O mundo através da bolha

Divulgação
Ignácio de Loyola Brandão, autor de Veia Bailarina
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Henrique Araújo - Grupo TR.E.M.A · Fortaleza, CE
30/6/2008 · 121 · 4
 

Relançado pela Global editora em 2008, Veia Bailarina, de Ignácio de Loyola Brandão, percorre caminhos tortuosos e desperta sentimentos diversos. Nele, a queda e ascensão de um homem

Entre as artérias que irrigam o cérebro, o ovo da serpente. Quando havia sido depositado ali e quem o tinha feito? Por que tinham escolhido a cabeça de Ignácio? Coroada de bons e também de maus pensamentos, a polpa gelatinosa a que chamamos cérebro agora carregava um grande e inexplicável passe para um mundo ainda mais inexplicável. Sinuoso, o caroço só havia sido detectado após exames precisos, realizados em meados de 1996. Depois disso, deu as cartas por algumas semanas. Como boa pugilista, havia acertado em cheio o adversário, que, sob o efeito do golpe, tateava à procura das cordas. A bolha assassina regeu atos cotidianos e laminou os dias de Ignácio com uma cor acinzentada.

Ao menos essa foi a reação imediata. Ao descobrir-se portador de um aneurisma cerebral, Ignácio de Loyola Brandão, autor de Zero e Não verás país nenhum, "fez da queda um passo de dança". No ano seguinte ao de sua via-crúcis hospitalar, lançou o premiado Veia Bailarina (Global Editora, 2008), escrito logo que deixou a sala ocupada no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Lá, Loyola deu entrada sem saber ao certo se voltaria a caminhar através das ruas de Araraquara, no interior paulista, nem ver as coxas das mulheres, aspirar odores instigantes. Ou mastigar fiapos de manga. Era 26 de maio de 1996 - um domingo. Às 10 horas da segunda-feira, Loyola foi conduzido numa maca até a sala de cirurgia. "A maca atravessa corredores gelados, porém o frio dentro de mim não tem a ver com a temperatura do dia", escreveria ele. Nove horas após ter transposto a soleira do câmara escura, Loyola voltou. Cabeça costurada, pequenos orifícios na base do crânio, veias perfuradas por tantas picadas de agulhas - mas sem bolha que lhe pusesse a existência em risco.

Onze anos depois, Loyola Brandão atende o telefone. São 11 horas da manhã. Ligação de Fortaleza. A voz é mansa, devagar e firme. Ele tem 72 anos e ainda vive em São Paulo. Dito sem aviso prévio, seu primeiro punhado de frases espanta: "Uma em cada trinta milhões de pessoas descobrem antes que têm um aneurisma. Por que eu fui o escolhido para saber antes? Isso continua me intrigando". Mensageiras, as tonturas deram o alarme. À página 12 de Veia Bailarina, o escritor registra: "O chão foi para o lado direito, inclinei-me para o esquerdo. Virei-me para o direito, o chão subiu. Quem está bêbado, o chão ou eu?" A hipótese mais óbvia veio ligeira, inofensiva: estresse. Ou labirintite, vai saber. Era só o caso de se auto-diagnosticar e, em seguida, prescrever-se alguns medicamentos que as tonturas, fossem elas resultado do estresse ou não, iriam embora.

Não foram. Mesmo depois da cirurgia que salvou a vida de Loyola - segundo a página na Internet mantida pelo médico-estrela Dráuzio Varella, apenas dois terços dos aneurismáticos sobrevivem, metade deles com seqüelas irreversíveis -, as tonturas iam e vinham, como parentes cujas visitas se evitam. Intrigado, Loyola resolveu telefonar para o médico que o operara, Marcos Stavale, e perguntar se aquilo era, de fato, normal. Bem-humorado, o neurocirurgião sugeriu a Ignácio ficar, de bom-grado, com as tonturas. Afinal, "elas salvaram a sua vida".

Em entrevista, Ignácio de Loyola Brandão conversa sobre aqueles dias corridos e explica por que, após a cirurgia, resolveu adaptar-se ao passo mais lento da vida. Hoje, encontra tempo para ficar de cara para cima. Sempre devagar, bailando como a veia que, durante a coleta de sangue, no pré-operatório, saltava a cada nova fisgada da enfermeira.


Henrique Araújo - Quando veio o estalo do livro?

Ignácio de Loyola Brandão - Logo que voltei ao trabalho (um mês após a operação, realizada em 27 de maio de 1996, Loyola voltou a escrever). Eu tinha feito anotações durante o processo. O livro começou como uma crônica, que chegou a ser publicada no Estado de São Paulo. Escrevi Veia Bailarina em dois meses, foi o livro mais rápido da minha vida.

Henrique - De que maneira a experiência relatada no livro mudou a sua relação com as coisas?

Ignácio - O que mais me espantou em tudo foi que a doença não avisa. Uma em cada trinta milhões de pessoas descobrem antes que têm um aneurisma. Por que eu fui o escolhido para saber antes? Isso continua me intrigando. Não tem qualquer religiosidade nisso, apenas curiosidade. E o momento em que ele veio também foi curioso. Eu estava muito deprimido, não tinha projetos na cabeça, achava que devia me retirar. Vida é projeto e sonho.

Henrique - E isso mudou depois do aneurisma?

Ignácio - Depois eu descobri que a vida é mais simples do que a gente imagina. Um catastrofismo desapareceu. A ansiedade foi diminuindo. Antes tudo ia mal, se eu fosse num restaurante ia estar fechado. Andava sempre apressado. Hoje eu aderi ao devagar, que é uma nova teoria, que anda na Europa e Estados Unidos. Tem um autor escocês chamado Call Honoré. Ele escreveu Devagar. Antigamente eu não tinha férias porque eu vendia, não tinha final de semana. Você deixa de olhar pras coisas, um vaso de flores, uma mulher bonita. Aqui em São Paulo você tem várias árvores frutíferas na rua, mas as pessoas são indiferentes. As pessoas não param mais pra tomar um suco, ou pra ficar olhando pra cima. Isso mesmo, ficar olhando pra cima. As pessoas não falam obrigado, não dizem bom dia, não dizem por favor. A gente precisa fazer coisas banais.

Henrique - Você ainda pensa muito sobre o dia 27 de maio de 1996?

Ignácio - Eu não penso mais, ele desapareceu. Ficou no passado.

Henrique - Na época, antes de entrar na sala de cirurgia, você escreveu duas crônicas para O Estado de São Paulo: uma para o caso de correr tudo bem e a outra para a segunda opção. Você ainda tem essas crônicas?

Ignácio - Eu escrevi duas crônicas, a 1 e a 2, e entreguei para a minha secretária, que começou a chorar. Ela trabalhava comigo há bastante tempo. A crônica 1 era mais fria; a da morte, a 2, era mais divertida. Eu começava "Por motivos de força maior, não posso estar aqui". Está guardada numa das minhas caixas aqui.

Henrique - As tonturas que o salvaram continuam até hoje. Elas não tinham qualquer coisa a ver com o aneurisma...

Ignácio
- Eu falei com o médico e disse: "Olha, as tonturas continuam". Ele disse: "Então fica com elas, que elas já salvaram a sua vida". Além de competente, ele era bem-humorado.

Henrique - O livro se converteu em leitura obrigatória para pessoas que estejam passando ou que já passaram por situações semelhantes à sua. Isso o incomoda de alguma forma?

Ignácio - Eu sempre achei a literatura de auto-ajuda uma bosta. Mas, curioso, o livro foi se aproximando disso. A literatura é imprevisível. Até hoje recebo muitas cartas, muitos e-mails, convites para participar de grupos de ex-aneurismáticos. Eles fazem reuniões, conversam, discutem. Meu interesse não chega a tanto.

Henrique - No seu caso particular, como é feita a mistura do jornalismo e da literatura? Como as duas se combinam? Elas se combinam?

Ignácio - O jornalismo é factual. A literatura é o delírio, a imaginação. No jornalismo você não tem tempo para apurar, a não ser que você que trabalhe para uma revista mensal; a literatura é mais cuidada e o jornalismo é, quer queira ou não, é mal cuidada... Mas o jornalismo foi o importante pra minha ficção.

Henrique - A paixão pelo cinema continua? Como ela afetou o trabalho nos jornais e com os livros de ficção?

Ignácio - O cinema ficou como uma frustração. Mas ainda vou muito ao cinema. A gente precisa das frustrações pra viver. Serve pra gente dizer que um dia eu ainda vou fazer. De repente um dia eu vou fazer aquilo, isso. Na vida nada é abandonado.

Reportagem publicada originalmente em O POVO

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Ilhandarilha
 

Mais um texto impecável - a abertura da introdução à entrevista ficou de prima, Henrique.
Abraços

Ilhandarilha · Vitória, ES 26/6/2008 19:43
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Henrique Araújo - Grupo TR.E.M.A
 

Oi, Ilha. Só agora pude voltar aqui. Fico feliz que tenha gostado do texto. Corra pra ler o livro.

Abraços...

Henrique Araújo - Grupo TR.E.M.A · Fortaleza, CE 28/6/2008 10:32
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Natália Amorim
 

Henrique,

Gostei de ter notícias do Inácio de Loyola, principalmente da forma que você apresentou o texto, sintético, e da espontaneidade que você conseguiu na entrevista. Parabéns!

Abraços,

Natália Amorim · Rio de Janeiro, RJ 30/6/2008 16:32
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Circus do Suannes
 

Gostei, caro Henrique. Que sem a ser o TR.E.M.A?

Circus do Suannes · São Paulo, SP 30/7/2008 15:27
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