Noiva encontrada dormindo em museu

Claudia Rangel
Vestidas de branco: crítica social ou brincadeira conceitual?
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Ilhandarilha · Vitória, ES
25/8/2008 · 240 · 20
 

Meu primeiro contato com a obra de Nelson Leirner ao vivo foi difícil: numa exposição coletiva do MAM, no Rio, vi as dezenas de fotografias de bebês fofinhos da fotógrafa neozelandesa Anne Geddes transformadas e interferidas pelos desenhos um tanto agressivos de Leirner. Confesso que não gostei. Embora também não goste dos bebês fofinhos da Anne Geddes, ver assim aqueles bebês rosados enfeitados pelo grafite obsceno do Leirner foi um choque. E não foi só para mim: a apropriação que o artista fez dos bebês da Anne Gueddes foi censurada pelo juizado de menores do Rio de Janeiro em 1998, o que provocou manifestação da classe artística e uma ampla discussão sobre a censura nas artes.

Nelson Leirner é um artista que tem como motor de sua obra a polêmica e a provocação. Durante o regime militar ele se recusou a participar das bienais de 69 e 71. E, em 1974, criticou o mesmo regime com sua obra A Rebelião dos Animais, que recebeu o prêmio de melhor proposta artística do ano da Associação Paulista de Críticos de Arte. Só pra contrariar, no ano seguinte apresentou à mesma associação, sob encomenda, os troféus da premiação da APCA - em xerox! Foi recusado.

Sem os militares no poder, Nelson aponta sua metralhadora para os ícones da sociedade de consumo. Mas sem perder o humor irônico e a militância política que caracterizam seu trabalho. Humor que está claramente presente na sua exposição Vestidas de Branco, que está no Museu da Vale, em Vila Velha, até dia 28 de setembro.

Segundo a divulgação dos organizadores, Nelson começou a pensar a exposição Vestidas de Branco a partir da observação das noivas que usam o belo espaço do Museu da Vale como cenário para seus álbuns de casamento. Começou, portanto, pelo lado de fora do Museu. O que ele faz na exposição é colocar para o lado de dentro do Museu, com o tempero crítico da ironia bem humorada, o próprio casamento.

Logo na entrada do Galpão de exposições um imenso tapete vermelho, ladeado por estranhos convidados, nos leva ao casal de noivos no altar – e ambos os noivos têm caras de macaco! Observados de perto, os convidados são centenas de pequenas imagens de santos, divindades, bichinhos, personagens de histórias infantis e dos quadrinhos, carrinhos de brinquedo etc. Tudo arrumadinho obsessivamente por ordem de tamanho e cor, formando um visual colorido e múltiplo de sentidos. A noiva-macaco, no altar, segura um buquê de bananas.

A exposição Vestidas de Branco é uma releitura de Leirner da sua própria obra: tanto as caras de macaco quanto a procissão de entidades populares são elementos recorrentes no trabalho do artista, que nessa exposição ele recicla em outros sentidos.

Na sala seguinte do Galpão de Exposições o visitante se depara com as outras etapas da festa de casamento preparada por Leirner: um gigantesco bolo enfeitado com mais imagens populares está no centro da mesa preparada para os convidados. A orquestra é simbolizada por estantes de partitura com as carinhas de macaco.

Mas Leirner não se limita à cerimônia: a banca de jornal, obra também já presente em outras mostras, demarca a passagem dos noivos para a rua, rumo à lua-de-mel. Ao lado dela, o próprio artista, reproduzido em tamanho natural, lê um exemplar do Jornal do Não Artista, distribuído na banca. O jornal tem a seguinte manchete estampada: Noiva encontrada dormindo em museu. E é por meio dele que tomamos contato com o personagem Alaíde Rodrigues, a tal noiva dorminhoca, e sua inusitada história, que é, ao mesmo tempo, um passeio pelo universo conceitual de Leirner. O Jornal é uma obra gráfica do artista que podemos levar para casa (meu exemplar está aqui, esperando a valorização para ser vendido num futuro leilão!).

E a viagem em lua-de-mel começa no carro recortado em madeira preta, que traz em seu rastro as panelas de barro tradicionais de Vitória. Ainda em lua-de-mel, o casal passa pela praia e pelo campo, ambientes onde o artista comprova, mais uma vez, sua extraordinária capacidade de apropriação de ícones de consumo, ao expor junto a obras originais as suas criações de designer para uma rede de lojas de decoração, tais como sandálias e pratos. E a viagem termina nas camas que abrigam as três noivas: uma para cada face do casamento: no meio a noiva virginal e, ao lado dela, a noiva mãe e a noiva erótica, ladeada por objetos fálicos inusitados. Três faces da reprodução da família, que se multiplica no berçário e na representação do presépio, colocado bem em frente às noivas.

A exposição termina numa autêntica barraca de camelô especializada em bolsas. Cada uma das bolsas pode ser uma história diferente. Ou o conjunto das bolsas é a conclusão de Leirner sobre a fronteira entre o mundo real, do consumo e da reprodução familiar, e a fantasia a que a idéia do casamento, com seus rituais e vestidos brancos ainda hoje nos remete?

Ao visitar uma exposição como a do artista Nelson Leirner muita coisa nos vem à cabeça. A maior parte do tempo, diante de qualquer uma das obras ou do conjunto delas, nos perguntamos sobre o significado de tudo aquilo. E a resposta é uma só: cada um que se depara com uma exposição assim pensa algo. Impossível passar incólume à provocação do artista. Colamos em cada elemento da exposição / instalação um significado, ou vários, de acordo com o nosso próprio jeito de sentir e entender o mundo. O maior mérito de Leirner é fazer rodar a nossa cabeça em busca da festa de sentidos que sua obra provoca. Muito além da brincadeira de descobrir os materiais cotidianos que ele utiliza e como ele deles se apropria.

Curiosa sobre isso, decidi perguntar a algumas pessoas que trabalham no museu sobre o sentido da obra ali exposta. Perguntei primeiro a uma das recepcionistas contratadas e ela me disse que o que ela achava do trabalho é que o artista fazia ali uma grande crítica ao consumo. A segunda pessoa com quem conversei foi o vigilante Breno. Para ele a exposição é uma reflexão sobre as várias faces do casamento. Analisa que ali estão representados a felicidade inicial compartilhada na cerimônia e na festa, as dívidas com a viagem de núpcias, o amor, o sexo e a maternidade, que, ao mesmo tempo em que representa a felicidade completa da família, também representa a definitiva âncora do casal no mundo do consumo em busca da manutenção do lar. Além de manter a ordem no recinto, o vigilante Breno sabe o que diz!

O depoimento mais intrigante, porém, foi o de uma outra recepcionista, que não me deixou gravar a entrevista, nem me disse seu nome. Quando perguntei o que ela achava do trabalho do artista, disse sem pestanejar que tudo aquilo é uma afronta. Diante da minha cara de espanto ela explicou: ele – o artista – colocou santos, bichos e demônios (referindo-se às imagens de entidades da umbanda que compõem a exposição) cultuando macacos, como se fossem humanos. Para ela o ser humano não veio do macaco, e colocá-los como humanos, cultuados, segundo ela, por aquelas representações de demônios e bichos peçonhentos como cobras, lagartos e ratos, era uma afronta à criação divina. Notando o tom radical de sua própria resposta, ela se emendou com a frase pérola da exposição: se bem que a gente pode ver tudo de outra maneira. Por exemplo, as cobras ali na frente: às vezes acontece da gente convidar para a nossa festa, sem saber, umas cobras...

Indiferente a toda e qualquer explicação, o menino Leonis, de quatro anos, identificava fascinado os brinquedinhos coloridos, bichos e Mickeys Mouses de Leirner. A entrega da criança à obra do artista é mais uma prova de que ela tanto pode provocar quanto fascinar – ou as duas coisas ao mesmo tempo – a quem se depara com sua obra.

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Felipe Obrer
 

Adorei as fotografias. Comento o texto logo mais.

Felipe Obrer · Florianópolis, SC 23/8/2008 02:51
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Spírito Santo
 

Ilha,

Acho o Leirner, definitivamente, genial, tanto quanto o Bispo do Rosário. Se eu pudesse eu ia perguntar a ele se sofreu influência do Bispo. Como ele é um artista trans-lúcido e o Bispo um rematado maluco, a resposta dele deve ser muito curiosa

Spírito Santo · Rio de Janeiro, RJ 23/8/2008 21:57
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Ilhandarilha
 

Como psicanálise amadora é o meu hobby, acho que posso afirmar que Leirner e Bispo sofrem do mesmo distúrbio compulsivo de juntar coisas e organizá-las numa ordem que só eles sabem como fazer. Heheeh. Mas influência do Bispo, acho que ele não teve não: eles se encontram mais nas linhas paralelas que nas contínuas.
Felipe, espero os comentários!

Ilhandarilha · Vitória, ES 23/8/2008 23:11
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Helena Aragão
 

Legal, Ilha! Adorei o relato. Ótima sacada esta de entrevistar os funcionários do museu. Sempre me chamou atenção aquele personagem que fica horas e horas sentado em meio a quadros e instalações, com olhar no vazio, aparentemente desinteressado de tudo que se passa ali dentro... Mas também sempre pirava imaginando que ele, a cada dia, podia ver os quadros de um jeito diferente: um dia gostar mais, no outro gostar menos... Numa exposição como esta, o barato é que todo mundo sai com alguma opinião. Abraço!

Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 25/8/2008 13:47
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Ilhandarilha
 

Pois é Helena, também tinha essa curiosidade sobre essas pessoas que trabalham em museus e galerias de arte moderna. Elas realmente parecem meio alheias ao que está ali. Mas veja como a gente subestima as pessoas: ali todos tinham uma opinião e um diálogo com a trabalho do Leirner. O cara é realmente um grande artista e provocador.

Ilhandarilha · Vitória, ES 25/8/2008 19:29
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Compulsão Diária
 

Eu passei aqui e adorei o post. Tinha certeza de ter comentado.
Sua iniciativa, mais uma vez, mostra seu olhar atento aos presentes na cena. Nelson Leirner (que loucura ao escrever o nome , juro que estive aqui e comentei: deja vu puro!!). Ok.
Continuando: a obra de Leirner causa esse impacto desde a polêmica do Porco empalhado.
E aí, Spírito? Leiner pode ser considerado um criador de ready-mades? E se for, vc colocaria Duchamp, Bispo e Leirner na msma linha?
bjos
CD

Compulsão Diária · São Paulo, SP 25/8/2008 19:55
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Ilhandarilha
 

A pergunta é pro Spírito, mas a questão me interessa: eu colocaria sim os 3 na mesma linha (embora numa linha paralela e não numa contínua). Eles têm em comum o fato de fazerem magistralmente um deslocamento dos sentidos de objetos cotidianos e simples. Esse deslocamento (ou desvendamento) do cotidiano em outra coisa é comum aos três. E é muito intrigante.

Ilhandarilha · Vitória, ES 25/8/2008 20:25
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Cintia Thome
 

Parabens, essa visita a exposição de Nelson, imagens e conteudo explicativo, muito bom trabalho. Leiner, Wesley Duke Lee, do famoso grupo Rex, marca de Wesley, sempre inovador, contestador das tradições, e polêmico a vida toda. Imagens muito boas!

Cintia Thome · São Paulo, SP 25/8/2008 23:24
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Ize
 

Ilha, fascinante essa matéria. Tão visual que eu me senti como estivesse lá, vendo tudo. Sua interpretação da exposição é mais do que cabível, mas Leirner tb pode estar usando os ícones da sociedade de consumo, colecionados obssessivamente, pra fazer uma crítica ao logro da cerimônia católica do casamento. Quer mais contradição entre o "Prometo te ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-te...até o final de meus dias" e a impermanência dos ícones de consumo? Foi assim que li e não estou levantando nenhuma crítica aos ícones (isso seria outra história). Ser colecionador de ícones de consumo tb é divertidamente contraditório. Pois o colecionador é o oposto do consumidor. Só um artista do porte de Leirner mesmo para retirar desses ícones sua dimensão de objetos fabricados em série e, portanto, sem aura alguma, e conferir-lhes a solenidade de objetos artísticos.
Com relação à aproximação dele ao Bispo, e de ambos a Duchamp concordo com o que vc disse aí em cima mas, para além disso, me parece que a coleção de Leirner tem uma aproximação com a ordem do conceitual que as de Bispo não tinham.
Por último queria dizer que compartilho com vc da antipatia com os bebês em série de Anne Geddes.
Bjs e parabéns pela instigante matéria.
Ize

Ize · Rio de Janeiro, RJ 25/8/2008 23:28
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Saskia Sá
 

Adorei a entrevista da recepcionista! kkkkkkkkkkk!!!! impressionante ver o que as superstições cristãs têm feito com a cabeça das pessoas!
E viva o humor de Duchamp e Leirner! Que sua visão iconoclasta da alucinação dos ritos cotidianos possa arejar mais cabeças pelo mundo!

Saskia Sá · Vitória, ES 26/8/2008 11:12
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Ilhandarilha
 

Ize, baita contribuição ao texto! Isso que disse do colecionador ser o oposto do consumidor é muito pertinente. Consumir - no sentido contemporâneo do termo - é desvalorizar, descartar as coisas, substitui-las desenfreadamente pelo último modelo, a cor da moda. Colecionar, ao contrário, é dar a elas uma aura valorativa, uma existência permanente.

Saskia, Humor é sempre fundamental, né? Na vida, na arte, no cinema...

beijos

Ilhandarilha · Vitória, ES 26/8/2008 16:33
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Evandro Bonfim
 

Muito bom, avise-nos se a exposição sair do Espírito Santo. As observações anônimas em mostras de arte são ótimas. Na última Bienal de São Paulo, ouvi um homem achando que um módulo do Le Corbusier era uma banheiro, que ele não entendia porque estava fechado ao público... A Rebelião dos Animais é alguma referência a George Orwell?

Evandro Bonfim · Rio de Janeiro, RJ 26/8/2008 17:17
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dudavalle
 

Da galera do Rex o melhor era o Wesley Duke Lee longe, tão longe que jah se foi e RexCaput em 1968.
Leirner, na minha opinião, eh kitsch, tem seu valor, mas não chega nem perto do extremo kitsch.
Detalhe : ele se casou 3 vezes sendo a primeira com todo esse ritual aih.

dudavalle · Rio de Janeiro, RJ 26/8/2008 17:20
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Marcelo Cabral
 

Uau!
Que passeio descritivo pela obra do artista você apresenta aqui Ilha! Muito bom, as fotos também estão demais, e as impressões dos seus entrevistados dizem tanto.
Parabéns!
Abraços

Marcelo Cabral · Maceió, AL 26/8/2008 17:57
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Ilhandarilha
 

Evandro, não achei nenhuma informação sobre a obra A Revolução dos Animais do Leirner além da que repassei aqui. Mas com certeza deve ser - o regime militar e o livro do Orwell são coisas bem parecidas. Isso das pessoas não entenderem algumas coisas em arte contemporânea é mais que natural. Ãs vezes penso que algumas obras devem vir com um manual de instruções, pra gente poder ter a mínima idéia do que elas estão falando. Mas esse não é o caso do trabalho do Leirner. Acho que o mais bacana nele é que todos podem dialogar com suas obras, independente de bagagem cultural, idade ou crença.

Duda, não compartilho sua opinião. Ele não é Kitsch de jeito nenhum. Ele brinca com o kitsch, o que é outra coisa bem diferente.

Marcelo, valeu a leitura atenta.

abraços!

Ilhandarilha · Vitória, ES 26/8/2008 18:19
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Ilhandarilha
 

Para quem quer saber mais sobre o Museu da Vale o link é este aqui.

Ilhandarilha · Vitória, ES 26/8/2008 19:42
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dudavalle
 

:-)))))))) !!!!
Wesley Duke Lee !!!!!!

dudavalle · Rio de Janeiro, RJ 27/8/2008 00:07
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Rubenio Marcelo
 

Este é um texto para ser lido e relido. Excelente!
Meus sinceros parabéns!
abrs,

Rubenio Marcelo · Campo Grande, MS 27/8/2008 10:36
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Ilhandarilha
 

Para quem quer saber mais sobre o Grupo Rex, do qual Leirner é um dos fundadores, juntamente com Wesley Duke Lee.

Ilhandarilha · Vitória, ES 27/8/2008 18:54
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