O avesso do farol

Farol do Mucuripe
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Henrique Araújo - Grupo TR.E.M.A · Fortaleza, CE
15/10/2006 · 59 · 3
 

“Farol é fruto de uma decisão política afinada com a criação de instrumentos que possibilitem o encontro de diferentes grupos sociais e territoriais. Projeta-se sobre a cidade polifônica, lugar da humanidade plena, do cruzamento de distintos espaços e tempos, da troca de narrativas que dão sentido à vida e das inúmeras formas de reinventá-laâ€. E por aí vai...


À guisa de lead (ou parágrafo introdutório contendo as informações mais relevantes para o leitor)

Lançada pela Prefeitura Municipal de Fortaleza no início de outubro, a revista Farol tenciona, segundo entrevistas que pipocaram nos cadernos de cultura dos principais jornais da cidade, fazer incidir seu cone de luz sobre essa zona em penumbra que é a periferia de Fortaleza e demais grotões de miséria encravados nas chamadas “áreas nobresâ€. Não uma luz permeada de néon. Absolutamente. A luz a que se propõe Farol é de natureza diversa da que se encontra geralmente refratada nas páginas dos veículos de comunicação de massa. Assim reza o editorial da revista; assim, ao longo de suas cinqüenta páginas, podemos conferir através de textos e imagens belíssimos.

De sua leitura, um alento. Exceto quando se exagera nas pinceladas, deixando à vista de todos certo lirismo água-com-açúcar ao retratar personagens ou buscar o espírito, sabidamente fugidio, da “alma encantadora das ruasâ€.

De publicação bimestral e inteiramente gratuita, os mais de 20 mil exemplares de Farol deverão alcançar, por força da mobilização das comunidades e do próprio interesse coletivo em dispor do veículo, os mais variados rincões de Fortaleza.


Aqui tem início o texto propriamente dito

Tem gente que faz isto: pára e pensa no sentido das coisas, para que servem, como nasceram. Diante da revista, matutei: farol serve pra quê? Acertou quem respondeu orientar, dar sentido de direção, etc. A revista também cumpre esse papel, mas não apenas isso. Afinal, onde podemos encontrar o tal farol? Defronte ao mar, à faixa litorânea, mesmo que, com o passar das eras, tenha perdido importância, tornando-se anacrônico.

Daí, veio a conclusão: Farol desvirtua o farol, construção cuja razão de ser é orientar a navegação no mar. A resposta é, a bem dizer, ordinária: ao invés de se voltar para a faixa litorânea – a faixa que, bem-entendido, amiúde ocupa os espaços nos meios de comunicação –, Farol projeta seu cone de luz Fortaleza adentro, iluminando-a e, dessa forma, trazendo à baila a periferia da cidade. Farol bizarro, mas necessário. É o que dizem; e eu confirmo.

Noite de lançamento no entorno do Farol do Mucuripe. Farol Velho, diga-se. Comunidade presente, participante. No palco, mistura boa: capoeira, rap e o cancioneiro popular encarnado na Caninha Verde, presente igualmente nas páginas da revista.

A gente chega, aproxima-se. Ao fundo, uma massa líquida clareada pela noite de lua. Sobre nossas cabeças, o farol. Nas mãos de moleques brincantes, revistas. Algumas amarrotadas feito qualquer papel. O andar no meio de tantas pessoas favorece o surgimento de alguns pensamentos. A cidade, a relação com a cidade, é a mesma que se tem com as gentes: dia a dia, azeita-se, estreita-se. Ou, pelo contrário, deteriora-se, até alcançar a ruptura. Assim tem sido. Nunca tinha ido ao farol novo – muito menos ao velho, onde estávamos agora. Surpreso, gostosamente surpreso. É bonito, imponente até. Nova iluminação, as sombras dos meninos e meninas projetada contra os muros do farol: verdadeiros gigantes em roda.

Quem viu isso? Eleuda de Carvalho. Ao lado, escutei. "A dobra no olhar", é o que Eleuda sempre busca. E acha.

Revista em punho, após alguns minutos, vamos embora. A vontade de ler é maior. Um pouco invejosos, confesso. Mas inveja boa, se é que há.

Horas depois, no conforto de casa. Abro a revista novamente. Nas páginas, o areial do campo do América. Não apenas o campo, mas o que viceja no entorno, nas casinhas caiadas cujo sossego interior é freqüentemente invadido por... bolas. Dessas de couro com parte dos interstícios emergindo entre as costuras.

Ainda nas páginas coloridas do campo, uma foto destaca-se – ou eu a destaco entre as demais: dois meninos assistem à partida entre o Azul e o Vermelho; final de campeonato. Os times arranjados ali mesmo na comunidade. No centro do campinho, dão início à peleja com um toque na bola. Ao fundo, farejando uma das traves, um vira-latas ergue a perna traseira direita e, sem-cerimônia, espirra o seu jato de urina.

Outra igualmente viva. A menina. O sorriso da menina. Como a nos premiar, ao folhearmos a última página, sorri encantada com algo que nos escapa. Entretida, espraia os dentes muito brancos. A boca é toda bagaço de milho-verde cozido.

“Farol quer contar histórias de vida atemporais, operar com um conceito de cultura ligado à vida e não apenas às manifestações artísticas consagradas, apostar na volta da grande reportagem feita de narrativasâ€.

Entre os dois instantes flagrados por fotógrafos de Farol, muita coisa a rolar: o Passeio Público por ele mesmo – a repórter faz as vezes de médium e, incorporando o lugar, deixa às claras o que lá sucede. O logradouro emerge, portanto, prenhe de meninas, alegres e tristes, e velhas senhoras a vender, não o corpo, mas alguma comida que lhe sustente as carnes. O mesmo acontece com a Comunidade das Quadras e os personagens nela implicados; lá, meninas querem ser jornalistas e mudar o rumo da vida, alheia e própria. Têm esperança, seguem na luta ao lado de tantos outros em situação semelhante. A mesma coisa com o bairro do Mucuripe, seus pescadores, suas histórias, suas mulheres. Agora, porém, o olhar volta-se, inquieto, para o que já foi e lamenta: o ser humano degrada, sim; mas também cria. Dessa forma seguem-se tantas outras narrativas, como a do Homem de Branco.

“Quem faz a revista acredita, assim como o escritor Ãtalo Calvino, que as palavras têm que lutar sem descanso contra a dureza e impermeabilidade da paisagem urbana e que cabe a elas retirar peso do mundo, construindo imagens de levezaâ€.

O que fica de sua leitura: Farol busca, grosso modo, “desafinar o coro dos contentesâ€. Ou, por outra, afinar o dos descontentes, levando e trazendo auto-estima, diversidade e devolvendo a cor multifacetada de nossa gente às páginas de Fortaleza. Que, ao primeiro número, se sucedam muitos outros.

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apple
 

Sendo textos escritos por pessoas do local e tomando por base a cidade deve despertar interesse para a leitura na populaçâo!

Bom que a revista tem distribuição gratuita, pois muitas vezes as pessoas nâo lêem por falta de condições financeiras.

A tiragem é modesta para o tamanho de Fortaleza, não? Seria tâo bom se a revista chegasse a todos habitantes e visitantes...

apple · Juiz de Fora, MG 15/10/2006 02:18
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Henrique Araújo - Grupo TR.E.M.A
 

sim, fortaleza tem cerca de 2,4 milhões de habitantes. não chega pra quem quer. agora, leve-se em conta a total a ausência de publicidade da revista e, outro ponto alto, a qualidade. agora, segundo um amigo jornalista, a tiragem não é tão pequena assim. um dos maiores jornais do Estado tira 30 mil/dia.

ah, seria sim muito bom se todos lessem, não apenas farol, mas outras coisas também.

abraços.

Henrique Araújo - Grupo TR.E.M.A · Fortaleza, CE 15/10/2006 10:41
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Raquel Gonçalves - Grupo TR.E.M.A.
 

Meu querido, belo retrato da revista, do objetivo e do próprio Farol...
Adorei "o espirra seu jato de urina". Isso fala mutio. Parece que já vem casado com a imagem.

Raquel Gonçalves - Grupo TR.E.M.A. · Fortaleza, CE 22/10/2006 22:36
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