O APITO DO TREM, A SENHA DO SAQUE
Edevaldo Leal Costav
O núcleo urbano da maior provÃncia mineral do mundo – Carajás –, situada em Parauapebas, sudeste do Pará, com seus hotéis de luxo, suas ruas asfaltadas, suas escolas de excelência pedagógica, suas residências confortáveis servidas por água tratada e rede de esgoto, sua casa de hóspedes ilustres, parque zoobotânico e centro comercial planejado, contrasta com a Parauapebas de migrantes miseráveis e analfabetos sem horizonte. Não há paralelo entre este e o outro núcleo, também urbano, o do entorno, sede de municÃpio. O contraste , chocante é, também, assustador.
– Me dá dois reais pro café, senhor – pede o menino barrigudo, amarelo, as costelas aparecendo, visÃveis, no corpo magro.
Mais adiante se aproxima mulher mal trajada com uma penca de filhos atrás, e criança de colo sugando um peito sem leite. As crianças não têm o que comer hoje. Uma ajudazinha, senhor? Deposito cinco moedas de um real na mão estendida. A mulher me olha com ternura, agradecida. Cinquenta novas famÃlias descem na estação de trem diariamente, quase todas vindas do Nordeste em busca de emprego. Sem mão de obra qualificada, ficam perambulando pelas ruas. As empresas precisam de montadores de estruturas, mecânicos de manutenção, operadores de máquinas pesadas, mas os milhares de migrantes, que se amontoam em barracos e construções desalinhadas, nunca sentaram num banco de escola.
Aqui a pobreza caminha em ruas empoeiradas. Os serviços de saneamento básico são precários e, apesar do PIB per capta semelhante ao da cidade do Rio de Janeiro, a demanda social gerada pela migração é altÃssima. No entorno do luxo, um exército de mão de obra desqualificada. Para sobreviver, os migrantes abrem toscas vendas, oferecem serviços de limpeza de valas poluÃas, enquanto outros praticam furtos, roubos, e transformam a cidade numa das mais violentas do Pará. Há, de certo, um fosso entre os dois núcleos, uma separação social: criou-se, ali, um apartheid.
Do ventre daquela serra, para onde se voltam os olhos da cobiça internacional, saem, diariamente, nos 330 vagões do imenso trem, aproximadamente 130 mil toneladas de ferro, o mais puro do mundo, para enriquecer os cofres de vários paÃses, enquanto o Pará vai ficando cada vez mais pobre.
O apito do trem avisa: está indo embora a riqueza oficialmente arrancada de suas reservas naturais. Sonora senha do saque, o apito do trem é um alerta que a todos deveria acordar. Ou não estão fazendo em Carajás, no Pará, o que já fizeram em Serra do Navio, no Amapá, e no Pico do Itabirito em Minas Gerais? Aguardem senhores, aguardem; senhores imobilizados, calados, aguardem: vão saquear tudo, até não restar nenhum grama do minério para lembrança. Não esqueçam, senhores, jamais, do poema “O Pico do Itabirito†escrito por Drumond(CDA) em 16 de junho de 1965, em que o poeta levanta sua voz contra o paÃs colonial:“Ação, desenvolvimento!/Tudo exportar bem depressa,/suando as rotas camisas./Ficam buracos? Ora essa,/ o que vale são divisas/ que tapem outros ‘buracos’/do tesouro Nacional,/deixando em redor os cacos/ de um paÃs colonial./ Escorre o tempo. E à cantiga/dessa viola afinada,/ já ninguém mais lembra a antiga/voz do Conselho, nem nada./E vem de cima um despacho/Autorizando: Derruba!/ Role tudo, de alto a baixo,/como, ao vento, uma embaúba!/E o Pico do Itabirito/Será moÃdo, exportado./Só quedará no infinito/seu fantasma desolado.â€(Trecho.)
A quem pertence a riqueza da Serra de Carajás? Basta olhar em volta, para o entorno. A constatação não será nenhuma surpresa: ao povo, as sobras. Ou os buracos. Os buracos que, na visão drumoniana, taparam outros buracos. A sombra do espanto avança. Daqui a oitenta anos, quando a reserva se esgotará, o rico núcleo urbano de Carajás será apenas um fantasma, um fantasma desolado.
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