Antes tarde do que nunca. E foi assim, dantescamente, no meio do caminho desta vida, que finalmente me encontrei com a poesia de Gabriel Nascente, o poeta falador que chegou barulhentamente muito antes da segunda e definitiva e sublime impressão. Lembro de já ter entrevistado Gabriel. E me acostumei a vê-lo por aÃ, sempre à s voltas com alguma polêmica nos jornais. Mais que isso, me acostumei com a visão rasteira cristalizada em Goiás sobre Gabriel Nascente, um poeta muito comentado – na maioria das vezes com indisfarçável desdém – e pouco lido. Tem gente que nunca leu Gabriel e mesmo assim continua não gostando.
Esse deitar comodamente nas impressões alheias me privou do privilégio da poesia de Nascente. Finalmente, rompi a bolha e me deixei agarrar pelos tornozelos, numa leitura de fôlego, Inventário Poético (2005), uma coletânea organizada pela professora Vera Tietzmann Silva e o escritor Aidenor Aires, que reúne o que consideram de mais representativo na obra de Gabriel – uma viagem por 22 dos 53 livros que publicou. O volume (500 páginas) me ganhou para a poesia do Bié do Bairro Popular, um anjo torto que continua rebentando de tanta poesia. Sublime poesia!
Está lá na minha estante o livro, na parte que mais gosto, a Torre de Babel, todo rabiscado pelo meu lápis maluquinho, que registra as impressões de leitura. E escapam adjetivos em muitos trechos sublinhados: bom, muito bom; magnÃfico; sublime; soberbo verso... E Gabriel joga um bolão no time dos que pintam e bordam dentro da gente com as palavras. Nesse emaranhado de impressões, penso que o problema de Gabriel foi não ter se arriscado na travessia em definitivo das divisas de Goiás, como fez José J. Veiga, Afonso Félix de Souza e outros.
A poesia de Gabriel é água que teima em brotar de profundos lençóis, com um lirismo comovente, arrebatador, em que uma imagem de repente salta e cativa e é o bastante para nos fazer seguir a lÃngua do anjo da palavra rebelada. Em Gabriel a poesia é fluxo, correnteza, corredeiras bravias escalavrando a pedra, pedra no meio do caminho do verso aberto da vida, da bruta vida.
Assim, tardiamente, entro de mala e cuia na barraca poética de Gabriel Nascente e me deixo cativar pela palavra que emociona, encanta e seduz. Lendo Gabriel no remanso da vida, me deixo seguir, fluir, marulhar, atritar. Porque a imagem definitiva de Gabriel que passa a seguir comigo é a de um rio, assim como a de Drummond é a de mina e Minas, pedra e sentimento do mundo; a de Adélia o encantamento do quintal, de palavra pulando o muro; a de CecÃlia a palavra de cristal, tilintando, tilintando; a de Elisa a luminosidade do cotidiano que pede holofotes e palco; e a de Manuel, a de rosas e estrelas, o transitório e o inatingÃvel no mundo de Pasárgada, o território da poesia – que à s vezes se desmancha no ar e noutras constrói insólitas pontes para outros mundos além do tempo e dos homens presentes.
Manuel Bandeira dizia que não existem poetas perfeitos, mas poemas perfeitos. Falava também que a poesia era feita de pequeninos nadas, em sÃntese, a palavra, veÃculo da poesia. O rigor e a perfeição da forma, em CecÃlia ou em Manuel (que sabia se renovar e transitar) não encaixotaram a poesia desses grandes nos escaninhos de movimentos e escolas. ArtÃfices do verso, sim, mas completamente benzidos pela poesia da vida e entregues ao seu fluxo e à comunicação com os homens, função primordial da arte.
Nos poetas há que amar as pequenas jóias da perfeição (alguns viveram por ela, oh, Mallarmé! Bendito João Cabral!), mas também a sublime imperfeição, que humaniza – a poesia me ensina, para o bem da poesia, que às vezes é preciso quebrar a perfeição a marteladas. Navegando longos trechos de calmaria e também me perdendo em vertentes acidentadas do rio poético de Gabriel, me extasio – voyeuse de palavra que sou – com delicadas jóias reluzentes no leito caudaloso de sua poesia. Claro que me encanto com achados formais, com a arquitetura do verso, com a metalinguagem de Gabriel, naquele ninado diálogo do poeta com o verso, com o fazer poético e com os grandes poetas deste e de outros tempos.
Mas o que me fisga é o fluxo, o transbordamento, à s vezes, o excesso, as lascas dissonantes, as lambidas de margem, o arrastar de terra, o trazer pra dentro os ruÃdos de fora e incorporá-los sem mais nem quê ao movimento do rio. Às vezes um tornar mais robusto e noutras mais frágil o barquinho do poemar. Enfim, os sobressaltos, os riscos e surpresas da navegação, no absoluto desamparo da entrega. Leio Gabriel e ouço vozes que me agradam, me inquietam, me sossegam, me desintegram, me recompõem. Porque a poesia expande os pulmões e a consciência, me ajuda a respirar e a viver melhor. Leio e a palavra me transporta para outras profundezas que escavo além do outro.
A palavra me faz viver e querer encontrar portas, porque na poesia, como no mundo mágico de Oz, não é seguro seguir nem evitar a estrada de tijolos amarelos, porque o enigma do cavalo é sempre de outra cor e nos instiga até o limite da pedra em todas as encruzilhadas. É preciso encontrar a chave que não existe e abrir a porta que não se vê e por instinto de sobrevivência fazer parte do enigma. Que bom que abri a porta da poesia de Gabriel. Que bom fazer parte do enigma da poesia e me deixar devorar pelo mistério da palavra que me humaniza e me faz renascer com o sempre renovado desejo de travessia para a terceira margem do rio.
Os tripulantes
I
Embarcado no chão desta barca
vou remando a vida neste rio de osso.
A barca é seca. Eu sou de cal.
A vida se tresmalha na ilusão
de mil viagens
e o tempo, no entanto,
vai na sola do sapato.
II
Embarcado no chão desta barca
vou remando a vida neste rio de osso.
Tive saudade da estrela que nunca fui,
do boneco de pano sepultado no lixo.
Cá fora, o sol e sua máquina
hão de roer as contendas
do mundo.
III
Embarcado no chão desta barca
vou remando a vida neste rio de osso.
Tenho bandeiras da cor do chão.
Ah! Coração feito
bomba de algodão!
A vida vai no remo.
Eu vou na barca.
A barca é seca.
Eu sou de cal.
(Gabriel Nascente/Do livro Pastoral – 1980)
que bom ter você de volta ao Overmundo, Cida!
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 15/6/2009 23:30Ótimo o artigo. Tanto a poesia das tuas palavras (que não são menos poesia que a das palavras do Gabriel) quanto a informação já absorvida de um poeta que tem 53 (!!!) livros já publicados aà em Goiás e eu jamais havia ouvido falar. Santa ignorância, Batman! :)
Viktor Chagas · Rio de Janeiro, RJ 16/6/2009 15:54
Cida, que enorme prazer é, sempre, ler um texto seu. Sua prosa é toda poesia!
Também nunca ouvi falar no autor, o que é bem estranho considerando a quantidade de livros que ele já publicou e a qualidade que a gente pode ver nesse poema que vc postou. Eu acho que o Brasil tem tanta gente boa pra ser descoberta...
Acho que vc toca em dois pontos interessantes no seu texto: o primeiro deles é a menção ao preconceito que o autor local sofre dos seus pares e, por tabela, do público (que não leu e não gosta). Fico pensando que isso (que ocorre aqui na minha terra também) não seria uma espécie de auto-desvalorização da própria cultura, e é caracterÃstica nossa, brasileira. Eu adoraria que um dia a gente olhasse para a nossa cultura com os nossos próprios olhos e visse a beleza dela como é, e não como nos dizem que ela é.
Outra coisa que me chamou a atenção é o que vc diz sobre o fato de que se Gabriel tivesse saÃdo de Goiás, como JJVeiga, teria mais valor em Goiás e no paÃs. Será? Isso é muito relativo. Resisto à idéia de que um artista tem que sair da sua terra para ser reconhecido. Embora eu ache que todo mundo tem que sair da sua terra, conhecer novas culturas e modos de ser, o fato de um artista optar por fazer sua carreira no próprio lugar deveria ser valorizado.
beijos!
Repito as palavras do Hermano: que bom ter vc de volta aqui! Para melhor poeta do overmundo indiquei seu nome, gosto de tudo que escreve e ainda mais falando do querido Gabriel Nascente, uma joia goiana...
Matéria belÃssima, como sempre...
bjs
Sinva
Agrade_Cida, por assim seres tão e tanto.
E nos dar de presentes tu, teu texto lindo, maravilhoso, inteligente e um poeta enorme já pronto, denso e fresquinho de se conhecer novo, e ler rindo de prazer e gemer de dor de não tê-lo antes lido e - que coisa esse Brasil de desconhecidos imensos e essa imensa safadeza de conhecidos existirem, né!
Minha vó, querida Cida, sempre me alerta pra não julgar, mas se não é de sapecar uns cascudos nos oito oportunistas julgadores que querem acabar com as carreiras sofridas e duraspenamente construÃdas dos de de canetinhas e lentes que jornalistas fizeram muito e ainda fazem pelos brasis esquecidos, como tu.
Viva a Cida jornalista, que poeta é linda!
Beijo, querida... desde as alemanhas, da neguinha tua amiga.
Cida,
minha poeta maior, que bom que me fizeste voltar aqui, para beber de novo tuas palavras. Agora sobre este poeta Nascente com nome de anjo, Gabriel! E que poeta! Como nunca me fora revelado? Como nunca o conheci? Os poemas-aperitivos com que você nos brinda aqui são de uma beleza Ãmpar e de uma profundidade inaudÃvel aos que não conhecem o fundo, o fim, as pedras frias dos leitos, os gritos, os guetos. Os poemas que inauguram este-poeta anjo em mim (Os tripulantes e O poeta da casa do fim da rua) são duas obras-primas que acordaram horizontes adormecidos e me deram aquela inveja gostosa de não ter dito ou lido, interdito na ignorância, o verso, o tempo, o ritmo, a grandeza deste enigma chamado Gabriel Nascente, anjo que anuncia o poema, a vida, o rumo, o remo, a cal. Obrigado, Cida, mais uma vez pelo presente. Bjs.
Excelente descobrir esses Brasis. Obrigado por cultivarem a cultura nossa de cada dia
Rafael Trombetta · Porto Alegre, RS 18/6/2009 22:02
Hermano, obrigada pelas boas-vindas. É muito bom voltar com uma recepção calorosa. Aqui me sinto em casa.
Viktor, o Brasil é mesmo uma imensa caixa de surpresas! Apesar do mundo a um click, existem tantas coisas para serem conhecidas, descobertas e partilhadas, às vezes no universo do próprio bairro. Obrigada pela leitura e o comentário.
Cláudia, prazer o meu em encontrá-la por aqui, sempre atenta e com comentários instigantes. O Brasil é mesmo essa imensa e instigante caixa de surpresas! Um Brasil tão desencontrado de si mesmo, cheio de paradoxos e tão carente de auto valorização, como você se referiu, que me faz lembrar a letra daquela canção, “o Brasil não conhece o Brasilâ€. Que bom que existe um espaço como Overmundo que torna possÃvel essa troca de informações e diálogo.
Gabriel Nascente é o poeta mais produtivo de Goiás e um dos mais premiados, sem contar o sucesso de crÃtica fora do Estado. Já foi elogiado por Drummond, Menotti Del Picchia, Affonso Romano de Sant’anna, Wilson Martins e outros. O fato é que possui não só uma vastÃssima obra (predominantemente poética, com incursões pelo romance, novela e crônica), mas uma obra de grande qualidade. O que falta, como sempre, são os leitores, e isso mesmo entre os “paresâ€.
Dizem que em arte uma das formas de morte é a indiferença. Aquela velha história: santo de casa pode até fazer milagre, mas o difÃcil é ser canonizado. Gabriel está há mais de 40 anos na estrada. É um batalhador incansável. Pratica ferrenhamente o ativismo literário em busca de divulgação de sua obra. Continua com a vitalidade de um garoto. Mas escrevendo praticamente para ninguém, sem o devido reconhecimento. O que falta a Gabriel é a estrutura de uma grande editora, com esquema de distribuição nacional.
Somos mesmo um PaÃs de grandes paradoxos. Esse é um velho dilema: precisar do olhar de fora como medida de valorização do que é nosso, do que está próximo. E você está com toda razão, é uma questão cultural mesmo, coisa do nosso processo de formação de identidade. Também penso que o fato de um artista optar por fazer sua carreira no próprio lugar deveria ser valorizado. Mas será que a trajetória de Drummond seria a mesma se tivesse continuado em Itabira ou BH? Será que Cora Coralina teria ganhado expressão sem as bênçãos de Drummond? Tudo é mesmo muito relativo, mas as exceções só têm confirmado a regra.
Beijo grande!
Sinvaline, agrade_cida pelas palavras. O Gabriel é mesmo um batalhador e merecedor de todo reconhecimento. E vida longa ao poeta!
Juli, querida, bom reencontrar você. O Brasil tem mesmo dessas coisas. Sucesso e muita luz.
Ayrumam, saudações! Que também tenha muita paz e saúde.
Nivaldo e Rafael, mais do que agrade_Cida pela leitura e os comentários. Ainda bem que temos um Brasil por fazer, descobrir e partilhar.
Beijo grande!
O poetinha Gabriel Nascente foi eleito ontem para a Cadeira nº 40 da Academia Goiana de Letras. Ele sucede o também poeta A. G. Ramos Jubé.
Luiz de Aquino · Goiânia, GO 11/6/2010 08:53Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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