O claro enigma de Gabriel

Sinésio Dioliveira
Gabriel Nascente e o periquito Loló, seu companheiro inseparável
1
Cida Almeida · Goiânia, GO
17/6/2009 · 33 · 14
 

Antes tarde do que nunca. E foi assim, dantescamente, no meio do caminho desta vida, que finalmente me encontrei com a poesia de Gabriel Nascente, o poeta falador que chegou barulhentamente muito antes da segunda e definitiva e sublime impressão. Lembro de já ter entrevistado Gabriel. E me acostumei a vê-lo por aí, sempre às voltas com alguma polêmica nos jornais. Mais que isso, me acostumei com a visão rasteira cristalizada em Goiás sobre Gabriel Nascente, um poeta muito comentado – na maioria das vezes com indisfarçável desdém – e pouco lido. Tem gente que nunca leu Gabriel e mesmo assim continua não gostando.

Esse deitar comodamente nas impressões alheias me privou do privilégio da poesia de Nascente. Finalmente, rompi a bolha e me deixei agarrar pelos tornozelos, numa leitura de fôlego, Inventário Poético (2005), uma coletânea organizada pela professora Vera Tietzmann Silva e o escritor Aidenor Aires, que reúne o que consideram de mais representativo na obra de Gabriel – uma viagem por 22 dos 53 livros que publicou. O volume (500 páginas) me ganhou para a poesia do Bié do Bairro Popular, um anjo torto que continua rebentando de tanta poesia. Sublime poesia!

Está lá na minha estante o livro, na parte que mais gosto, a Torre de Babel, todo rabiscado pelo meu lápis maluquinho, que registra as impressões de leitura. E escapam adjetivos em muitos trechos sublinhados: bom, muito bom; magnífico; sublime; soberbo verso... E Gabriel joga um bolão no time dos que pintam e bordam dentro da gente com as palavras. Nesse emaranhado de impressões, penso que o problema de Gabriel foi não ter se arriscado na travessia em definitivo das divisas de Goiás, como fez José J. Veiga, Afonso Félix de Souza e outros.

A poesia de Gabriel é água que teima em brotar de profundos lençóis, com um lirismo comovente, arrebatador, em que uma imagem de repente salta e cativa e é o bastante para nos fazer seguir a língua do anjo da palavra rebelada. Em Gabriel a poesia é fluxo, correnteza, corredeiras bravias escalavrando a pedra, pedra no meio do caminho do verso aberto da vida, da bruta vida.

Assim, tardiamente, entro de mala e cuia na barraca poética de Gabriel Nascente e me deixo cativar pela palavra que emociona, encanta e seduz. Lendo Gabriel no remanso da vida, me deixo seguir, fluir, marulhar, atritar. Porque a imagem definitiva de Gabriel que passa a seguir comigo é a de um rio, assim como a de Drummond é a de mina e Minas, pedra e sentimento do mundo; a de Adélia o encantamento do quintal, de palavra pulando o muro; a de Cecília a palavra de cristal, tilintando, tilintando; a de Elisa a luminosidade do cotidiano que pede holofotes e palco; e a de Manuel, a de rosas e estrelas, o transitório e o inatingível no mundo de Pasárgada, o território da poesia – que às vezes se desmancha no ar e noutras constrói insólitas pontes para outros mundos além do tempo e dos homens presentes.

Manuel Bandeira dizia que não existem poetas perfeitos, mas poemas perfeitos. Falava também que a poesia era feita de pequeninos nadas, em síntese, a palavra, veículo da poesia. O rigor e a perfeição da forma, em Cecília ou em Manuel (que sabia se renovar e transitar) não encaixotaram a poesia desses grandes nos escaninhos de movimentos e escolas. Artífices do verso, sim, mas completamente benzidos pela poesia da vida e entregues ao seu fluxo e à comunicação com os homens, função primordial da arte.

Nos poetas há que amar as pequenas jóias da perfeição (alguns viveram por ela, oh, Mallarmé! Bendito João Cabral!), mas também a sublime imperfeição, que humaniza – a poesia me ensina, para o bem da poesia, que às vezes é preciso quebrar a perfeição a marteladas. Navegando longos trechos de calmaria e também me perdendo em vertentes acidentadas do rio poético de Gabriel, me extasio – voyeuse de palavra que sou – com delicadas jóias reluzentes no leito caudaloso de sua poesia. Claro que me encanto com achados formais, com a arquitetura do verso, com a metalinguagem de Gabriel, naquele ninado diálogo do poeta com o verso, com o fazer poético e com os grandes poetas deste e de outros tempos.

Mas o que me fisga é o fluxo, o transbordamento, às vezes, o excesso, as lascas dissonantes, as lambidas de margem, o arrastar de terra, o trazer pra dentro os ruídos de fora e incorporá-los sem mais nem quê ao movimento do rio. Às vezes um tornar mais robusto e noutras mais frágil o barquinho do poemar. Enfim, os sobressaltos, os riscos e surpresas da navegação, no absoluto desamparo da entrega. Leio Gabriel e ouço vozes que me agradam, me inquietam, me sossegam, me desintegram, me recompõem. Porque a poesia expande os pulmões e a consciência, me ajuda a respirar e a viver melhor. Leio e a palavra me transporta para outras profundezas que escavo além do outro.

A palavra me faz viver e querer encontrar portas, porque na poesia, como no mundo mágico de Oz, não é seguro seguir nem evitar a estrada de tijolos amarelos, porque o enigma do cavalo é sempre de outra cor e nos instiga até o limite da pedra em todas as encruzilhadas. É preciso encontrar a chave que não existe e abrir a porta que não se vê e por instinto de sobrevivência fazer parte do enigma. Que bom que abri a porta da poesia de Gabriel. Que bom fazer parte do enigma da poesia e me deixar devorar pelo mistério da palavra que me humaniza e me faz renascer com o sempre renovado desejo de travessia para a terceira margem do rio.






Os tripulantes


I

Embarcado no chão desta barca
vou remando a vida neste rio de osso.
A barca é seca. Eu sou de cal.
A vida se tresmalha na ilusão
de mil viagens
e o tempo, no entanto,
vai na sola do sapato.

II

Embarcado no chão desta barca
vou remando a vida neste rio de osso.
Tive saudade da estrela que nunca fui,
do boneco de pano sepultado no lixo.

Cá fora, o sol e sua máquina
hão de roer as contendas
do mundo.

III

Embarcado no chão desta barca
vou remando a vida neste rio de osso.
Tenho bandeiras da cor do chão.
Ah! Coração feito
bomba de algodão!
A vida vai no remo.
Eu vou na barca.
A barca é seca.
Eu sou de cal.

(Gabriel Nascente/Do livro Pastoral – 1980)

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Hermano Vianna
 

que bom ter você de volta ao Overmundo, Cida!

Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 15/6/2009 23:30
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Viktor Chagas
 

Ótimo o artigo. Tanto a poesia das tuas palavras (que não são menos poesia que a das palavras do Gabriel) quanto a informação já absorvida de um poeta que tem 53 (!!!) livros já publicados aí em Goiás e eu jamais havia ouvido falar. Santa ignorância, Batman! :)

Viktor Chagas · Rio de Janeiro, RJ 16/6/2009 15:54
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Ilhandarilha
 

Cida, que enorme prazer é, sempre, ler um texto seu. Sua prosa é toda poesia!

Também nunca ouvi falar no autor, o que é bem estranho considerando a quantidade de livros que ele já publicou e a qualidade que a gente pode ver nesse poema que vc postou. Eu acho que o Brasil tem tanta gente boa pra ser descoberta...

Acho que vc toca em dois pontos interessantes no seu texto: o primeiro deles é a menção ao preconceito que o autor local sofre dos seus pares e, por tabela, do público (que não leu e não gosta). Fico pensando que isso (que ocorre aqui na minha terra também) não seria uma espécie de auto-desvalorização da própria cultura, e é característica nossa, brasileira. Eu adoraria que um dia a gente olhasse para a nossa cultura com os nossos próprios olhos e visse a beleza dela como é, e não como nos dizem que ela é.

Outra coisa que me chamou a atenção é o que vc diz sobre o fato de que se Gabriel tivesse saído de Goiás, como JJVeiga, teria mais valor em Goiás e no país. Será? Isso é muito relativo. Resisto à idéia de que um artista tem que sair da sua terra para ser reconhecido. Embora eu ache que todo mundo tem que sair da sua terra, conhecer novas culturas e modos de ser, o fato de um artista optar por fazer sua carreira no próprio lugar deveria ser valorizado.

beijos!

Ilhandarilha · Vitória, ES 17/6/2009 17:24
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Sinvaline
 

Repito as palavras do Hermano: que bom ter vc de volta aqui! Para melhor poeta do overmundo indiquei seu nome, gosto de tudo que escreve e ainda mais falando do querido Gabriel Nascente, uma joia goiana...
Matéria belíssima, como sempre...

bjs
Sinva

Sinvaline · Uruaçu, GO 18/6/2009 13:29
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Juliaura
 

Agrade_Cida, por assim seres tão e tanto.
E nos dar de presentes tu, teu texto lindo, maravilhoso, inteligente e um poeta enorme já pronto, denso e fresquinho de se conhecer novo, e ler rindo de prazer e gemer de dor de não tê-lo antes lido e - que coisa esse Brasil de desconhecidos imensos e essa imensa safadeza de conhecidos existirem, né!
Minha vó, querida Cida, sempre me alerta pra não julgar, mas se não é de sapecar uns cascudos nos oito oportunistas julgadores que querem acabar com as carreiras sofridas e duraspenamente construídas dos de de canetinhas e lentes que jornalistas fizeram muito e ainda fazem pelos brasis esquecidos, como tu.
Viva a Cida jornalista, que poeta é linda!
Beijo, querida... desde as alemanhas, da neguinha tua amiga.

Juliaura · Porto Alegre, RS 18/6/2009 16:16
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ayruman
 

Belo e merecida homenagem...
Saúde e Paz.

ayruman · Cuiabá, MT 18/6/2009 18:28
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Nivaldo Lemos
 

Cida,
minha poeta maior, que bom que me fizeste voltar aqui, para beber de novo tuas palavras. Agora sobre este poeta Nascente com nome de anjo, Gabriel! E que poeta! Como nunca me fora revelado? Como nunca o conheci? Os poemas-aperitivos com que você nos brinda aqui são de uma beleza ímpar e de uma profundidade inaudível aos que não conhecem o fundo, o fim, as pedras frias dos leitos, os gritos, os guetos. Os poemas que inauguram este-poeta anjo em mim (Os tripulantes e O poeta da casa do fim da rua) são duas obras-primas que acordaram horizontes adormecidos e me deram aquela inveja gostosa de não ter dito ou lido, interdito na ignorância, o verso, o tempo, o ritmo, a grandeza deste enigma chamado Gabriel Nascente, anjo que anuncia o poema, a vida, o rumo, o remo, a cal. Obrigado, Cida, mais uma vez pelo presente. Bjs.

Nivaldo Lemos · Rio de Janeiro, RJ 18/6/2009 20:25
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Rafael Trombetta
 

Excelente descobrir esses Brasis. Obrigado por cultivarem a cultura nossa de cada dia

Rafael Trombetta · Porto Alegre, RS 18/6/2009 22:02
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Cida Almeida
 

Hermano, obrigada pelas boas-vindas. É muito bom voltar com uma recepção calorosa. Aqui me sinto em casa.

Viktor, o Brasil é mesmo uma imensa caixa de surpresas! Apesar do mundo a um click, existem tantas coisas para serem conhecidas, descobertas e partilhadas, às vezes no universo do próprio bairro. Obrigada pela leitura e o comentário.

Cida Almeida · Goiânia, GO 19/6/2009 11:42
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Cida Almeida
 

Cláudia, prazer o meu em encontrá-la por aqui, sempre atenta e com comentários instigantes. O Brasil é mesmo essa imensa e instigante caixa de surpresas! Um Brasil tão desencontrado de si mesmo, cheio de paradoxos e tão carente de auto valorização, como você se referiu, que me faz lembrar a letra daquela canção, “o Brasil não conhece o Brasilâ€. Que bom que existe um espaço como Overmundo que torna possível essa troca de informações e diálogo.

Gabriel Nascente é o poeta mais produtivo de Goiás e um dos mais premiados, sem contar o sucesso de crítica fora do Estado. Já foi elogiado por Drummond, Menotti Del Picchia, Affonso Romano de Sant’anna, Wilson Martins e outros. O fato é que possui não só uma vastíssima obra (predominantemente poética, com incursões pelo romance, novela e crônica), mas uma obra de grande qualidade. O que falta, como sempre, são os leitores, e isso mesmo entre os “paresâ€.

Dizem que em arte uma das formas de morte é a indiferença. Aquela velha história: santo de casa pode até fazer milagre, mas o difícil é ser canonizado. Gabriel está há mais de 40 anos na estrada. É um batalhador incansável. Pratica ferrenhamente o ativismo literário em busca de divulgação de sua obra. Continua com a vitalidade de um garoto. Mas escrevendo praticamente para ninguém, sem o devido reconhecimento. O que falta a Gabriel é a estrutura de uma grande editora, com esquema de distribuição nacional.

Somos mesmo um País de grandes paradoxos. Esse é um velho dilema: precisar do olhar de fora como medida de valorização do que é nosso, do que está próximo. E você está com toda razão, é uma questão cultural mesmo, coisa do nosso processo de formação de identidade. Também penso que o fato de um artista optar por fazer sua carreira no próprio lugar deveria ser valorizado. Mas será que a trajetória de Drummond seria a mesma se tivesse continuado em Itabira ou BH? Será que Cora Coralina teria ganhado expressão sem as bênçãos de Drummond? Tudo é mesmo muito relativo, mas as exceções só têm confirmado a regra.

Beijo grande!

Cida Almeida · Goiânia, GO 19/6/2009 11:51
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Cida Almeida
 

Sinvaline, agrade_cida pelas palavras. O Gabriel é mesmo um batalhador e merecedor de todo reconhecimento. E vida longa ao poeta!

Juli, querida, bom reencontrar você. O Brasil tem mesmo dessas coisas. Sucesso e muita luz.

Ayrumam, saudações! Que também tenha muita paz e saúde.

Cida Almeida · Goiânia, GO 19/6/2009 13:43
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Cida Almeida
 

Nivaldo e Rafael, mais do que agrade_Cida pela leitura e os comentários. Ainda bem que temos um Brasil por fazer, descobrir e partilhar.

Beijo grande!

Cida Almeida · Goiânia, GO 19/6/2009 13:47
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Luiz de Aquino
 

O poetinha Gabriel Nascente foi eleito ontem para a Cadeira nº 40 da Academia Goiana de Letras. Ele sucede o também poeta A. G. Ramos Jubé.

Luiz de Aquino · Goiânia, GO 11/6/2010 08:53
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Poeta Carlos Máximo
 

Um poeta de obras excelente.

Poeta Carlos Máximo · Goiânia, GO 28/6/2013 17:28
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