem pela maior fatia da receita (e também dos gastos). Como empresa, a banda fixa uma remuneração mensal para cada um, igualitária, complementada pelo cachê, que varia em função do tamanho e do perfil das apresentações. E reinveste o lucro. As operações se norteiam por metas anuais e de médio prazo.
A música é hoje a fonte majoritária de renda, e apenas um dos integrantes tem uma rotina claramente dividida com outra atividade – é servidor concursado em autarquia federal de pesquisa. Mas eles não tencionam abandonar as atividades paralelas.
Hoje todas as composições do conjunto são creditadas a todos os integrantes.“Como mensurar as contribuições de cada um?â€, questiona Ofuji. Ele busca exemplos na MPB: Chico, Vinicius e Toquinho. “Às vezes, durante a ditadura, um dava sugestão de um verso, que era censurado, e era considerado criador tambémâ€. E cita o Roupa Nova como exemplo de uma carreira bem-sucedida com processo coletivo de criação.
Sem DRM
No projeto Ãlbum Virtual, uma marca patrocina a obra por um ano com R$ 15 mil a R$ 30 mil, em média, segundo Bôscoli, da Trama. Dois terços, pelo menos, ficam com a banda, e o restante com a Trama, que nesse caso ofereceu a estrutura para a gravação e arcou com a maior parte dos custos.
“Não tem DRM, que achamos inconstitucionalâ€, explica o empresário, referindo-se aos mecanismos técnicos que restringem a difusão de conteúdos digitais em função dos direitos autorais. Além de liberar o número de cópias por usuário (e total também), o acordo permite que as faixas fiquem disponÃveis em outras redes e para troca peer-to-peer. “Mas, como é um lugar seguro, muita gente opta por baixar aquiâ€, diz. Pelos seus cálculos, os projetos que envolvem patrocÃnio das marcas – Ãlbum Virtual, Trama Virtual e TV Trama – respondem hoje por 60% do faturamento da gravadora.
Embora as faixas do Móveis não estejam licenciadas em Creative Commons, a comercialização segue uma lógica similar à de uma de suas variantes: é autorizada gratuitamente para iniciativas que não geram lucro (como trabalhos acadêmicos) e mediante cobrança para as que geram. A avaliação é feita caso a caso por banda e editora.
C_mpl_te pode ser baixado de graça no site, mas é também vendido em três diferentes formatos: pela editora, no formato tradicional de CD (caixinha de plástico com encarte), via lojas (o álbum está no catálogo da Fnac, da Livraria Cultura e da Saraiva); pela banda, em embalagens mais simples e sem número de série, a R$ 5; e por ambos em digifile (caixinha de cartão), a R$ 20.
A teia de relações profissionais varia de acordo com o planejamento do grupo e da estratégia no perÃodo. Neste momento, além da Trama, um parceiro importante é o Canal Brasil, correalizador do DVD Ao Vivo no Auditório Ibirapuera.
Apesar do percurso como independente até hoje, a banda não se opõe totalmente à ideia de assinar com uma major. Conforme explica FabrÃcio Ofuji, a opção pelo melhor modelo se deu em cada momento da carreira e novas orientações poderão ser adotadas.
No debate da propriedade intelectual
O Móveis vê com bons olhos a discussão em torno dos regimes de propriedade intelectual e considera ter o papel de estimular a participação do público. “Embora não sejamos formadores de opinião no tema como o Teatro Mágico, acabamos sendo personagens nesse debate, né?â€, comenta o produtor FabrÃcio Ofuji. Nesse sentido, o pesquisador Paulo Rená, que fez mestrado sobre a liberdade na internet, foi agregado ao Blog dos Móveis. Eles acreditam na necessidade de atualizar a legislação e destacam, entre os objetivos, o de eliminar os intermediários na cadeia e o de buscar maior transparência por parte do Ecad. Quanto a tendências, avaliam que somente o aprofundamento do debate poderá delineá-las.
Ofuji, aliás, estudou em seu mestrado a internet como espaço para artistas independentes, abordando as trajetórias do Móveis, da jovem cantora Mallu Magalhães e do Teatro Mágico, que ele aponta como “banda irmã†e interlocutora constante principalmente quanto a estratégias de merchandising.
Cupins
As redes sociais têm destaque no site oficial da banda, ocupando grande parte da home page. Existe uma relação cotidiana com os fãs, que se manifestam de maneira particularmente calorosa e ativa e se chamam de “cupinsâ€, correspondendo-se de diferentes regiões do paÃs.
Entre outras redes, a banda tem base no Twitter (28,8 mil seguidores), no Facebook (perfil com 5,0 mil amigos e página com 7,6 mil likes), no YouTube (canal próprio, 1,7 mil assinantes, 1,0 milhão de visualizações) e no Orkut (comunidade com 30,6 mil membros) e usa toda a sorte de recursos de compartilhamento de conteúdos. O apoio via Twitter garantiu presença em eventos importantes em que o público podia votar nas atrações e o YouTube foi fundamental na preparação para a chegada do segundo disco. No caso de C_mpl_te, videoclipes de todas as faixas foram previamente postados para minimizar o atraso, familiarizando o público com elas (a data de lançamento estava marcada e o disco não ficou pronto a tempo).
O Móveis optou por manter seu site como vértice dessas redes e ferramentas. Também ali uma loja virtual foi inaugurada em abril.
Outras iniciativas ajudam a manter o trabalho em evidência, fidelizar o público e estreitar o contato com outros artistas. Depois de um EP pioneiro no compartilhamento, a liberação de faixas para streaming e download no primeiro disco começou restrita a algumas faixas e depois foi generalizada. No projeto Adoro Couve (trocadilho com cover), planejado como forma de gerar novidades musicais e exercitar os processos de composição e arranjo, era gravada uma música de outros autores todo mês. O projeto possibilitou também o envolvimento com a linguagem audiovisual, em videoclipes dirigidos e editados pelo próprio conjunto e veiculados no canal da banda no YouTube. O produtor musical do segundo disco, Carlos Eduardo Miranda, foi opinião importante nessa frente.
O festival Móveis Convida, em que o conjunto recebe bandas e músicos de outros pontos do paÃs, cria e fortalece laços, consolidando o lado de eventos da empresa e abrindo portas para o conjunto musical em outras regiões. As 11 edições receberam cerca de 500 artistas e um público total estimado em 36 mil pessoas.
Em paralelo, o Móveis investe nos canais tradicionais de difusão e divulgação. “A avaliação é que estar na mÃdia tradicional é tão importante quanto participar do [movimento] Música Para Baixar ou visitar uma rádio comunitáriaâ€, diz o produtor Ofuji. Entre os resultados, apresentação no Video Music Brasil da MTV em 2009, matéria de capa na Revista da Gol e inserção de faixa na trilha de Araguaia, novela da Rede Globo.
Há, ainda, atividades voltadas à formação de profissionais no setor, uma frente que vai ganhando corpo com a Comissão de Bandas e Artistas Circulantes (CBAC), na qual os moveleiros têm atuação central. Seu objetivo é consolidar a cena cultural do Distrito Federal e trocar experiências, estimulando a autonomia dos participantes como agentes culturais. A comissão promove reuniões, debates e oficinas, bem como intercâmbio com músicos de outras regiões.
Para além do nicho
Os planos para o futuro próximo incluem o projeto Rotas Musicais, que envolve 15 estados e foi aprovado pelo Programa Petrobras Musical, e a atuação também como editora musical.
Esses móveis que são carpinteiros que são carregadores que são vendedores avaliam estar ainda aquém de seu potencial. “A gente entende que o nosso não é um trabalho de nicho, pode ser de massaâ€, afirma FabrÃcio Ofuji. O DVD com o Canal Brasil, por exemplo, é enxergado como caminho para chegar a um público mais velho que o atual.
João Marcello Bôscoli faz coro: “A vocação natural deles é ir para um patamar de Skank e Paralamas, o patamar máximo de uma banda pop. Sem nenhum esforço polÃtico muito grande, conseguiram ter música em novela das 6 e frequentar programas de TV como o de Serginho Groisman e o Som Brasilâ€.
Oi, Pedro, muito bom o texto! Tenho algumas perguntas que acho que os integrantes da banda e também o Bôscoli poderiam responder, para ampliarmos um pouco o debate.
Abraços!
1) O que a banda acha que foi fundamental para o “estouroâ€? Como foram convidados para o palco do BrasÃlia Music Festival?
2) Fiquei curiosa para saber como o Ofuji diferencia banda/empresa de banda-empresa.
3) Também queria saber que diretorias a banda criou em seu modelo de gestão. Ainda funcionam assim? Como chegaram a esse modelo, houve alguma ajuda externa? Outra questão relacionada à gestão é a formalização: é fácil para os produtores culturais se formalizarem? Há vantagens e desvantagens na formalização?
4) Dentro da música, qual a maior fonte de renda? Shows, CDs e DVDs, camisetas e outros produtos, prestação de serviços como eventos, arrecadação de direitos por execução pública? Dá para saber qual o percentual de cada atividade desta na receita total?
5) As obras estão em regime de copyright tradicional e as pessoas interessadas na liberação têm de entrar em contato com a banda e/ou com a editora? Ou, mesmo sem uma licença formal, a banda já diz antecipadamente o que pode ou não ser feito com as obras?
6) Como veem esta questão do download gratuito para o modelo de negócios? Por que adotar um modelo que mistura download gratuito com venda?
7) O patrocÃnio no site da Trama vale por um ano. O que acontece depois desse perÃodo? As músicas continuam disponÃveis para streaming/download? Os contratos de patrocÃnio são renovados?
Seguem as respostas encaminhadas por e-mail pelo presidente da Trama, João Marcello Bôscoli:
4) Sem dúvida os shows são (e sempre foram) a maior fonte de receita. Os direitos, somatória de vendas de mÃdias, licenciamento e execução pública, seguem em segundo lugar, eu creio.
6) Acho que são complementares. A maior parte da música ouvida no século XX foi de graça. A pessoa ouvia - no rádio ou tv - de graça e depois comprava algo: uma mÃdia fÃsica, um ingresso ou um produto qualquer (camiseta, boné, poster, etc).
7) Quando acabasse o perÃodo, a obra inicialmente seria retirada. Essa era a ideia em 2008. Mas os artistas preferiram deixar lá, afinal, a obra está na rede de qualquer forma, afinal, não há DRM. Percebemos que seria insólito tirá-la, uma vez que está em todo lugar...
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