Rodeado de seus alunos da Oficina da Palavra na Kabum! Escola de Arte e Tecnologia, um semblante alegre vem em minha direção com passos rápidos e avidos, pressa para falar e ser entendido, como se pudesse correr do tempo. Tão logo quanto calculou, pára e deseja um bom dia simpático. Alguns fios brancos ternos de maturidade surgem em sua barba enquanto os óculos parecem esconder um olhar tímido, ainda de menino. O mesmo olhar que pede para não colocar o gravador a mostra “para não parecer que estava sendo entrevistado”. Em tom de prosa de bar, com o toque especial de uma música de fundo, colocada por ele mesmo para embalar a conversa, o jornalista, professor e poeta Samarone Lima fala um pouco de suas obras, explica sua visão sobre a imprensa brasileira e expõe sua percepção a respeito do jornalismo literário. E claro, faz o que mais lhe agrada: contar histórias com um jeito todo especial.
O que você pensa sobre o jornalismo brasileiro?
Eu acho que o jornalismo não consegue mais enxergar o indivíduo. Ele se perdeu nos números e nas estatísticas. Existe uma grande incidência de violência contra a mulher no Estado de Pernambuco. Além dos números, não me lembro de ter visto nenhuma reportagem mais humanizada sobre o tema. Ao invés de recitar estatísticas, seria muito mais válido contar a história de apenas uma dessas mulheres com mais sensibilidade. Em uma crônica, falo de um momento em que estava passando por alguns problemas e me deparei com a cara de sofrimento de um vendedor de churrasquinho no meio da rua. Era uma tarde chuvosa e eu realmente estava muito triste, mas quando me deparei com aquele rosto, percebi que minhas agruras não eram nada em relação às daquele homem. Ao ler esta crônica um amigo falou que era exatamente isto que faltava no jornalismo brasileiro, enxergar o sofrimento dessas pessoas e dar voz a elas.
Existem diversas denominações para o termo jornalismo literário. Para você, o que ele significa?
A minha concepção é de um jornalismo feito com o uso da literatura. Narração, descrição, cenas, diálogos. Ele em alguns momentos chega muito próximo da literatura. É feito com toda uma base literária; descrição de lugares, de personagens, elementos mais densos, reflexões. Citando meu caso, no meu primeiro livro a respeito de um fugitivo da ditadura. o Zé, eu o achei bem jornalístico, bem seco. Fiz a reportagem sobre a biografia de um camarada que lutou contra a ditadura. Já no Clamor, eu já dei uma aproximada na literatura. E o livro que estou fazendo agora, que trata de um atentado no aeroporto dos Guararapes em 1976, vou tentar explorar o máximo do jornalismo literário. No atentado tema deste livro mais recente, os envolvidos não foram presos. Apenas dois anos depois, foram encarcerados dois engenheiros que não tinham nada a ver com a história. Na prisão, eles passaram pelas situações mais cruéis. O meu livro vai contar a história deles, do sofrimento destas pessoas que foram acusados injustamente, não é uma busca de quem realizou o atentado.
Houve uma transformação do jornalismo literário descrito no manifesto por Tom Wolfe, em 1960, no qual ele abordou mais a respeito do estilo e da estrutura do texto. Hoje em dia, Gay Telese acredita que o jornalismo literário precisa estar voltado para a transformação da sociedade. Telese trouxe a idéia de que o jornalismo literário além da parte estilística, da inserção da literatura necessita existir em função de uma mudança. Você acredita que nós seus livros você incita esta mudança?
Na profissão mesmo, no dia a dia, o jornalismo pode ter esse caráter de mudança social, eu sempre acreditei nisso. No seu comportamento como profissional, na sua posição ética. Na forma como você olha para o mundo, quando você vê o que é prioridade. Ou em uma reunião de pauta, quando você leva pautas que sejam diferenciadas. Eu sempre fui muito ligado aos direitos humanos e este interesse me rendeu muitas matérias boas, porque não tinha gente que se quisesse cobrir essas pautas. Quando tinha alguma matéria com este tema ficava para mim. Eu me lembro quando eu trabalhava para a Veja e levava minhas matérias lá, muitas eram rejeitadas. Um dia, minha chefe me disse que as minhas pautas não tinham muito a ver como a revista. Nos livros, para alcançar um direcionamento diferente você deve escolher um assunto para trabalhar e trabalhá-lo de uma maneira legal. Por exemplo, este terceiro livro que eu estou escrevendo sobre o atentado trata de um tema bem polêmico e eu já poderia ter publicado, mas ainda não está bom. É uma questão de respeito a todas as pessoas que eu entrevistei e fui conhecendo, eu sei que ainda não é um momento dele. Para mim não existe uma afã de status em ter mais um livro publicado, acima disso, existe um grande respeito com os leitores e entrevistados.
Qual seu jornalista literário favorito?
Eu tenho sentido falta de ler coisas brasileiras. Na coleção de Jornalismo Literário da editora Companhia das Letras tem mais coisas gringas. Saiu um livro do Joel Silveira se eu não me engano, há pouco tempo. Um que eu li que gostei muito, foi Hiroshima, acho muita boa a maneira como ele vai descrevendo as cenas. John Hersey. pega os detalhes do cotidiano dos seis personagens e conta como estavam essas pessoas horas antes da bomba ter explodido, o que elas faziam e o que aconteceu depois, quando as histórias vão se cruzando. Tem outro livro que eu estou lendo que é de Rodolfo Wach. Ele pega um caso que aconteceu de uma matança de líderes comunistas em que um sobreviveu. Rodolfo vai resgatando a história a partir de desse sobrevivente. Mas o cara assim, escreve demais. Tem também o famoso, A Sangue Frio, que também é muito bom.
Na biografia de Gerald Clarke, principal companheira de trabalho de Truman Capote, ela declarou que alguns trechos de A Sangue Frio foram inventados por ele. O que você acha desta atitude de Capote? Você já colocou inverdades em seus livros?
Quando você se envolve em um projeto deste tipo, tem o domínio sobre o que está trabalhando. Estar há tanto tempo convivendo perto da história, torna possível supor algumas coisas. Por exemplo, no Zé, tem uma parte que eu gosto muito no final. Ele estava fugindo de São Paulo para Minas Gerais e no caminho vai lembrando de tudo que aconteceu; dos lugares, das pessoas que conheceu. Era como se ele tivesse lembrando de tudo aquilo, passando um filme na sua cabeça. E esta memória dele seria interrompida pelo carro da repressão chegando. Seria uma cena bem marcante no livro, mas a editora tirou esse trecho, eu só vi quando o livro estava pronto. Esse texto das lembranças é meu, não sei se ele imaginou isso. Mas foi uma coisa totalmente crível, que se pode supor que eu não inventei. Na verdade foi um resgate das histórias que eu havia escutado a respeito dele.
Você leva bastante tempo para concluir seus livros. Porque uma obra deste tipo leva tanto tempo para ser feita?
Uma coisa que eu sou é paciente. Tenho 37 anos ainda nem casei, minha mãe fica invocada comigo. O Zé foi meu trabalho de conclusão da Universidade Católica de Pernambuco. Nesse período eu estava em redação de jornal, o que ocupa muito tempo. Um fato que me ajudou muito foi minha estadia em São Paulo, pude me aproximar de alguns entrevistados. Mas tinha um personagem que eu não conseguia encontrar em lugar nenhum, pois ele viva meio clandestino. Resultado; quando eu entreguei a reportagem para banca examinadora da faculdade o livro ainda não estava pronto. Zé demorou cinco anos para ficar ser publicado. Clamor também exigiu muita pesquisa e levou cerca de oito anos para ser publicado, e este que eu estou fazendo no momento, também está dando trabalho.
O jornalista João Valadares comentou no prefácio de Estuário que não é fácil encontrar boas histórias e Estuário está repleto delas. Como você encontra estas histórias?
Eu sempre gostei muito de poesia, sempre escrevi muita poesia e gosto muito de crônica. Esta experiência do Estuário, nome sugerido por uma amiga, começou com um site de amigos e depois foi tomando outra proporção. Logo, fui convidado pelo JC Online para levar as crônicas para lá. No dia em que um amigo perguntou “que história é essa de escrever sobre um casal de passarinhos?” percebi que estava no caminho certo. A partir daí não parei, hoje em dia o Estuário ainda está ao ar, mas em um blog. O JC queria que eu escrevesse de graça, logo, preferi mudar para um site pessoal.
Já existe pós-graduação em jornalismo literário aqui no Brasil. Você acha possível ensinar a escrever desta forma?
Claro, eu já fui professor da Católica e sempre incentivei os alunos para que eles inovassem na construção do texto. Alguns futuros jornalistas me olhavam surpresos quando eu pedia mais ousadia na redação. Mas o essencial neste processo é a leitura. Era raro encontrar alunos com uma bagagem literária rica.
Claro, claro. Para quem quiser conhecer melhor a poesia samaronesca : http://estuariope.blogspot.com/
Valeu por me lembrar ;]
Bacana Manu, compartilho das idéias do Samarone, figura que venho conhecer através desse texto...estou concluindo a pós em jornalismo literário, feliz de ver essa discussão por aqui.
Vou dar uma olhada no blog dele.
Abraços.
Vou dar uma olhada no blog dele. Esse olhar para o indivíduo faz falta no jornalismo, porém, vejo algumas manifestações jornalísticas na internet e muitas tratam disso. Acho que a geração que vem por aí, tem uma idéia dessa procupação. A dificuldade é a grande imprensa, precisamos de veículos livres, aí é outro história...
Muito boa a entrevista Manu.
Malu, parabéns pelo texto e pela entrevista. O jornalismo literário é mesmo fascinante e nele pode estar a saída humanista para a malfadada profissão-repórter.
André Dib · Recife, PE 24/2/2007 13:05Para comentar é preciso estar logado no site. Faa primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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