Por Flávio Rocha e Lais Mendonça
“Tinha cinema para todo lado, todo preço e vestimenta. Com terno e gravata, era possÃvel entrar no cine República, ou no Ritz, ou mesmo no Normandie, na Rua Dom José de Barros. Com roupa ‘comum’, era possÃvel entrar no Broadway, ou no Oásis, ambos na Avenida São João, onde ficava também o Metro – mas, para freqüentar este último, só de fato completo, como diziam os velhos portugueses da cidadeâ€.(Heródoto Barbeiro no livro Meu velho centro, publicado pela Edições Sesc São Paulo).
Heródoto Barbeiro expressa bem o sentimento de quem viveu uma época onde o cinema era a diversão da famÃlia paulistana. É por trás do brilho dos olhos de protagonistas da memória paulistana como Myrthes Costa e Gil, que nascem histórias que vão além das poltronas de couro, som Sensurround*, dos trajes de gala ou dos grandes projetores das antigas salas de cinema.
“Vim da fazenda para São Paulo em 1942 (...) morava na região do Ipiranga. Conheci o Nelson, e foi quem me convidou para ir ao cinema, mas a mamãe não deixava eu ir sozinha, porque não era de bom tom ir só com um rapaz ao cinema, então a condição era ter que levar a minha irmã mais velha. Fomos ao Santa Helena, só
que na saÃda da sessão, saà sozinha e minha irmã com o Nelsonâ€. E completa: “perdi o namorado para elaâ€.
A Cinelândia ficou caracterizada pelo surgimento de novos cinemas que surgiram no eixo da Avenida São João. O circuito agitou o centro de São Paulo entre as décadas de 1940 a 1970 e foi palco para acontecimentos como o acima relatado. São memórias de paulistanos que ainda sonham com o retorno da antiga Cinelândia.
Onde antes encontrávamos casas de chá, cinemas, teatros, pessoas desfilando com roupas da última moda de Paris, celebridades, entre outras centenas de peculiaridades; hoje vemos o abandono e o descaso. Mendigos, camelôs, sujeira;
Os adjetivos das avenidas São João, Ipiranga, Rio Branco; das ruas Direita, 7 de Abril, Aurora, das praças da República, Dom José Gaspar, Júlio Mesquita, entre tantos outros marcos mudaram tanto nas últimas décadas que poucas lembranças nos restaram de seus tempos áureos.
Vestidos longuetes, luvas e chapéu eram os trajes das damas, enquanto os moços trajavam seus ternos bem alinhados sapatos engraxados e com toda a pompa e elegância iam aos cinemas do centro.
Durante trinta anos o cinema reinou absoluto, atraindo crianças, jovens, homens e mulheres indistintamente. Nas suntuosas salas a diversão era certa.
Após uma sessão no Marabá ou no Cine Ipiranga, podia-se caminhar calmamente entre as ruas do centro, encontrar amigos, paquerar, esticar a noite em uma das casas de chá. Eram várias as atrações que permeavam as ruas de mosaico português e luzes amareladas.
Mesmo quem não possuÃa condições financeiras para ir ao Metro ou ao Ritz, que eram considerados os “elitizados†da época, não deixavam de se divertir, pois a preços bem mais convidativos podiam ir ao Santa Helena, Oásis ou Alhambra, tendo a possibilidade de assistir duas sessões a preço de uma.
“O Brás inteiro vai pra láâ€, contou Gil sobre os comentários da elite moradora dos arredores da Avenida Paulista e do ainda glamuroso bairro de Higienópolis.
“Esses cines populares que cercavam as salas nobres da Cinelândia como o Alhambra, eram mais simples, não precisava se arrumar tanto pra ir, e era mais barato, porém tinha muitas pulgas. Bem era o que diziam, porque eu não freqüentava, acho que é por isso que ficaram sendo conhecidos como pulgueiros†comenta a sorridente Myrthes.
A Cinelândia não só oferecia preços para vários bolsos, como também filmes para todos os gostos. O cinema Jussara, por exemplo, só passava filmes da Nouvelle Vague. O Broadway tinha como caracterÃstica os filmes mexicanos. E como se não bastassem os elementos já citados, muitos cinemas contavam com uma ambientação, decorações especiais e ante-salas para convivência, como o cine Marrocos.
A década de 50 foi única para São Paulo. Segundo censo demográfico da época ela havia atingido dois milhões de habitantes comparando-se com o Rio de Janeiro, que até então era a capital federal do Brasil.
Nas avenidas começava o crescimento da circulação dos automóveis, a cidade crescia vertiginosamente. O slogan era “São Paulo não pode pararâ€.
A cidade experimentava neste perÃodo os fluidos positivos da idealização do bem-estar que cercavam as metrópoles e que vinham das principais cidades européias e norte-americanas. Neste contexto o conjunto de salas de cinema tem um papel muito importante, pois o circuito personificava a mais gratificante forma de lazer do habitante da cidade. Era a sua janela para o mundo.
As pessoas se deslocavam até a Cinelândia, para se envolver na magia do mundo moderno em meio aos prédios gigantescos, se misturando as multidões que circulavam pelas calçadas antes (ou depois) do escurinho do cinema. “Ah! Naquela época, o cinema fazia propaganda da 2ª Guerra e a literatura francesa ditava nossos costumesâ€, disse Gil sobre o sentimento que levava todos à s ruas.
Com o tempo, a relação entre o paulistano e a metrópole se alterou substancialmente. O slogan mudou, São Paulo “Maior parque industrial da América Latinaâ€. Isso refletiu até mesmo no lazer, pois conforme se ampliavam as ofertas à população, substituÃa-se as formas tradicionais de sociabilidade por novos rituais.
“Chatô, que você deve conhecer bem, trouxe da Europa a máquina da TV. Estava decretada a morte do cinema de ruaâ€, lamenta Gil.
O aparelho de tevê passou a centralizar a atenção da famÃlia, enquanto o ato de ir ao cinema foi saindo cada vez mais de foco.
Alguns fatores extracinematográficos contribuÃram para o agravamento da questão. A transformação urbana foi uma das principais. A cidade deixa de ter uma concepção idÃlica de metrópole e passam ter destaque as dificuldades que já nos são costumeiras. Trânsito congestionado, violência, alto custo de vida, transporte coletivo deficiente, são Itens que passaram a prender o paulistano dentro de suas casas.
O perfil do circuito e do público cinematográfico se altera muito nesse perÃodo, acompanhado as transformações em curso. Os palácios cinematográficos tornam-se obsoletos, desestimulando mudanças. Desta forma, os delÃrios arquitetônicos que contribuÃram, por exemplo, para a notoriedade do Cine Marrocos, tornou-se coisa do passado.
Os Shoppings Centers chegaram à capital, trazendo as compras, o cinema, a comida e toda “comodidade†que proporcionam esses espaços.
A Cinelândia entra em decadência e as enormes edificações parecem ainda mais gigantescas com o esvaziamento das platéias, a solução foi dividÃ-Ias apressadamente em nome da sobrevivência.
Assim, surge um novo cenário. “Sai de cartaz o casal IV Centenário (terno & gravata & colar de pérolas) e surgem os personagens das ’tribos’ urbanas que circulam com desenvoltura e alguma arrogânciaâ€. Como relata Inimá Simões em seu livro “Salas de Cinema de São Paulo†ed. Secretária de Estado de Cultura.
Hoje em dia, o público dos cinemas que ainda estão em funcionamento, é composto em sua maioria por, office boys, desempregados, estudantes, comerciantes e homossexuais. Não existe mais o antigo glamour que era visto e o inconsciente coletivo das pessoas, não mais enxerga os cinemas do centro como foi outrora.
“Na decadência destes cinemas, ninguém “direita†mais entravam neles, você vai vendo as coisas acabarem e vai ficando mais triste, muitos ficaram conhecidos como cinema pornô, é o caso do Paissandu e o Olido, começava as noves horas da manhã você já via os homens entrandoâ€. Comenta Myrthes sobre o perÃodo que vários cinemas passaram a exibir filmes pornográficos.
A existência destes espaços é muito inferior em relação ao que já foi um dia, alguns se transformaram em igrejas (Metro), outros ainda exibem filmes pornográficos (Cine Saci), ou simplesmente foram demolidos e deram lugar a estacionamento (Apolo) ou comércio, mas podemos ainda encontrar cinemas que estão simplesmente fechados ou adornados com a placa de “aluga-se†(Cine Ipiranga, Metrópole, Éden).
Alguns projetos, porém, vão a desencontro com os atuais cinemas do centro de São Paulo. Já é possÃvel ver tentativas de revitalizar salas e colocar a Cinelândia Paulistana de volta no cotidiano dos habitantes. O projeto “Broadway Paulistanaâ€, iniciativa do governo de São Paulo, prevê uma abrangente reabilitação local com a recuperação de dez antigos cinemas, que seriam reativados ou transformados em casas de espetáculo.
Talvez casas de chá, chapéus e bondes, não voltem a ser uma realidade no centro da capital paulista, mas resta-nos acreditar que o centro volte a ser um lugar de bem-estar e lazer e não somente de passagem.
Iniciativas Começam a surgir
Diferente de tantas salas históricas da cidade de São Paulo, que se transformaram em outros tipos de estabelecimento, o Cine Marabá, localizado na Avenida Ipiranga, 757, será reaberto ao público em grande estilo.
Em Julho, deu-se inÃcio ao processo de revitalização do Cine Marabá, que transformará uma das maiores salas de cinema do Brasil em um moderno complexo, mantendo o seu charme histórico. São cinco salas nos formatos stadium e convencionais, projetores e poltronas importadas, som Dolby Digital e capacidade de 1150 lugares.
O projeto de renovação do Cine Marabá é realizado pelo Grupo PlayArte e assinado por Ruy Ohtake, tramitou na Prefeitura de São Paulo por três anos e depois de atendidas todas as especificações técnicas agora pôde ser colocado em prática.
Além da reforma, o prédio também passa simultaneamente por um processo de restauro. Por se tratar de um edifÃcio tombado pelo patrimônio histórico, a prefeitura exigiu que o projeto mantivesse elementos intactos. Segundo a PlayArte todos os cuidados necessários estão sendo tomados para manter as caracterÃsticas que se tornaram tradicionais no centro paulistano e para o restauro contratou o renomado arquiteto Samuel Kruschin.
“Essa é nossa contribuição para a manutenção de um dos marcos da cultura paulistana e também para a revitalização do centro de São Paulo, que não pode ser esquecido nuncaâ€, comenta Otelo Bettin Coltro, vice-presidente executivo do Grupo PlayArte
O Cine Marabá foi inaugurado no dia 20 de maio de 1944 e por décadas foi um local de concentração cultural e sofisticação no centro de São Paulo. A previsão é que em novembro a população paulistana já possa voltar a freqüentar este tradicional espaço.
Agradecimentos:
Gil, e toda sua paciência e inteligência.
Myrthes que abriu a porta de sua casa e nos entregou um pouco de sua memória.
Notas:
*Som Sensurround: Esquema especial de alto-falantes de baixa freqüência que era emprestado pelo distribuidor do filme. O sistema era tão poderoso, que em alguns cinemas chegava a trincar o reboco.
Cinemas:
Marabá – Avenida Ipiranga
Cine República – Praça da Republica
Ritz - Avenida São João
Normandie – Avenida Rio Branco
Broadway - Avenida São João
Oásis - Avenida São João
Santa Helena – Praça da Sé
Ipiranga – Avenida Ipiranga
Alhambra – Rua Direita
Metro - Avenida São João
Jussara – Praça Dom José de Barros
Marrocos - Conselheiro Crispiniano
Metrópolis – Praça Dom José Gaspar
Paissandu - Largo do Paissandu
Cine Olido – Avenida São João (Reformado pela Secretaria da Cultura)
Cine Saci – Avenida São João
Éden – Avenida São João
Apolo – Rua Conselheiro Nébias
Coral – Rua 7 de Abril
Caros amigos do Overmundo, essa colaboração é carregada de esperança, respeito e admiração pela Terra da Garoa.
Temos planos de deixá-la mais completa, para isso faço um apelo: quem tiver informações, fotos, histórias, qualquer coisa sobre a cinelândia paulistana, entre em contato conosco.
O cine marabá foi palco da minha primeira entrada no cinema, que coisa rs.. Excelente resgate LaÃs !
Sempre quando vou ao centro de SP vou sem preça, pois adoro olhar as arquiteturas, os lugares e sempre paro (por incrÃvel que pareça) em frente a algum cinema. Seja o olido, marabá ou o marrocos.
Espero que outros sejam revigorados e que o marabá não se torne um projeto apenas para os cheios da grana.
Preservar e investir em nossa Cultura é um dever de todos nós brasileiros. Um povo sem raÃzes não tem como se afirmar como Nação.
Abraços. Luz de sempre. jbconrado.
Prezada Lais :
Como é bom poder falar de São Paulo e principalmente de Cinema. Mistura de todas as raças São Paulo pode compreender todas as historias contadas nos cinemas. Inclusive a nossa historia.
Meu pai; diferente, do que a maioria das pessoas pensam, nasceu em São Paulo; 12 de Abril de 1.912 - Rua Vitorino Camilo 54, Bom Retiro e recebeu nome de Italiano Amácio Mazzaropi, que virou sinonimo de caipira paulista.
Ali (São Paulo), viveu todas as experiencia de sua vida; mesmo que no começo tenha ido quando criança morar em Sorocaba-SP, e depois Curitiba-PR, tendo sempre como referencia de cidade oi inteior a minha Taubaté-SP, terra de sua mãe, minha querida avó Clara Ferreira Mazzaropi.
Ali nasceu 12/04/1.912 e ali morreu 13/06/1.981- para ali se imortalizar, como um icone do Cinema Brasileiro.
O Cinema foi sua vida e é a sua historia, seu reduto profissional o Largo do Paissandu, primeiro escritorio foi em cima do Cine Paissandu e depois em cima do Cine Ouro a PAM FILMES; todos os lançamentos de seus filmes foram no Cine Art Palacio, da qual eu tive o orgulho de participar de 06 (seis). Mazzaropi pparticipou de 32 filmes 8 como ator e 24 ator e produtor.
Embora nunca tenha usado nenhum centavo de dinheiro publico em seus filmes
De 1.961 a 1.980 meu pai o Mazzaropi produziu com recursos próprios 24 filmes dos quais 18 estão entre os filmes mais assistidos do cinema nacional. 06 são recordista de publico e o filmes Jeca Macumbeiro é o maior recordista de publico e renda da historia do cinema nacional colocou em 4 semanas de lançamento 16.800.000 pessoas pagantes em 4 semanas de exibição, igualando ao maior recordista mundial de publico, que é o filmes O Tubarão no Brasil colocou 16.600.000 nas mesmas 4 semanas todos em 1.975.
Em nossos cardex, (PAM FILMES)- (Controle de exibição -Praça-Publico e renda) - o filmes Casinha Pequenina colocou de seu lançamento 1.963 á 1.983 - quando a Pam Filmes fechou, 93.867.000 de pessoas - equivalente a toda a população do Pais). sem contar os outros filmes que atingiram neste periodo 178.779.300-) .
Em Julho de 1.981 - um mes da morte de Mazzaropi no cardez da Pam Filmes existiam cadastrados 11.648 salas de exibição no Brasil, sendo que apenas 48 cinemas tinha mais de uma sala, com média de 800 lugares. Havia naquela época cinemas com salas entre 500 e 3.000 - caso do Penharama-SP.
Bom, tudo isto pra contar um pouco da minha história, é claro do nosso saudoso Amácio Mazzaropi-.
Hoje ninguem sabe ao certo quantas salas existem; extima-se em torno de 1.500 salas entre 150 e 500 lugares.
A restauração econstrução de novos cinema são fundamentais para que haja uma nova historia como a de Mazzaropi em nosso pais.
Em Junho de 2.009 recomeço tudo de novo pra contar minha Historia no filme O Filho do Jeca.
A Cultura precisa ser preservada, mais a historia tem que continuar.
Abraços e beijo do
André Luiz Mazzaropi
O Filho do Jeca
www.andreluizmazzaropi.com.br
Muito boa à matéria aqui postada por Laiz e Flavio.
Hoje que o cinema comercial e popular é como Fast Food, com raras exceções, só se encontra em shopping, podemos imaginar que aquela época deixou muita saudade.
Parabéns. Belo trabalho.
Bjs. e Abçs.
bela janela
aberta, tão aberta
generosamente aberta
e dela, com uma afeição singela, saem
todas as imagens em polissêmica profusão
um palimpsesto expondo os ex e os com
temporâneos dessa imensa terra da garoa...
com seus deuses e seus demônios
e entre eles
tantos tantos tantos!
evoé!
Parabéns LaÃs!
Era o paraÃso...
Parabens
eu queria saber mais informações sobre os entrevistados, se possÃvel. Estou fazendo um trabalho sobre a cinelândia paulistana, que exige entrevista com alguém da época ou do cinema. Se puder entre em contato por e-mail, babinha_pink@hotmail.com
obrigada.
ps: adorei a matéria postada, dá uma boa base do maravilhoso centro de antigamente.
Voltando Lais.Primoroso texto...
Lais já te mandei meu e mail...
bj
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