Nova moda carioca: tomar bolada na cabeça

Thiago Camelo
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Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ
21/4/2006 · 121 · 5
 

Começo o texto com um gelo na mão e um galo na cabeça. Estou convencido de que um galo na cabeça é a melhor maneira de fazer um sujeito pacífico se revoltar. E eu me revoltei. Não agüento mais aquele tal do frescobol. E, com o risco de tomar um pito da associação brasileira desse jogo (pois é, ela existe!), explico o porquê da indignação.

O dia começou com a promessa de uma bela caminhada na praia. Tenho feito isso há duas semanas, desde que descobri como é reenergizante andar à beira do mar. É como se o mundo à sua volta não existisse. É só você e o seu horizonte próprio, mais nada. Ausência de sentidos total.

Pois é. Foi já filosofando assim que eu me deparei no chão com a moeda de dez cruzeiros aí da foto. Que visão. Estava assoviando uma música do Dorival, olhando para as minhas pegadas na areia e achei a moeda. Eu, dado a procurar algum sentido até quando o gosto do feijão daqui de casa está diferente, comecei a pensar: "nossa, como a vida é, logo agora que estava assoviando uma música do Dorival, acho essa moeda. Como o mar é mesmo misterioso, como guarda sempre as coisas bem guardadas. Por que será que essa moeda veio aparecer logo agora? Quanto tempo ela navegou sozinha em marés tão bravas. E por que agora ela veio parar no porto seguro da minha mão? Será o mar querendo me falar do meu futuro, será que o que eu vou viver já está guardado, será que tudo vai ficar bem, será..." pof! Pô, mó boladão na minha cabeça! Que vacilo.

Olho, não falo nada. Só me assusto. Eram dois caras meio fortes jogando frescobol. Pedem desculpa. Não pedem perdão. Só aquela desculpa mesmo, como de quem esbarra no outro no Centro da cidade. Aquela desculpa de conveniência de quem vai ter de fazer isso ainda mais uma porção de vezes durante o dia. Mal sabem eles que eu estava num momento de epifania comigo mesmo, entendendo as músicas do Dorival e a minha vida através daquela moeda de dez cruzeiros. Profundo à beça eu estava, pô.

Bom, continuo meu caminho e minha cabeça dói. O meu horizonte vai ficando sem graça e procuro outro – dou meia volta em busca do que minhas costas não conseguiram ver. O novo horizonte está todo sem graça também e minha cabeça agora está com um galo enorme. A moeda ainda se encontra à minha mão. O mar ainda navega ao meu lado e a melodia do Dorival ainda pode ser mal assoviada pelo meu sopro fanho. Eu não quero levar ao pé da letra aquela música do Dorival não, "Quem vem pra beira do mar, ai, nunca mais quer voltar". Não, isso não vai ficar assim não!

Batendo pé de volta à base ainda passo pelos meus agressores e os observo com a distância precavida. São uns monstros batendo com uma raiva enorme naquela bolinha. Que jogo é esse, rapaz? Qual é o objetivo desse troço?

O plano até então era o seguinte: escrever um texto para o Overmundo falando mal do esporte. Ainda nem sabia ao certo o que iria escrever. Mas a trinca Dorival, moeda e galo na cabeça me daria inspiração suficiente para seguir em frente. Vim para casa andando e pensando sobre o que eu achava do frescobol antes da bolada na cabeça. Assim, a gente sempre ouve aquela história, né, "o único esporte em que não há competição", o único esporte em que não há pontos", "o único esporte em que o objetivo maior é ajudar o seu parceiro". É. Sempre desconfiei dessa nobreza toda, sobretudo pela violência e virilidade com que o esporte é jogado. Ao menos, nas areias aqui do Rio.

Tudo bem. Já tentei jogar sim frescobol. Como sou fera no pingue-pongue, achei que seria fácil. Nem é não. A raquete é muito pesada e o backhand é tarefa para o Sansão. Desisti rápido e a única relação real que mantenho com o jogo é quando vou mergulhar no mar. Sempre é bom ficar ligado na bolinha e nunca olhar para o chão. Infelizmente, hoje baixei a guarda e a cabeça. Dei mole. Tentei enxergar nas linhas da minha mão e através da moeda de dez cruzeiros minha vida. O mundo não te dá tempo para isso não, mané.

Lembro também de um caso interessante relacionado ao frescobol: tem um gordão aqui na praia que joga muito. Ele tem uma técnica toda peculiar de colocar a mão na cintura para segurar a barriga enquanto dá as raquetadas. Ele é tipo o Roger Federer do frescobol. Muito classudo. Quando a bola vai para longe e os gandulas involuntários (você, eu, todos nós) a devolvem, ele sempre agradece de uma forma extremamente gentil; caso seja uma menina na tarefa, ele ainda ressalta a gentileza, soltando um simpático "obrigado, meu amor". Eu, triste e culpado por isso passar pela minha cabeça, sempre acho que essa deve ser a única hora em que o gordão diz isso para uma menina e a menina não fica com raiva dele. Poxa, que triste isso.

Calma um pouco. Triste é o meu galo e agora é sobre ele que vou tratar. Pesquisei aqui sobre o jogo. A minha principal questão sobre o frescobol é esse papinho de que não há regra, do jogo ser amigável, essas coisas. Para o azar da nação, antes de desvendar as regras, descobri que - reza a lenda - o jogo foi inventado em Copacabana, em 1945. Ah! Então está explicado aquele muro feioso no bairro com os dizeres "aqui foi inventado o frescobol, esporte brasileiro, amigável, blá, blá, blá blá*". Nossa senhora! Que coisa triste, como se não tivéssemos do que nos orgulhar. Estou fora disso. Esporte amigável é o escambau.

Até a quinta página do Google procurando por "frescobol" (não peçam a mim mais esforço de pesquisa, por favor, minha cabeça ainda está doendo), descobri que o site da Associação Brasileira está fora do ar. O servidor deve ter tomado uma bolada. Curiosamente, a melhor página para pesquisa é a da Federação Gaúcha. O portal da Joana Prado é ótimo também. Na pesquisa pelo Google ainda descobri que as regras do esporte se baseiam no espetáculo, que o que importa é o show dado mesclado a uma equação impossível de entender que pondera tempo da bolinha no ar x agressividade. Quase o algoritmo dos overpontos.Também tomei conhecimento de que o Cazuza tem uma música que se chama "frescobol" e vi que até um dos meus grandes ídolos, o Millôr Fernandes, criou uma frase em defesa do jogo. Segundo ele, "é o único esporte em que realmente o que importa não é vencer". Não, o que importa mesmo é combinar de acertar a cabeça de quem está passando, no caso, eu aqui.

Estou convencido. Esporte amigável, democrático, avesso à competição coisa nenhuma. Nunca tomei um murro na vida, poucas vezes fui agredido, até mesmo verbalmente, por alguém. Agora estou aqui com um galo que mais parece que me meti numa briga. Quero a retratação, quero a revolução. Não entendo nada do Marx e, quando muito, li o Manifesto Comunista. Lembro de que ele pregava a ascensão do proletariado e a queda da burguesia. Pois é, lembro também de que a burguesia era dona das terras, aquele negócio de propriedade privada sem consultar o próximo, o lance de apropriação mesmo. Ora meu deus! Não é essa desigualdade que acontece na praia? Aqueles sujeitos mandões demarcando espaços na areia como bem desejam e fazendo do espaço que era para ser também meu um campo de batalha, cujas armas são raquetes e as balas são bolinhas? Eu aqui sou o proletariado, escrevendo em plena sexta santa humilhado pelos burgueses do verão tardio. Quero minhas terras de volta. Eles estão nos enganando como fizeram na Revolução Francesa, bancando os bonzinhos na fachada de um esporte sem vencedor. Há competição sim. São eles contra a minha cabeça. E eu tenho um plano.

Sou hippie demais para pedir a proibição do jogo. Não acho que é assim que as coisas funcionam. Nem vou mandar todos pegarem em armas e expulsar os jogadores da beira-mar. Eu estou mais para o Gandhi mesmo. O negócio é a revolução pacífica. A idéia é a seguinte: cada um de nós tenta se organizar em grupos de, ao menos, quatro pessoas. Aguardamos um dia bem ensolarado e rumamos à praia. Uma vez lá, escolhemos aqueles jogadores mais agressivos, nos enchemos de coragem e, em fila indiana (valeu Gandhi!), vamos um a um nos metendo entre os jogadores, oferecendo nosso corpo à bolinha. Posso garantir, dói um pouco, mas dá para sobreviver. Acho quatro um número cabalístico, não é possível que depois de machucar quatro sujeitos os jogadores ou a própria comunidade praieira vai permitir que o bate-bola siga em frente.

Temos todo o poder em mãos. Vejam só: segundo o site da Federação Gaúcha de Frescobol, são 2 milhões de praticantes do esporte em todo país. Pô, suponho que pelo menos metade dos que não praticam se incomoda um pouquinho ou, no mínimo, tem medo de tomar boladas quando vai à praia. Bom, segundo os últimos dados no site do IBGE, somos aproximadamente 186 milhões de brasileiros. Se apenas metade (só metade!) do Brasil (menos os 2 milhões comprometidos com o frecobol) resolver topar meu plano, seremos 92 milhões contra 2 milhões. E ainda tem mais. Como são duplas (às vezes até trincas), o nosso inimigo está reduzido virtualmente a um milhão. A proporção é de 92 para um! Vamos prosperar!

Tenho certeza de que a imprensa toda ficará em nosso favor. Duvido de que não queiram agradar tanta gente. E jornalista adora novidade. É só ver a incrível moda da altinha (é "altinha", não é "altinho", não sei da onde tiraram isso) aqui no Rio. Para quem ainda não sabe, altinha é simplesmente bater bola (de futebol, esse jogo incrível) sem deixá-la cair. Descobriram depois de décadas que o carioca curte brincar de altinha na praia. Olha, não sou muito velho não, mas há pelo menos uns 18 anos, desde as minhas primeiras lembranças, o povo do Rio joga futebol desse jeito na areia. Mesmo assim, a brincadeira virou pauta de janeiro de uns três jornais daqui, virou febre no Estado e símbolo da carioquice nossa de todo dia. Agora, imagine você o que seria se 92 milhões de brasileiros resolvessem ir à praia para tomar bolada na cabeça? Daria reportagem no New York Times e tudo. Podiam até traduzir o título desse texto para dar de manchete: A new trend in Rio: Getting hit in the head with a ball. Bom, agora, se por acaso todo o nosso engajamento der errado, eu tenho o plano B para chamar atenção da mídia e ainda lançar uma tendência para o próximo verão: ir à praia de capacete.

* Um amigo acaba de dizer que a frase do muro de Copacabana é do Millôr. Pô Millôr, frescobol?? Tem certeza???

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toinho.castro
 

gostei do teu texto, do humor... mas o problema talvez não esteja no esporte, e sim numa questão de cidadania, de como podemos nos comportar nos espaços urbanos. acredito que qualquer esporte praticado de forma irregular, indiscriminada, num espaço público qualquer, a praia por exemplo, vai trazer intranquilidade a quem usufrui daquele espaço, vai criar zonas de atrito, problemas como o seu (nosso, na verdade).

o que precisa é rigor na regulamentação dessas práticas (será possível?), para que todo mundo possa ter sua diversão e sua paz onde quer que seja.

grande abraço, e tomara que a gente não precise mais fugir das boladas.

toinho.castro · Rio de Janeiro, RJ 20/4/2006 17:07
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Thiago Camelo
 

Fala Toinho! Obrigado pelo elogio, fico feliz de você ter gostado do texto.
Olha, acho que até existe uma tentativa de legislar os esportes na orla, mas assim como existe a tentativa de impedir que levem animais para praia, que joguem lixo no chão e por aí vai. Quanto ao frecobol, é claro que há sim quem jogue com mais parcimônia e educação, é claro que há quem se preocupa com o outro e pára de jogar quando alguém passa. O meu problema é mesmo com aqueles que jogam como se fosse uma final da copa do mundo de frescobol (que foi o caso do rapaz que meu a bolada): isso é um desrespeito sem fim. E, cada vez mais, esses jogadores raivosos estão aumentando em número. Voltando para casa da praia, eu contei - eram oito duplas raivosas em 1km de praia. É demais né?

Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 20/4/2006 19:45
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toinho.castro
 

é verdade o que você diz... tantos fracassos em regulamentar o que quer que seja nesse país. então coisas como o frescobol passam a ser mais uma pedra no sapato de quem quer viver. passa a ser uma imposição.

mas certamente que os incomodados estão em maior número que aqueles que incomodam. voce fala do movimento pacifíco, tipo "gandhi", e mesmo um tanto disso que é necessário. do mesmo jeito que tais práticas impõem no nosso cotiadiano sem perguntar o que pensamos, bem que podemos, como maioria, impor o limite de forma clara e tranquila.

gsto do seu texto por abrir uma conversar como essa, que tinha que se espalhar por aí e ser um ponto de partida para uma "regulamentação cidadã" do esaço urbano.

boa noite e grande abraço!

toinho.castro · Rio de Janeiro, RJ 21/4/2006 01:22
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Thiago Camelo
 

Somo voz à sua, Toinho. E tem uma coisa aí: quem é de paz tende mesmo a evitar conflito, não tem jeito. E daí a minoria vai acertando bolada na cabeça da maioria. A postura tem que ser outra, ainda de paz, mas sem se negar a olhar no olho do outro sem medo. Grande abraço e um bom dia para você, rapaz!

Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 21/4/2006 14:17
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Daniel Duende
 

Olha só o que eu acheeeei! :D

Olha só, dotô... se foi a bolada, ou a moeda, ou o Dorival, ou tudo isso junto que te deixou inspirado, não sei? Sei apenas que, seja o que for, te deu uma inspiração genial!
O texto está fino, engraçado, bomdimais!

Abraços do Verde para você, e cuidado com as bolas cruzadas...

Daniel Duende · Brasília, DF 31/1/2007 04:52
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