... do rock que ouviu, no carro do Raul lá-lá-lá...” ¹
Ouvir no rádio uma musica que gosta é realmente diferente de ouvir no CD. Mesmo que seja no rádio do carro e tendo o CD no carro. No rádio é mais emocionante.
O fato de saber que pessoas nos mais diversos lugares estão ouvindo a mesma música que você, e no mesmo momento, deixa as coisas na mesma freqüência, criando uma espécie de ligação entre os seres humanos pelas ondas do rádio. Uma comunicação telepática entre pessoas que nem se conhecem.
A cena do filme "The Wonders" que mais me emocionou foi quando eles ouvem a música no rádio pela primeira vez. A banda está em pontos diferentes da cidade. Um ouve no carro, outro na loja em que trabalha, a namorada do cantor ouve no seu modelo hi-tech de walkman, em meados dos anos 60, época em que se passa o filme de Tom Hanks, feito em 1996. Todos, ao ouvirem a música, vão correndo se encontrar no mesmo lugar, sem marcar nada. Não havia celular. Se encontraram na loja de Guy Patterson, o baterista da banda, para celebrar aquele momento.
Vez ou outra, um amigo ou um parente me liga para dizer que “acabei de ouvir uma música da sua ex-banda na rádio”. Eu nunca tive a sorte de ouvir quando estava na banda, o que me deixava frustrado, mas hoje continuo com a sorte de ainda não ouvir, o que me deixa aliviado.
Ultimamente, quando me perguntam o que mais tenho ouvido, respondo “Daniela Mercury”.
Por conta de algumas dessas músicas que estão tocando serem também de minha autoria, fui editá-las, para que, pelo menos, eu possa ganhar algum dinheiro com isso.
Amigos do ramo me indicaram editoras e escolhi pela Páginas do Mar.
Ao adentrar no recinto, a decoração me disse que a editora era de propriedade da cantora Daniela Mercury. Fotos e mais fotos dela espalhados pelo ambiente. Nesse primeiro dia que fui lá, só me incomodei com o silêncio de museu da casa. Nem uma musiquinha tocando. Cadê a alegria? Alegria agora. Agora e amanhã.
Porém, o profissionalismo da instituição me deixou à vontade.
Como tenho ligado com uma certa freqüência pra lá, para resolver questões e ou marcar reunião para ler contrato, enviar documentos, assinar contratos..., tenho ouvido Daniela direto.
– Um minutinho senhor que já vou passar a sua ligação – diz a telefonista da casa, me deixando na espera ouvindo um sucesso radiofônico da cantora.
Se um dia colocarem “não, não, não, não me abandone”, acho que abandono a editora.
De que adianta toda a tecnologia, toda a velocidade de informação, toda a pesquisa do ramo da informática, os HD’s de um terabyte, supercomputadores com infinitas memórias RAM, ultra processadores com milhares de Ghz, wireless... se ainda existe no mundo um lugar chamado Cartório?
Dei uma assinatura mal dada nesses contratos de edição e tive que ir num cartório para mudar a minha firma. Tinha feito ela tempos atrás e, com o advento da informática citado no parágrafo anterior, minha letra piorou muito a ponto de minha assinatura não ser mais reconhecida. Tive que ir no cartório atualizar os meus arquivos.
Depois de conseguir um milagre e encontrar uma vaga em frente ao Pituba Parque Center, onde fica o cartório em que registrei minha firma, o guardador de carros disse, assim que eu saí do carro:
– Boa tarde senhor, dois reais na volta pra ajudar, e Jesus é a salvação. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao pai se não for por mim.”
– João, cap...
– Nããão, é Jesus, Jesus é a verdade, só Jesus – disse ele me interrompendo.
João, capítulo 14, versículo 6, que diz “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao pai se não for por mim” é a única citação que sei de cor. Ia finalmente usá-la, mas o guardador não deixou.
Ri e fui em direção ao cartório. Eram 13:30. Perguntei ao segurança o caminho do estabelecimento e ele mandou eu virar a esquerda e ao ver uma fila, parar. Era ali.
Logo na entrada do cartório tem um balcão escrito “Senhas e Informações”. Fui pedir uma informação.
– Boa tarde, quero saber se...
– Pegue a senha. Próximo.
Pelo estado em que a atendente estava, pela postura na cadeira, pelo semblante e pelo corte de cabelo, achei melhor pegar logo a senha. Senha 129.
Ao lado do balcão dela, um outro balcão de uns seis metros de comprimento, onde as pessoas são atendidas. Em frente a esse balcão de seis metros, cadeiras para espera, com pessoas esperando e olhando o letreiro que mostravam as senhas. Fui olhar o letreiro para ver em que número estava. Número vinte. Olhei para o meu papel e confirmei o absurdo: ele realmente tinha 129 escrito. Olhei de novo para o letreiro, ainda sem acreditar, e ele marcava vinte. Ainda esperançoso, pensei que o letreiro, de repente, poderia estar com defeito e na verdade a senha ali é 120. O “1” poderia estar apagado, mas olhei pra quantidade de pessoas esperando e constatei que eram muito mais que nove. Um office-boy me confirmou que o letreiro estava certo. Me mostrou com orgulho a sua senha de numero 21. Aí passei a achar que valia a pena enfrentar o humor, a postura na cadeira, o semblante, o corte de cabelo e voltei ao balcão anterior.
Como estava com a máquina fotográfica na mão, tive a idéia de apenas pedir para só olhar a minha assinatura, pois bateria um retrato e aí poderia fazer igual quando fosse assinar. Ingenuamente, tive a esperança que para esse serviço de apenas olhar, não precisaria pegar a fila.
– Próximo.
– Olhe só, eu só queria ver a minha assinat...
– Já pegou a senha?
– Já, mas é que...
– Só com a senha. Próximo.
– Tá no numero 20, a minha é 129. É isso mesmo?
– Isso, tem 99 pessoas na sua frente. Próximo.
– Não. Tem 109 – disse eu.
– Isso, 109, pior ainda. Próximo.
Um milhão de pensamentos sobre o que fazer veio em minha mente nessa hora:
(a) se acalme e espere.
(b) desista e volte outro dia.
(c) Vá tomar no c... sua filha da p...
Achei a resposta em um comunicado ao lado do balcão, que dizia que se eu marcasse a letra “c”, estava arruinado. Eu tirei uma foto do comunicado, para poder reproduzir com total fidelidade aqui no texto.
O comunicado dizia:
VOCÊ SABIA QUE: CONFORME O ARTIGO 331 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO, O DESACATO AO FUNCIONÁRIO PÚBLICO NO EXERCÍCIO DE SUA FUNÇÃO, OU EM RAZÃO DELE, PREVÊ PENA DE DETENÇÃO DE 06 (SEIS) MESES A 02 (DOIS) ANOS OU MULTA.
Agora a melhor parte do comunicado.
CONDUTAS CONSIDERADAS DESACATO:
INSULTAR E ESTAPEAR A VÍTIMA; RISO; ATIRAR PAPÉIS NO BALCÃO, NO SOLO OU RASGAR; PROFERIR PALAVRAS DE BAIXO CALÃO; AGRESSÃO FÍSICA; BANDIR ARMAS COM EXPRESSÃO DE DESAFIO; PROVOCAÇÃO DE ESCÂNDALOS COM ALTOS BRADOS, EXPRESSÕES OU GESTICULAÇÕES GROSSEIRAS E OFENSIVAS; E CAÇOAR DA VÍTIMA.
Esse comunicado deixa o cidadão completamente indefeso. Ele só pode respirar. Nem rir pode. Quando li a palavra “RISOS”, quase gargalhei, mas engoli o riso, poderia ser preso. Rir naquele lugar é pena grave.
Fico pensando como seria bandir uma arma sem expressão de desafio.
Aponta uma arma para o cabelo dela e diz, sorridente:
– Boa tarde, tudo bem? Quero uma informação...
Note que a palavra “bandir” está escrita de forma incorreta. Mas no comunicado, ela está assim mesmo, “bandir”. Porém, alguém ali achou melhor consertar de caneta ao invés de ir no Word e imprimir outra folha. Botou um “r” entre o “b” e o “a”, corrigindo o erro, deixando “brandir”.
Os erros deles são corrigidos dessa forma, sem burocracia, numa canetada, sem ter de ir no sistema, porém nós temos que esperar para resolver problemas tão simples. E esperar muito.
Sentei e esperei por exatos 10 minutos. O rapaz de número 21 roia todas as unhas e não satisfeito, roia também o bocal de sua caneta bic. Achei melhor dar uma volta pelo Pituba Parque Center. Olhei umas revistas, tomei um café, comprei um fio de extensão trifásico para o meu computador, tudo lentamente, sem pressa e, exatos 25 minutos depois, voltei. O letreiro marcava o numero 30.
Nessa hora bate um desespero em saber que se desistir, a ultima hora foi toda perdida, assim como, a agenda de afazeres do dia. E bate um desespero maior em constatar que esperar, e calado (tinha um PM de plantão lá), é a melhor opção.
Resolvi dar outra volta e fui num shopping ao lado, o Boulevard 161, onde tem uma livraria. Fui devagar, olhando o movimento, os transeuntes, as vitrines... entrei na livraria, folheei livros, li trechos de alguns, encontrei um amigo, conversei... tomei um suco de maracujá e após exatos 40 minutos, voltei calminho, calminho ao cartório. O suco de maracujá adiantou. Se não fosse ele eu teria sido preso. O letreiro maldito marcava a senha de número 42.
Sentado nas cadeiras de espera, avistei um amigo, Bruno Mocotó, a senha dele era 70. Disse que me vendia por 50 reais.
Saí de novo, tomei outro café, olhei outras revistas, fui numa agência de propaganda que trabalhei e que era ali perto e voltei uma hora e meia depois. Parece que resolveram sair do ponto morto e engataram pelo menos a primeira marcha. Estava na senha 108.
Sentei para esperar. Não correria o risco de sair e voltar depois de 30 minutos pra ver o letreiro marcando “senha 130”. Vai que eles resolvem engatar a segunda.
Na minha frente, vi outras duas mensagens coladas na parede. Uma era:
“Senhor! Neste local abençoe quem entra, dê paz a quem fica e proteja quem sai", que depois vi que essa mesma mensagem estava em todos os biombos do local, e a outra era:
AVISO. DISTRIBUIREMOS 200 (DUZENTAS) SENHAS EM CADA TURNO.
PELA MANHÃ, A PARTIR DAS 8H.
E PELA TARDE, A PARTIR DAS 13H.
Alguém, correndo o risco de ser preso, escreveu de caneta “Por que?” no espaço em branco abaixo desse aviso.
Um outro alguém, correndo o risco de ser morto, escreveu de caneta a resposta “porque aqui só tem vagabundo”. Para esse papel ainda estar lá, aquilo deve ter sido feito naquele dia.
Chegou minha vez. Fui na direção da mulher que me atenderia e já fui observando. Era igual a do balcão de informações. Idêntica. Postura péssima na cadeira, cara fechada, impaciente e com um crucifixo pendurado no pescoço, que me fez lembrar do guardador que esperava os meus dois reais. Ela estava a frente de um computador da década. Da década de 90.
Tive medo de dar boa tarde e ser preso. O PM estava ao lado dela.
Expliquei o que queria e quando ela ouviu que eu pretendia bater uma foto da minha assinatura, aconteceu um milagre. Jesus!, ela riu.
– Tirar um retrato? – disse ela.
– É.
Ela então voltou ao seu estado normal, respirou fundo, balançou a cabeça negativamente, olhou para o policial, e sem o menor constrangimento de eu estar ali do lado, disse:
– Mas é cada um que eu encontro aqui... Ai Meu Deus, não sei não, viu... O que eu faço meu Deus? A identidade por favor, meu filho.
Sentindo o olhar de 70 pessoas sobre mim, entreguei minha identidade.
Ela respirou fundo de novo e com muito esforço se levantou da cadeira e foi até o armário de ferro procurar a minha pasta. Voltou depois de oito minutos.
Não precisaria bater a foto. Fiz uma nova assinatura. Registrei a que modifiquei naturalmente. Mas bati a foto só pra pirraçar.
– Vou ter que escrever um livro – disse ela, ao devolver minha identidade.
– Sobre os absurdos que você vê aqui? – perguntei.
Ela respondeu com um balançar de cabeça e fazendo cara de que está de “saco cheio”.
– Então eu vou fazer um texto... – disse eu.
“... e nele vou mandar a senhora pra PUTAQUEPARIU”, pensei.
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(1) Meu amor que mau humor, Blitz, de Evandro Mesquita e Antonio Pedro.
Cury, grande Cury de belas passagens, esta é uma delas - um tudo, ironia, humor - mas acima de tudo um grande texto.
Cury, taí achei uma informação importante a da sintonia de ouvir musica pelo rádio do carro, é realmente magnetizante, imanante.
- Agora descobrir porque a minha mulher não limpa a casa sem ligar o rádio e sem me mandar para a rua,
um abraço, andre
cury! bom ver teus textos por aqui tb!!! uma vez luis precisou ir neste cartório pra reconhecer a firma, mas sabe q até não demorou tanto??? demos sorte... beijo
fernandamonteiroc · Salvador, BA 3/8/2007 22:48
tive que ler essa pôrra toda, pq gostei.
até votei.
fina ironia reflexiva,
acho que dos textos que mais surtem efeito
sobre nossa geração de loucos que não prestam atenção a nada mais, a não ser que ele seja assim uma despretensiosa prosa envolvente, inteligente e ácida.
vai escrevendo.
www.sitiodoesso.com
Fina ironia. Seu texto é muito envolvente, leve. Parabéns.
Flávio Herculano · Palmas, TO 6/8/2007 09:24
Falar dos textos do Cury é chover no molhado, cada um melhor que o outro. Ainda me lembro do impacto que recebi do primeiro que li, uma história meio nom sense em que ele e seus sócios riam mais do que qualquer coisa e eu não conseguia parar a leitura mesmo desconfiado de que ela tava querendo era tirar uma com a minha cara. Sem dúvida é, para mim, o melhor escritor do overmundo. Ainda vou escrever sobre a sua obra, isto é, sobre quanto me fascina o seu estilo requintado de contar histórias requentadas do cotidiano.
beijos e abraços
do Joca Oeiras, o anjo andarilho
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