Por que se faz um filme ou vÃdeo? Essa é a pergunta que um projeto como o “Revelando os Brasis†(rvbr) provoca. A imagem que ilumina a tela de cinema ou o telão do projeto nos conduz pelo escuro túnel de nossas vidas. A imagem projetada é o reflexo de nossas almas. Nossos sonhos são como frames, e o caminho que escolhemos seguir se assemelha ao ângulo ou ao corte que escolhemos fazer quando produzimos um filme. Ultimamente estamos anestesiados diante de tantas imagens. Quase não conseguimos mais nos emocionar com os dilemas da vida alheia. A dor, a alegria, o sofrimento e o prazer do outro, hoje em dia, só nos atinge bem embalados por efeitos estéticos ou especiais. A bela fotografia nos conforta, pois distancia a realidade da tela, daquilo que nos espera quando o filme acabar. Um efeito curioso da precariedade das produções do rvbr é a suspensão da ilusão. O que vemos na tela é a realidade, a ficção é a nossa vida nas grandes cidades. Ao assistir um dos vÃdeos do rvbr um tipo diferente de olhar é necessário. Não espere enxergar nada, se você não conseguir ver o ser-humano que existe ali na tela.
Celismando e Valdete são dois baianos revelados nessa tela. Eles existem, mas nunca foram vistos, são como os milhares de fantasmas que habitam o nosso paÃs. InvisÃveis, pois a distância dos centros esmaece seu verniz. A experiência de participar do rvbr abre uma porta de esperança para quem perseverou na luta cotidiana contra o poder que injustamente tem silenciado a voz de tantos ouvintes e telespectadores. Só lembrados quando o exotismo é noticiado, ou quando alguém que já viveu por ali relembra, idealiza e dramatiza o que poderia ser a bucólica e dura vida de quem ainda vive por lá. É bem diferente quando a câmera está na mão de quem ainda vive essa realidade. Tudo o que estiver “erradoâ€, “feioâ€, “tosco†ou “beloâ€, num vÃdeo desses, é de fundamental importância, pois diz algo que a cegueira da hábito não nos deixar ver. Assisti-los é, para nós, os “cultos†habitantes da cidade grande, uma excelente oportunidade de voltar a sentir algo. Sem que seja necessário uma gota de sangue, um grito de horror, uma cena aberrante, uma montagem alucinada, ou um enquadramento elegante.
O caminho para compreender de forma mais aprofundada o que alguns desses vÃdeos promete pode ser encurtado através da antropologia. Nenhum dos realizadores, nem seus atores, freqüentam as revistas de fofocas, não estão disputando o seleto espaço dos cadernos de cultura, dificilmente serão eleitos, ou mesmo aceitos, nos concursos de misses, nas mostras, ou nos festivais. Não é a estética deles que irá atrair-nos, mas sim sua verdade. Não são feios, nem belos – são visões de um mundo que a gente desconhece. Por isso acho que a antropologia é uma ferramenta preciosa se quisermos compreendê-los.
Bem diferente é a situação dos conterrâneos dos realizadores, e bem mais contundente é sua apreciação. Gostando ou não, dificilmente conseguem ignorar a arrebatadora força de ver sua cidade na tela. É como se alguém fizesse um filme sobre sua famÃlia. Tentei etnografar algumas dessas impressões (a etnografia é um jornalismo mais chique, e ao mesmo tempo mais fofoqueiro).
Cena 1 – o desagravo
Apesar do nome, a recepção em Ãgua-Fria foi quente. Mais de 3.000 pessoas estavam na praça. Antes de começar a exibição, fomos brindados com a apresentação dos cantadores de toada Elpidio Maciel, o Dudu, e Robenilson, seu filho. Um clima atemporal pairou no ar. Na Grécia antiga, o canto dos aedos tinha o papel do cinema. Era através de versos cantados que o público da Grécia era transportado ao cenário de batalhas como o da história de Aquiles (hoje mais conhecido como o Brad Pitt de “Tróiaâ€). Logo em seguida foi a vez da uma divertida quadrilha junina encenar simbolicamente os percalços da vida a dois.
“Gente, eu espero que depois desse vÃdeo a história do Santo Antônio que foi condenado não amaldiçoe mais nossa cidadeâ€. Foi mais ou menos com essas palavras que Valdete Cunha, a diretora, apresentou seu desagravo. Um trabalho fruto de 10 anos de pesquisa sobre a história de sua cidade, com especial atenção para o nebuloso episódio da injusta condenação. Seu documentário “O Santo que foi condenado†tenta, através de depoimentos e da reconstituição de algumas cenas, trazer luz e esperança aos conterrâneos que ainda creditam os infortúnios da região a um fato meramente burocrático que, ao longo da história, ganhou os contornos mitológicos de uma praga.
Fundada em 1562, a comarca de Ãgua-fria entrou para a história por conta da rigidez com que cumpria as leis, ao ponto de condenar um santo. Segundo conta Câmara Cascudo: “No inÃcio do século XIX, houve a fuga de um escravo na comarca de Jacobina, na Bahia; na fuga o negro matou um homem. Após o crime houve uma pendenga judicial; o dono do escravo, ao pagar uma promessa, tinha doado o negro em cartório para Santo Antônio, prática muito comum entre os devotos. A justiça, provando desde a época sua proverbial competência, intimou o santo para depoimento no processo. Santo Antônio foi retirado do altar da capela mais próxima e transportado para a Vila de Ãgua Fria, onde respondeu, na qualidade de proprietário do negro, ao júri e perdeu os bens que possuÃa na comarca. Escravos e terras que tinham sido doados ao santo em pagamento de promessas foram levados a hasta pública e arrematadosâ€. (no blog: Histórias do Brasil)
Para Marinalva Menezes da Silva, cada um conta a história de um jeito. Muitas são as versões do que aconteceu. Para Gerson Santos, a história foi verÃdica. Ivan Alves acha que o santo nunca foi condenado. O vÃdeo de Valdete provocou um rebuliço danado na cidade, repensando a história e convocando todos para o que ainda virá. Se nada for feito hoje, patrimônios de valor inestimável, como a Igreja de São João Batista, podem desaparecer. O tecido da história é frágil, cabendo muitas possibilidades de interpretação. Dependendo de quem conta e de quem ouve, o passado também se move. Foi sobre essa superfÃcie incerta que Valdete caminhou com o objetivo claro e definido de dar um chega pra lá no papo de maldição que sempre ouviu em sua cidade. Segundo ela, o fato existiu, sim, não foi lenda, nem folclore. Mas a maldição foi alimentada pela superstição e fez, sim, muito mal para a auto-estima da cidade.
Cena 2 – como se fosse eu
Gabriel mora em Ãgua-Fria, tem 9 anos e olha atentamente a tela onde está passando o vÃdeo “Moinhos de Tempo†realizado em Angical por Ronaldo Trindade. Nela, um garoto como ele também fica só. O que ele vê lá na tela e a mesma coisa que ele sente lá no fundo de seu coraçãozinho (há pouco tempo Gabriel perdeu seu pai num acidente de moto). Juntos, o garoto da tela e ele, agora, não estão mais sozinhos.
Cena 3 – a liberdade dos pássaros
A cena já é clássica: a cidade reunida, autoridades, familiares e crianças, a tela branca, as cadeiras, o burburinho, a paquera e as pipocas. Celismando Sodré, o Mandinho, está emocionado, seu discurso de agradecimento tem quase a mesma duração de seu filme. A projeção começa e a panorâmica que abre seu filme “O Valor da Liberdade†causa verdadeira comoção no povo de Barra do Mendes. No decorrer da exibição, temos a impressão de estar assistindo a uma partida decisiva da copa do mundo, tal é a intensidade das reações. São quase 1.500 pessoas hipnotizadas pelo imenso espelho erguido na praça. Assim que o filme do conterrâneo acaba, o encanto já não é o mesmo, mas a boa vontade continua (além do curta de Celismando, são exibidos mais três curtas baianos e uma espécie de making of do projeto).
Algumas horas antes conversei com o Cristiano, conhecido como Kiu Som, ele trabalha numa barraca com DVDs genéricos. Ele ficou muito curioso quanto ao filme, mas como tinha vindo de outra cidade apenas para a famosa feira da segunda-feira, teria de voltar antes da exibição do filme na mesma praça em que agora convivem roupas, frutas, panelas e brinquedos. Segundo ele, um DVD como esse ia vender muito bem, pois o povo do lugar normalmente gosta de ouvir os músicos da terra, mesmo sem gostar, ouvindo mais por curiosidade do que por gosto.
José Rodrigo Abade dos Santos, o Zé, é office-boy. Ele já tinha assistido ao filme de seu conterrâneo no Canal Futura, mas não gostou. Segundo ele, faltou gente e informação. Apesar do esforço e da importância do feito para sua cidade, ele prefere comédias como “O Máscara†e “As Branquelasâ€. Ele não vê muito filme de ficção e gosta mais de assistir aos jornais.
Gilmazinho já foi guitarrista, rodou o Brasil num circo e hoje tem uma oficina mecânica. Mas sua paixão sempre foi o cinema. No final dos anos 70, ele foi um exibidor itinerante de filmes como os de Tony Vieira. Segundo ele, a TV acabou com tudo isso. Quando ele chegava numa cidadezinha e montava sua tela, a novidade era tanta que tinha gente se agachando com medo das balas nas cenas de tiroteio. Hoje em dia os meninos acham tudo na internet, até os filmes de Tony Vieira. Ainda assim, ele afirma que vai ser bem interessante assistir a um filme rodado na cidade num telão no centro da praça.
“O Valor da Liberdade†é uma bonita reflexão sobre a condição humana e a consciência ecológica. O curta narra a história de Pedro, um jovem amante da liberdade e seu pai Joaquim, que tem como hobby a criação de passarinhos. Segundo Celismando - que além de escritor e agora diretor de curtas, também é professor de história e geografia - sua intenção foi chamar a atenção para o risco que o aparente inocente hábito de criar passarinhos pode ter sobre o equilÃbrio ecológico. O roteiro é uma adaptação de um conto de sua autoria, publicado no livro “O Poeta e O Ventoâ€, escrito em parceria com o poeta Wésio Pimentel e inspirado na música “Canarinho Prisioneiroâ€, de Chico Rey & Paraná.
No enredo, a metáfora da condição humana se completa quando o pai do protagonista vai preso numa divertida cena de bebedeira, passando, então, a experimentar do mesmo cerceamento que impõe aos seus pássaros. Só temos consciência do valor da liberdade quando a perdemos, mesmo porque o desejo de liberdade, segundo Sartre, é a base de nossa consciência. O risco é nos habituarmos à s nossas “prisões†cotidianas, perdendo, assim, a capacidade de lutar pela sobrevivência, como na já famosa cena (pelo menos em Barra do Mendes), quando um velho coqui (graúna ou pássaro-preto) é devorado por um gato. O seu canto triste evocava em Pedro a ausência de liberdade e a morte foi sua única “liberdadeâ€.
Uma parte do processo de produção que Celismando gosta especialmente é a montagem, onde se dá o sentido da história. Para ele, filmes como “Ben-Hurâ€, “Um Sonho de Liberdade†e “Olga†nos ensinam a ser seres-humanos melhores. Cidadezinhas como a sua tão querida Barra do Mendes também precisam ser mais lembradas. Para ele, não é o tamanho da cidade que determina sua importância cultural.
Para o ator Miguel Nunes Pacheco, que fez o papel de Joaquim e também é poeta e ecologista, a liberdade só é possÃvel num paÃs democrático, onde se valorize a ética na utilização do dinheiro público. Segundo ele, foi uma grande emoção ter se visto na TV quando o curta foi exibido no Canal Futura. Foi como se a porta da gaiola tivesse sido aberta.
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Estive com a equipe do circuito em duas cidades: Barra do Mendes (no sertão baiano) e Ãgua-Fria (no Recôncavo). Seria um capÃtulo a parte relatar a aventura desses missionários da imagem (vale conhecer o blog do circuito). Fica aqui registrado o meu sincero agradecimento.
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- Andre lega, o teu esforço a tua abordagem, mas acho que canarinho prisioneiro não é de chico rei e paraná, legal, lega, ...
Andre Pessego · São Paulo, SP 24/6/2007 09:40De fato, A.Pessego, segundo o Dicionário Cravo Albin de MPB, a música é de Romancito Gomes. valeu, abçs.
andre stangl · Salvador, BA 24/6/2007 10:58O"Espelho que nos revela",mostrou-me um Brasil que eu conheço pouco,mas bonito de se ver ,agradeço!
linney · Canoas, RS 24/6/2007 17:30
E geralmente esses vÃdeos nos fazem descobrir um Brasil que o Brasil nem conhece!
^^
Adorei!
QUERO PARABENIZAR A ANDRÉ, REALMENTE É MUITO IMPORTANTE ESTE CIRCUITO, POIS, NOS REVALA OS BRASIS QUE NINGUEM CONHECE, COMO DISSE CAROL RODRIGUES, PARABENS A VOCê E A TODOS QUE FAZEM PARTE DESTE GRANDIOSO PROJETO.
Vitor Alcântara · Barra do Mendes, BA 27/6/2007 15:29em 3 cenas, vc disse muita coisa meu velho. aquela querida e tão verdadeira visão dos anônimos.
SILVASSA · Salvador, BA 1/7/2007 10:48
Obrigado linney, carol e vitor. seria legal se os vÃdeos já estivessem on-line, né? vamos esperar... abçs
Guto, meu caro, talvez sejam os únicos q enxergam algo... abçs
andre stangl · Salvador, BA 1/7/2007 11:35Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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