Ñe Ê Ngatu: a revolução está no ar!

Foto: Rodrigo Teixeira
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Rodrigo Teixeira · Campo Grande, MS
8/3/2006 · 163 · 9
 

"Que língua esquisita é esta?" é a dúvida de quem sintoniza pela primeira vez o inusitado Ñe Ê Ngatu. O programa da FM Regional é apresentado no idioma que dominou a América do Sul em seus primórdios. Com uma sonoridade peculiar, o Ñe Ê Ngatu é uma mistura de português, espanhol e guarani. Da Amazônia à Terra do Fogo, do paredão da Cordilheira dos Andes até o centro do Pantanal, em todos os cantos do continente se falava o Ñe Ê Ngatu. "Foi o principal idioma da América do Sul por 300 anos", ressalta Margarida Román, jornalista e âncora do programa batizado com o nome da língua.

Vale a pena acompanhar a locução de Margarida. A jornalista nasceu em Porto Murtinho, fronteira de MS com o Paraguai. Aprendeu primeiro o guarani, depois o espanhol e só então, já com 11 anos, o português. O sucesso do programa, que em 2003 chegou a atingir 80 mil pessoas na capital do Estado, tem relação direta com o talento da jornalista e não só pelo inusitado de se escutar o Ñe Ê Ngatu. Margarida não raramente incomoda o establishment com suas posições sobre os mais variados assuntos. Tem forte sotaque fronteiriço. Oscila de temperamento, grita, faz dengo.... Mas não interessa. Ela gruda o ouvinte no radinho. "O programa ainda não foi compreendido em Mato Grosso do Sul. O poder rejeita. Político só pensa em economia. Para eles, o Ñe Ê Ngatu é vender geladeira para pingüim", define a jornalista.

Margarida e o seu Ñe Ê Ngatu resistem arduamente na FM Regional. A direção já mudou o programa de horário, diminuiu a freqüência semanal e atualmente é transmitido apenas segunda, entre 20h e 21h. O Ñe Ê Ngatu é sinônimo de saga para Margarida. Ela começou a pesquisar a língua em 1977, após trabalhar com o cineasta Sylvio Back para um filme sobre a Guerra do Paraguai. O primeiro contato com o idioma foi na cidade paraguaia de Missões, de onde veio a família materna de Margarida. Formatou o programa em 1982 e foi vender a idéia. Não conseguiu. Em 1996 entrou para a TV Educativa de MS - hoje TVE Regional -, e quase 20 anos depois, só em 2001, teve apoio para concretizar o Ñe Ê Ngatu. "Engavetaram várias vezes o projeto. Nem a iniciativa privada e nem o governo aceitavam", relata.

Em 2005, o perfil do programa mudou bastante. Firme ao expor suas idéias, Margarida deixou o entretenimento de lado e passou a debater a saúde pública do Estado no geral e de Campo Grande em particular. Margarida conversa mais com médicos, políticos e profissionais da saúde e cada vez menos com artistas e personalidades. A reviravolta, no entanto, tem a ver com a difícil realidade de Margarida. O mais velho de seus três filhos, Ramiro, atualmente com 20 anos, enfrenta há dois anos um câncer. "O programa ganhou o componente da cidadania. Com a tragédia do meu filho entrei de cabeça no SUS e nunca mais vou sair", profetiza.

Mas Margarida quer fazer mais ainda pela língua que resiste contra o tempo. Ela luta para que o Ñe Ê Ngatu se torne o segundo idioma oficial do estado. "Atualmente só em Campo Grande deve ter uma média de cinco mil pessoas que falam o Ñe Ê Ngatu. Isso sem contar a população indígena", ressalta. A jornalista lembra que na cidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, o Ñe Ê Ngatu já foi transformado em um dos cinco idiomas oficiais. Para Margarida, a manutenção da língua é um fator primordial para a própria sobrevivência de toda a Nação Guarani. "O índio se suicida em Dourados, por exemplo, devido ao paredão que encontra. Ele está totalmente dominado pela ausência cultural e impotência econômica", analisa.

Margarida começou a carreira aos 17 anos como recepcionista do extinto Jornal da Cidade, em Campo Grande. Logo foi fazer revisão e promovida a repórter. Saiu do jornal em 1994 e passou pelos principais órgãos de imprensa da Capital, como as emissoras TV Morena, TV Campo Grande e TV Record e o jornal diário Correio do Estado ( www.correiodoestado.com.br). "Trabalhei como produtora e só não passei para o vídeo por causa do meu sotaque", afirma. Antes de entrar para a TVE em 1996, atuou em Assunção, no Paraguai, na Revista Tiempo e nas rádios Ñanduti e CBN Nacional. A ligação com o Paraguai é mais do que presente no programa de Margarida. A jornalista faz questão de tocar a música do país e não só as canções tradicionais, mas o que de novidade acontece por lá. Com isso, apresenta o rock paraguaio ( www.kamikazeparaguay.com) para os veteranos adoradores de guarânia e músicas clássicas do folclore paraguaio para os jovens moderninhos. "A reação dos mais velhos é a de que não existem mais compositores como antigamente e que está havendo um abandono da polca. Mas faço questão de que todos escutem e que exista este feedback de opiniões", ressalta.

Confira abaixo a entrevista com Margarida Román:

Você acabou mudando o foco do programa para a saúde após a doença de seu filho Ramiro. Como é explorar um assunto que se mistura com a sua vida pessoal?




Não se tem escolha nestas horas. Lamentavelmente. Meu filho descobriu um câncer aos 18 anos. Desde então, toda a mudança de rumo no Ñe Ê Ngatu tem a ver com o componente da cidadania. Com a tragédia do meu filho entre fundo no Sistema Único de Saúde, o SUS. Acho que nunca mais vou sair. Encontrei nos ambulatórios índios e mulheres com câncer e que nunca tinham visto sequer uma injeção. Por isso, ter saído da linha de entretenimento e seguido para o jornalismo foi bem natural. Além disso, sou índia e não suporto rotina.

Você tem idéia de quantas pessoas o programa atinge em MS?


Atualmente não. Mas independentemente disso nunca me dispus a fazer um programa para a massa. Sei que em Campo Grande devem ter 5 mil pessoas que falam o Ñe Ê Ngatu, sem contar os índios. Não me passaram os números agora, mas em 2003, quando o programa era quarta, das 19h às 20h, a pesquisa da emissora indicou que atingíamos 80 mil ouvintes em Campo Grande.

É mais de 10% da população da Capital...

Pois é. A Vila Popular, por exemplo, é um local em que temos uma audiência incrível. Pelo menos 90% dos moradores do bairro com mais de 70 anos falam o Ñe Ê Ngatu. Na verdade, o idioma foi proibido com o fenômeno das ditaduras sul-americanas. Em Mato Grosso do Sul, na década de 60, muitos pais de alunos foram chamados às escolas e a ordem era para que não se ensinasse mais o guarani aos filhos, muitas vezes descendentes de paraguaios. E é este o público do programa. As gerações que passaram por isso.

Você pretende transformar o Ñe Ê Ngatu em segundo idioma oficial do MS. Acha que vai conseguir?

O município de São Gabriel do Cachoeiro, no Amazonas, conseguiu. Podemos conseguir também. Vamos começar uma campanha em 2006. Já encaminhei o projeto para a Câmara dos Vereadores e os deputados federais. Seria uma forma também de resgatar e perpetuar o modo de falar dos terena, kadweu, guarani e, principalmente, dos guató e xavante, que correm o risco de desaparecerem do mapa. A questão é que não se pode dissociar o idioma da vida. Quando tiraram a língua dos índios todos se enfraqueceram. O índio se suicida em Dourados, por exemplo, devido ao paredão que encontra. Ele está totalmente dominado pela ausência cultural e impotência econômica. Mas enquanto houver fronteiras o Ñe Ê Ngatu vai resistir.

Por que você acha que demorou quase 20 anos para finalmente conseguir fazer o programa?

A desculpa geral era a dificuldade do próprio idioma. Falavam que ninguém iria se interessar. Na minha opinião, apesar de termos um público cativo, o programa ainda não foi compreendido em Mato Grosso do Sul. O poder, principalmente, o rejeita. Político só pensa em economia. Para eles, o Ñe Ê Ngatu é vender geladeira para pingüim.

O que você sente ao se comunicar em Ñe Ê Ngatu?

É uma emoção. Para falar este idioma verdadeiramente a pessoa precisa ter esta amálgama da fronteira dentro dela. Eu falei primeiro o guarani, depois o espanhol e, já com 11 anos, o português. Justamente os três idiomas que se misturam no Ñe Ê Ngatu. Porto Murtinho era uma cidade muito cosmopolita. Lembro que com 16 anos já falava as três línguas e ainda escutava o árabe dos comerciantes da cidade e o inglês de alguns norte-americanos que transitavam por lá. No Mato Grosso do Sul existe uma biotecnologia idiomática. São muitos descendentes de colônias diferentes. Campo Grande impressiona por como é híbrida culturalmente. No fundo, todos nós da América do Sul somos índios. São poucos os realmente brancos. E os negros vivem geralmente em guetos. Meu objetivo principal com o programa é a gente se conhecer. Olhar primeiro para a nossa própria aldeia. No fundo, podem até gostar ou não do programa, mas o Ñe Ê Ngatu marca pela diferença.

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Rodrigo Teixeira
 

O programa Ñe Ê Ngatu mudou de horário e foi ampliado na FM Regional! Agora é transmitido aos sábados, entre 10h e 14h! Está melhor do que nunca!

Rodrigo Teixeira · Campo Grande, MS 28/7/2006 19:10
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Ñe ê ngatu Margarida
 

Ñandejara ta ne mainteiveke che karaí - que Deus te abençoe e te dê a prosperidade merecida. Obrigada, Rodrigo.

Ñe ê ngatu Margarida · Campo Grande, MS 8/8/2006 20:49
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DiogoFC
 

Comovente!

DiogoFC · Criciúma, SC 21/11/2006 18:45
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bucadantas
 

Parabéns Rodrigo...vou tentar ouviar a rádio!!!

bucadantas · Natal, RN 2/4/2007 14:01
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Cacá Farias
 

Excelente trabalho, Rodrigo. Sou interessado em cultura indígena, curioso em tupi-guarani e principamente no Ñ Ê Ngatu. Pesquiso sozinho, garimpando coisas em sebos, na internet. Gostaria muito de ter contato com Margarida Román, de quem quem, a partir da sua matéria, passo a ser fã, pelo inestimável trabalho de resgate da verdadeira língua brasileira e sulamericana. Vou procurar ouvir a rádio!

Cacá Farias · Belém, PA 6/6/2007 08:37
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Rodrigo Teixeira
 

Olá Diogo e Bucadantas e Cacá! Superobrigada.

A questão é que o governo mudou auqi em MS (saiu PT e entrou PMDB) e com isso a rádio foi reformulada.
Infelizmente o programa da Margarida foi retirado da grade e não migrou para nenhuma outra. Ou seja, o programa acabou, o que me deixou muito triste.
Perdi o contato com a Margarida.
Mas assim que conseguir email ou fone eu posto aqui.
abração

Rodrigo Teixeira · Campo Grande, MS 19/8/2007 22:20
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Rafael Cogo
 

Olá Rodrigo, olá pessoal!
Estou procurando a Margarida para a realização de um documentário. Soube que ela está em Brasília, mas não consegui ainda um contato. Preciso de ajuda nesse sentido.
Abraço!

Rafael Cogo · Campo Grande, MS 5/10/2007 16:58
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Ñe ê ngatu Margarida
 

hola, Rafael Cogo. Estoy en este sítio y mis teléfonos son 61 9995 3645/ hasta 16 de ouct. estoy en el 61 3311-1556/1557.
gracias por su atención,
Margarida Román
prensa.mercosur2007@terra.com.br,
prensa.mercosur2007@globo.com

Ñe ê ngatu Margarida · Campo Grande, MS 5/10/2007 21:43
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Ñe ê ngatu Margarida
 

hola, Rodrigo. Tu síntesis con lo hecho a Ñe ê ngatu es genial. Pero no lo lamento. Brevemente tendrán notícias de Ñe ê ngatu, ahora en su debido lugar. Claro que me gustaba escarrar al dolor del rechazo a través de una emissora de rádio pero recordemos que son más de 500 años de opresión, saqueo, estupro, genocídio, corrupción, impunidad - enfin, niño, 500 años de america latrina.
Y a eso todo hemos supervivido porque nos manejamos hacia la eternidad.
Con intergaláctica estima, respeto y admiración por el periodista, por el músico y por el filósofo,
Margarida Román
61 9995-3645
prensa.mercosur2007@terra.com.br,
prensa.mercosur2007@globo.com
ps: como faço para ter prensa.mercosur2007@overmundo.com.br, neengatu@overmundo.com.br, Rodrigo?

Ñe ê ngatu Margarida · Campo Grande, MS 5/10/2007 21:55
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