O escritor coletivo

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Wu Ming: A revolução sem rosto
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Reuben da Cunha Rocha · São Paulo, SP
4/2/2009 · 169 · 12
 

A arte como bem comum e não privilégio do artista, o artista como integrante da lógica coletiva do conhecimento e não uma celebridade, estes princípios arcaicos orientam as ações de vanguarda do coletivo italiano Wu Ming.

Só não confunda vanguarda com vanguarda. Nada de experimentalismos de linguagem ou radicais ideais estéticos - não é esta a natureza do pioneirismo do Wu Ming [expressão chinesa que significa 'sem nome']. Não a velha luta para 'expandir os limites da linguagem', o ramerrão do século 20 inteiro, mas a luta pelo uso coletivo do saber - desde sua produção até o seu uso. Há 12 anos os integrantes do coletivo [conhecido, até 1999 e com outra formação, como Luther Blissett Project] militam sob a sigla do copyleft, e há 14, pela desglamourização do artista.

"Partimos do reconhecimento da gênese social do saber. Ninguém tem idéias que não tenham sido direta ou indiretamente influenciadas por suas relações sociais, pela comunidade de que faz parte etc. e então se a gênese é social também o uso deve permancer tal qual."

As práticas do Wu Ming [expressão chinesa que também significa 'cinco nomes', a depender da entonação com que se fala] contra a lógica da cultura oficial - monetarista, individualista, apoiada no mito da celebridade e do gênio criador, este personagem não exatamente falso, mas que serve de fundo ideológico pro ideal de originalidade que sustenta a indústria do copyright - ocorrem em várias frentes. Não apenas os livros do grupo podem ser oficial e gratuitamente baixados e livremente copiados [alguns em português, e mais alguns, mas nem todos], como os 05 integrantes do coletivo trabalham de fato coletivamente, assinando como grupo a autoria de vários de seus livros. Entre eles está o romance Q - O caçador de hereges, que desafia o argumento de que a pirataria mata o artista de fome, disponível pra download há vários anos e em várias línguas e ainda assim um best seller.

Mesmo os trabalhos individuais trazem a marca do grupo. O belo romance ("objeto narrativo não-identificado", como prefere o autor) New Thing, recém-lançado no Brasil pela editora Conrad, é assinado por Wu Ming 1, mas a voz continua coletiva: o livro imita a edição de documentário, e toda a narrativa se desenrola através dos depoimentos dos personagens, apenas editados por um invisível diretor. Além disso, esta que seria uma espécie de narrativa policial (misteriosos assassinatos envolvendo músicos de jazz ocorrem na New York dos anos 60) traz toda a discussão em torno da cultura livre, desde o método da colagem até a tecnologia P2P.

A identidade do autor não é um segredo, e nem a de seus pares. Wu Ming 1 nasceu Roberto Bui - Wu Ming 2 é Giovanni Cattabriga, Wu Ming 3 é Luca de Meo, Wu Ming 4 é Federico Guglielmi e Wu Ming 5, Riccardo Pedrini. O coletivo contra-explica: "quem, ainda hoje, continua dizendo frases do tipo: 'os 5 escritores que se escondem por trás do pseudônimo coletivo 'Wu Ming'' ou 'que sentido faz não assinarem seus verdadeiros nomes, se na realidade todos sabem como eles se chamam?' está convidado a efetuar as seguintes substituições: '97' no lugar de '5'; 'músicos' no lugar de 'escritores'; 'London Symphony Orchestra' no lugar de 'Wu Ming'". Tá bom assim?

No site do Wu Ming [na China, uma assinatura bastante comum entre os dissidentes que lutam por democracia e liberdade de expressão], como era de se esperar, há (além dos livros) diversos textos disponíveis pra download. A grata surpresa está aqui, vários desses textos disponíveis em português. Além das várias colaborações e entrevistas concedidas à imprensa brasileira [alguns integrantes do coletivo já estiveram por aqui, envolvidos em atividades que vão desde lançamentos de livros até palestras sobre cultura livre], vale a pena conferir o histórico de curiosas atividades do grupo e os diversos textos sobre copyleft, de onde foram extraídas as citações-links desta matéria.

"Nós começamos a lidar com esses assuntos bem antes do Creative Commons existir. A maioria de nós esteve envolvida com pós-punk anti-copyright e a cultura do faça-você-mesmo desde o início dos anos 90. O Luther Blissett Project foi fortemente influenciado por 'mail art' e pelo underground pós-punk/noise/eletrônico, gente como Negativland etc. Esse tipo de cultura já tinha desenvolvido uma crítica radical ao copyright como o conhecemos. Como resultado, o Luther Blissett nasceu com esse tipo de atitude. Todos os nossos trabalhos (livros, música e todo tipo de coisa) eram sem copyright. Em 1996 começamos a usar uma licença copyleft."

A literatura do Wu Ming é vigorosa e renovada, e sempre aponta para novas possibilidades narrativas - estou lhe dizendo, New Thing é uma das coisas mais bonitas que já li. Há uma boa dose de gratificação em ver um grupo de artistas tão excelente dedicar-se a outras coisas além de sua própria arte e como-viver-dela. Coisas, arrisque-se dizer contra os ideólogos do 'a-vida-passa-só-a-obra-permanece', maiores. Condições mais democráticas e não-exclusivistas de fazer e curtir cultura, por exemplo. Um contexto outro, em que os grandes livros fiquem ainda melhores.

"A propriedade intelectual (copyrights, marcas registradas, patentes etc) se tornou um monstro em todos os campos do conhecimento. Algumas corporações detêm até o DNA de certos seres humanos. Plantas que sempre existiram e sempre serviram de alimento para a humanidade estão sendo patenteadas por bastardos gananciosos e se tornando propriedade privada, e então eles podem revendê-la exatamente para as mesmas pessoas que costumavam plantá-las, cultivá-las e comê-las. Falando estritamente de arte e literatura, os termos de prazos do copyright estão sendo ampliados de uma maneira sem precedentes. Há cem anos, o copyright durava 12 anos, agora ele dura 70 anos após a morte do autor, e alguns filhos da puta estão fazendo lobby nos parlamentos para estendê-lo por mais vinte anos! O copyright se tornou uma coisa parasitária. Você se lembra de "About a Boy", do Nick Hornby? O personagem principal é um cara rico e mimado que não tem nenhum interesse real na vida, ele é cheio da grana e vive uma vida ociosa no West End de Londres. Por que? Porque o pai dele escreveu uma famosa música de Natal, ele herdou o copyright e ganha a vida com as execuções públicas, todos os natais. Parece divertido, mas existe toda uma classe de parasitas vivendo desse jeito, eles não têm mérito, não têm habilidades, não têm talento, não têm inteligência, mas eles são absurdamente ricos! É patético e nojento e nós queremos ser parte de uma ofensiva que irá chutar esses caras para fora de suas mansões e os forçar a arrumar um emprego de verdade, pelo amor de Deus!"

* Texto originalmente publicado em baixacultura.org

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Miguens
 

Esse acabou de entrar na lista dos textos mais relevantes que eu já encontrei por aqui.
Não poderia ser mais pertinente.
Abraços!

Miguens · Rio de Janeiro, RJ 2/2/2009 20:54
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Mansur
 

A idéia do copyright está em extinção, é questão de tempo. Esse postado no overmundo ganha ares de meta-artigo. Valeu Reuben!

Mansur · Rio de Janeiro, RJ 2/2/2009 21:05
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Adroaldo Bauer
 

Sou do time, seja gandula ou roupeiro.

Adroaldo Bauer · Porto Alegre, RS 3/2/2009 00:37
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Higor Assis
 

Cultura livre é isso ai. Vamos aprendendo e nos aperfeiçoando para acabar com as ínguas existentes, que infelizmente ainda pensam ao contrário de reservar-se ao direito de guardar o conhecimento.

A palavra é expandir e cultivar riquezas culturais...

Higor Assis · São Paulo, SP 3/2/2009 08:57
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Zema Ribeiro
 

bela estreia, reuben. bem vindo ao clube dos overmanos. abração!

Zema Ribeiro · São Luís, MA 3/2/2009 15:20
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Juliaura
 

Entro nessa roda com alma e cuia!

Juliaura · Porto Alegre, RS 3/2/2009 15:46
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businari
 

egolatria e arte são incompatíveis!!!

businari · São Vicente, SP 3/2/2009 16:05
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Stella Tuttolomondo
 

Stella Tuttolomondo · Rio de Janeiro, RJ 3/2/2009 18:11
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clara arruda
 

clara arruda · Rio de Janeiro, RJ 4/2/2009 10:43
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Bethânia Zanatta
 

também sou do time.
bom post!
abraço.

Bethânia Zanatta · Santa Maria, RS 4/2/2009 14:12
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ayruman
 

Oi Reuben. Desculpe o tempo rápido... Bom estar aqui apreciando seu belo e inquestionável trabalho. Excelente texto.
Luz e Paz . jbconrado.

ayruman · Cuiabá, MT 4/2/2009 15:18
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joao xavi
 

faz tempo que não ouvia falar sobre essa onda, que eu conheci a uns bons 10 anos através do Luther Blissett. engraçado é que, naquela época, 98, 99, estes textos ainda não faziam muito sentido em um Brasil que se conectava pela lentidão da coneção discada.
hoje, que temos mil e uma possibilidades de intervenção e diálogo on line é a época perfeita para retomada dessa conversa.
revolução sem rosto, com gosto e coletiva, só porque juntinho é mais gostoso.

joao xavi · São João de Meriti, RJ 4/2/2009 15:52
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