1952. Imensos andaimes por toda a Igreja do SantÃssimo Sacramento em Cantagalo, interior centro-norte fluminense. O pintor italiano Nardi começava a esboçar o seu próximo painel: uma figura angelical numa colheita de uvas. Estava perturbado com a discussão que havia acontecido com o Padre Crescêncio sobre o Cristo do altar. Um coroinha curioso levantou os panos que cobriam a pintura e entreolhou um Cristo crucificado que usava calção! Os dois, padre e pintor, tiveram uma acalorada conversa tipicamente italiana em que o final foi o acerto de que o calção seria substituÃdo pelas vestes tradicionais. Tudo por conta do coroinha, haveria o pintor de comentar com os seus pincéis ao saborear uma taça de vinho tinto. Mais tarde, enquanto esboçava o anjo colhedor de uvas, as famÃlias chegavam para a próxima missa rezada ali mesmo debaixo daquele monte de madeiras e estruturas. Devia fazer calor. Penso que fazia. Há tempos, Nardi já havia percebido um rosto expressivo e delicado de uma das moças da região. Era o rosto de Ana. Ela sempre se sentava no mesmo banco e agora próxima do artista italiano e a tela da colheita das uvas. Nardi , por tanto olhá-la e gostar dos traços de seu rosto juvenil, o transpôs para o painel.
Assim deve ter sido... Minha cabeça de escritor criou essa ficção.
Agosto de 2007. Um encontro casual com o restaurador e professor de artes Gilson Andrade, no Colégio Estadual Maria Zulmira Torres, enquanto eu esperava pelo funcionário que abriria a Casa de Cultura Euclides da Cunha, foi o inÃcio da busca pela “moça†das uvas. Aproveitei o tempo para entrevistar o responsável pelo segundo restauro dos painéis de Nardi e, com a minha intuição me cutucando, liguei o meu pequeno gravador e registrei a conversa. Sempre há algo interessante oculto nas camadas de tinta de pinturas antigas e foi a isso que me apeguei. E estava certo quando dentre uma coisa e outra o restaurador falou sobre uma moça que havia servido de modelo ao pintor e que ainda morava em Cantagalo. Ele só não sabia o nome...
Com essa história tão boa, acionei mais uma vez o Professor João Bosco Bon, um historiador e “detetive†de mão cheia que já teve participação crucial num outro artigo escrito para o Overmundo. Outro grande historiador cantagalense – o Professor Gilberto Cunha – também participou ativamente da descoberta desse novo mistério. Sim, passou a ser um mistério cheio de controvérsias. De um lado, Dona Dirce Machado – guardiã das memórias de Cantagalo – e Sr. Jorge Ferreirinha – coroinha que , em 1952, descobriu o Cristo de calção – afirmam que as semelhanças do anjo do painel com alguém conhecido são muitas. Dona Ana? Ambos desconversam, sorriem e admitem a possibilidade... Por outro lado o Professor Gilberto Cunha defende que não há elementos suficientes que abalizem a história. Eis a sÃntese de seu raciocÃnio:
1 – Ana, na ocasião, morava na Fazenda de Santana, distante da sede e a freqüentava apenas para assistir à s missas, estudar e a passeio com os pais. Era impossÃvel que tivesse servido de modelo para Nardi, já que a demanda de tempo seria demasiada para o feito;
2- Naquela época, os padrões mais rÃgidos de educação familiar não admitiriam que uma moça ficasse à disposição de um pintor para servi-lhe de modelo;
3- Em todos os painéis, inclusive nos principais, “ O Milagre de Santa Clara†e “ O Milagre de Santo Antonioâ€, as faces humanas, angélicas e divinas são idênticas, mudando apenas a posição, cor de cabelo e outros pequenos detalhes. Um esboço único para todas as faces descarta a participação de uma moça local;
4- Por fim, pessoas da convivência de Dona Ana nunca relataram nada que indicasse o acontecimento.
As conclusões do Professor Gilberto Cunha, notável pela grande sabedoria e vasto conhecimento sobre a história de Cantagalo, deixou-me totalmente desiludido e sem a boa história pra contar. A não ser aquela do inÃcio desse artigo que a minha cabeça em devaneios criou.
Toda história em que muito se mexe...
O Professor Bosco, por causa do tempo seco, sem chuvas e a baixÃssima umidade do ar em nossa região nessa época do ano, ficou adoentado por conta de uma rinite alérgica. Tentei incomodá-lo o quanto menos. Mas há nele um vÃrus potentÃssimo: o vÃrus do “fuça-fuçaâ€. Bosco não se agüenta quando cai no colo dele uma história como essa. Foi através de uma boa conversa com a sua mãe, Dona Eva Maria de Paula Bon, que o sol voltou a brilhar nos vinhedos do painel da Igreja. Dona Eva confirmou a teoria de Dona Dirce e Sr. Jorge e entre um telefonema e outro, a mãe de nosso “detetive†partiu em busca da verdade. Primeiro tentou encontrar Dona Ana na missa. Em vão. Depois ligou para ela ( Bosco tem a quem puxar certamente!) e a história, em nome da preservação da memória cantagalense, depois de anos sem ser contada veio à tona.
Santa Clara clareou...
15 de setembro de 2007. Ao telefone, as duas senhoras conversavam. Talvez o diálogo tenha sido esse:
(...)
EVA - Ana, um rapaz tá querendo saber sobre as pinturas da Igreja...
ANA - (silêncio)
EVA - Muitas pessoas já disseram pra ele que aquela mocinha colhedora de uvas se parece com você...
ANA - (mais silêncio)
EVA - Ana... Você serviu de modelo para o pintor italiano naquela época?
ANA - Pra que ele quer saber sobre isso, Eva?
EVA - É uma reportagem. Ele está querendo ajudar a preservar a nossa história. Só falta você confirmar e...
ANA - Está bem. Mas não servi de modelo para o Nardi.
Do outro lado da linha, Dona Eva frustrada.
ANA - Na verdade, como eu sempre me sentava próxima ao painel da colheita de uvas para assistir à s missas, ele acabou transferindo traços do meu rosto para o anjo. Mas ele mesmo nunca me disse isso. E por não ter essa confirmação, não gosto de sair por aà propalando essa história. Mais tarde, o próprio Nardi comentou com um advogado amigo de minha famÃlia que havia pintado o painel inspirado nos traços do meu rosto. Não há como confirmar isso agora, pois o advogado morreu há algum tempo.
(...)
A conversa terminou com Dona Ana Maria Luterback do Amaral permitindo que a história fosse aqui contada. Memória resgatada. Mais uma página escrita e final feliz para todos nós que compartilhamos tudo isso.
Eita, Cavalheiro, que trabalho primoroso, rapaz!
Coisa de historiador/escritor, dos bons! Impecável, irretocável!
Os meus mais efusivos parabéns! Toca escrever mais e mais!
Abração,
Baduh
Poxa, Baduh! Valeu mesmo por esse comentário! Fiquei na dúvida se tinha dado o tom certo ao artigo, mas agora estou mais tranqüilo.
Obrigado pelo incentivo. Sempre.
Abraços
Gostei de tudo. Matéria completÃssima. Multiplicidades de fontes, fotografias, audio... bem escrita, trabalho primoroso... história das melhores.
Um abraço.
Valeu, Filipe!
Muito obrigado por esse comentário. Na verdade, a história das pinturas no interior da Igreja do SantÃssimo Sacramento em Cantagalo é riquÃssima. Quando, porém, me deparei com a história da "moça" das uvas fiquei empolgado em levá-la até o fim e trazer o nome do rosto inspirador ao conhecimento de todos.
Confesso que quase não consigo. Mas aà está o fruto de um trabalho que realmente deu "trabalho" e só os bastidores de tudo daria um outro artigo tão importante quanto.
Muito obrigado e abraços.
Pois não se faça de rogado e traga para nós mais estas impressões; o making off da históra será mais que bem-vindo. Estamos esperando...
Abraço.
Parabéns cavalheiro!!!
Afinal de contas, o que é que vc não faz?
Rapaz, a cada dia me surpreendo com uma nova faceta sua!!!
Agora, um excelente historiador!!!
Ainda bem que podemos desfrutar de todo esse talento!
Abração
Voltado! Neologismo de voltar para votar... kkkkkkk
Parabéns, de novo, mano! Excelente trabalho!
Baduh
Adorei, até mesmo por me situar entre analfabeto e desligado
desse outro lado, me fou um aulão e tanto, andre.
Maravilhoso trabalho. Sabe que descobri que gosto ainda mais do overbloc do que do meu cantinho do banco de cultura, que também amo tanto!!! Me deu vontade de mudar para cá! Mudar o foco... rsss. Parabéns! Vtdo!
Nydia Bonetti · Piracaia, SP 20/9/2007 23:16
Oi, Baduh!
Obrigado por ter "voltado"!
Abraço, amigo!
Oi Nydia!
Também gosto do banco de cultura, tenho algumas coisas por lá!
Mas gosto mesmo daqui. Vem pra cá também!
Beijos e obrigado
Oi André!
Valeu mesmo por ter gostado.
Obrigado
Cara, que reportagem hein... Mais um excelente trabalho! A preservação da arte e da memória cultural te reverenciam (e a todos que contribuiram).
Abração.
Muito bom texto, informativo. Você foi fundo, pesquisa, um verdadeiro jornalista atrás da verdade. E assim também nos enriquecemos sabendo mais sobre o pintor Nardi. Garimpou mesmo!
Cintia Thome · São Paulo, SP 21/9/2007 13:08
va se foder!
você sabe fazer tudo?
primoroso trabalho de pesquisa e ainda coloca o texto de uma forma clara, objetiva, e incrivelmente bem escrita.
as fotos, ta tudo lindo.
surpreendente, a materia e seu trabalho, não sei o que elogiar mais
vou contar pra todo mundo que você é meu amigo.
hehehe
beijos, e parabéns mesmo
Entrei há poucos dias, e o que tenho observado lendo muito por ai...
e confirmo aqui ao terminar de ler seu texto é que a cada convite que recebo para conhecer mais um trabalho, não se abre a minha frente só um leque de informações culturais.
Melhor que isso,... de excelente qualidade.
Luiz,... parabéns por esse belÃssimo texto, que tenho certeza, tendo em vista todo ele se tratar de uma leitura enriquecedora e instigante, ter sido para você altamente prazeroso ter feito.
Grata pela lembrança e partilha amigo.
VotadÃssimo ! Um abraço.
Fala Wander!
O mais bonito de tudo isso é que desde de criança vou a essa Igreja e um dos painéis que sempre me chamou a atenção foi o do anjo colhedor de uvas. Ele fica num canto, não é o mais bonito e nem é o mais valorizado pelas pessoas. Eu namorava esse painel há muito tempo... ( ou será que ele é que me namorava?). Daà quando, numa conversa com o restaurador Gilson, percebi que tinha história e das boas sobre o painel, fiquei tão envolvido que acabei mudando até o rumo inicial que esse artigo teria... Pelo que vejo, valeu a pena!
Obrigado sempre!
Oi, Cintia!
Muitas pessoas da própria cidade não conhecem o trabalho do pintor Nardi. Tenho medo de que, poderes dados a pessoas erradas, possam "pintar de cinza" toda a obra dele. Deus e os cantagalenses queiram que não! Seria um crime. Apesar das restaurações recentes e muito bem feitas, a Igreja parece precisar de obras estruturais mais sérias para que as pinturas não sejam danificadas por vazamentos, por exemplo.
Grande abraço e obrigado.
Ei senhorita!!!! Tô precisando mesmo....kkkkkkkkkkkkkkk
Minha senhorita querida, não sei cantar e danço mal (risos)
Muito obrigado por me prestigiar com seu comentário. Sou seu fã desde do meu engatinhar aqui no Overmundo!
Beijocas
Olá Rita!
Então seja muito bem-vinda!
Realmente foi um dos artigos mais prazerosos que já fiz para o Overmundo. Gosto dessa linha investigativa e como eu já disse anteriormente, as investigações quase não deram em nada. Tive sorte de ter em minha companhia pessoas como o João Bosco e Dona Eva, Dona Dirce, Sr. Jorge, Gilson Andrade ( que me aguçou os sentidos pra tudo isso) e Gilberto Cunha. Pessoas que realmente se preocupam em preservar a memória da cidade onde vivem.
Ah... e também não posso deixar de agradecer a Dona Ana, pessoa que nem tive o prazer de conhecer pessoalmente, mas que por amor à sua cidade permitiu que o nome dela fosse revelado.
Legal né!?
Abraços carinhosos
Com tanta reviravolta parece até novela mexicana...rsrsrsrsrsrs!!!
BelÃssima matéria!
Parabéns Luiz!!!
Que bacana! InteressantÃssimo!
Parabéns
Grande abraço
Oi Matheus... tá sumido hein rapaz!
Obrigado por ler, votar e comentar!
valeu!
Oi Mansur!
Obrigado por ter lido, votado e comentado!
Valeu mesmo!
Grande abraço!
Adorei esssa sua persistência em desvendar o importante acontecimento e o resultado dessa pesquisa foi o sucesso que você tanto esperava, amigo Cavalheiro. Meus sinceros aplausos e abraços.
carlos Magno.
muito bom, Luiz.
texto de primeira, prendeu minha atenção até o final!!!
parabéns!!!
abraços,
Muito bem escrito, muito criativa essa junção ficção e história. Esse resgate histórico romanesco! Adorei o texto! Uma pérola no OVERMUNDO se tivesse os mil votos os mil daria! Perfeito. ficarei mais de olho em suas colaborações daqui para frente. Parabéns!
Patricia Moreira · Vitória da Conquista, BA 21/9/2007 19:36
Cada vez melhor seu lado repórter,investigador, contador de casos...
Parabéns
Poxa deveria ter colocado as imagens em algum programa de edição e clareado um pouco. Mas idependente disso, são excelentes! Um abraço!
Patricia Moreira · Vitória da Conquista, BA 21/9/2007 21:30
Adorei o texto.
Tem ficção verdadeira. A verdade é ou não uma ficção?
E a história? O que seria dela sem a literatura e um bom fuça-fuça?
rs...
Abraço!
Luis, olá
Nossa, que maravilha de texto e olhe esse italiano Nardi esteve aqui pelo Pará e deixou algumas obras espalhadas pelas igrejas daqui. Vc sabia?
VotadÃssimo.
Bjs
Dona Ana pode não ser quem deu feição ao anjo, mas é santa pessoa, não é fato,Cavalheiro?.
Bonita história. Viva tu.
Primoroso detahamento da história religiosa mineira.
Texto irretocável. Mandou bem, Cava!
Abçs. Benny.
Meu querido Cavalheiro,
minha falta de tempo me faz cada vez mais estúpido. Como pude demorar tanto para vir ler seu texto? Um texto bem escrito, uma história maravilhosa e um tÃtulo genial compõem, melhor dizendo recompõem a verdade dos fatos que Cronos muitas vezes nos surrupia, mas que sempre fica na memória de alguém como a Dona Ana que você descobriu. Parabéns pelo belÃssimo trabalho e pela deliciosa descrição do fato - sim, porque agora, graças a você, o que antes era pura especulação tornou-se fato, história, acontecimento na memória de todos. Cá pra nós, essa histórias daria um belo roteiro pra cinema...
Um forte abraço e, novamente, me desculpe pela demora.
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