Se a pessoa for a São Paulo e não sair para lugar algum, não for ao cinema, ao shopping, ao teatro, não encontrar ninguém, não ler um só jornal nem ver TV, e mesmo sem ter feito nada disso for assistir a uma peça de José Celso Martinez Correia, a vivência desse espetáculo lhe garantirá uma experiência total da cidade, dessa urbe cosmopolita e corrompida, inocente e safada, amordaçada pelos grilhões da grana mas com doses industriais de vida e tesão pulsando a cada arquejo. A experiência intelectual, artística, estética e, sobretudo, existencial, oferecida por um espetáculo de Zé Celso e seu grupo Uzyna Uzona, sediados no espaço do Teatro Oficina à rua Jaceguay, 520, Bixiga, é inigualável. Aliás, eu não entendo por que o pessoal de teatro das cidades não freta um ônibus, ou avião, ou seja lá o que for e não vai ver “Os Sertões”, da mesma forma que o povo de música se organiza para ir ver Rolling Stones, U2 ou Madonna.
Zé Celso é uma síntese. Ele simboliza a pulsão primitiva e orgiástica de uma cidade, uma urbe viva, que se vende e se curva ante a força da grana que ergue e destrói mas mantém a resistência surda dos seus guetos e muquifos, das suas favelas, vilas e cabeças-de-porco, com seus saberes e prazeres bem longe do cardápio dos deleites oficiais dos engravatados. Ou seja, o público de Zé Celso vai ao seu teatro porque sabe o que se passa ali dentro, porque assume participar – e há muitas formas de participação – daquele acontecimento teatral, onde nos reconhecemos como “... uma só nação de alvorotados, endividados, individuados, destroçados, solitários, no inferno de Dante Marcola Jabor.” Ao mesmo tempo, numa espécie de milagre interno, nos reconhecemos também como “células humanas que contagiam o organismo do país apodrecido aprontando-o para regeneração e crescimento.”
E que teatro é esse? O que propõe, o que quer fazer? Começa com o edifício teatral propriamente dito do Teatro Oficina que não é um teatro tradicional, modelo italiano, com platéia, camarotes, palco e cortina, como 90% das pessoas pensa que são todos os teatros existentes. O Oficina, a rigor, é um corredor de trinta metros de comprimento, com seis metros de largura, e uma altura total de uns dez a doze metros. Encostados às paredes mais compridas, bancos de madeira, com um balcão acima deles onde cabem mais bancos, tudo com um metro de largura, o que reduz o espaço cênico a um corredor comprido, de trinta metros por três. Os atores se deslocam acima e abaixo desse corredor, com piso de terra, que tem uma parte em declive. Há ainda uma fonte, com água corrente, lugar para os músicos num pequeno palco e todos os espaços podem e são utilizados pelos atores e pela cena.
Mas não pense que é um teatro tosco. Os espetáculos dispõem de moderníssimos aparatos tecnológicos, som perfeito, luzes espetaculares, projeção digital, e uma das paredes dessa estrutura, num trecho de uns dez metros, é de vidro, mostrando por transparência os prédios de São Paulo. Uma árvore imensa, com seus 15 metros de altura, também cresce no local e foi incorporada à estrutura do teatro. Mais do que o espaço, porém, é o que se passa ali dentro, colocando José Celso Martinez Correia na galeria dos grandes nomes do teatro brasileiro, com um poder quase metaplásico de renovação, de crescimento, de surpresa, de novidade.
O espetáculo “Os Sertões” demonstra isso. A rigor, não é “um espetáculo”: é um complexo, uma “pentalogia” de cinco espetáculos, cada um deles com seis horas de duração. O épico euclidiano se transforma num épico brasileiro/universal, dividido em “A Terra”, “O Homem I”, O Homem II”, “A Luta I” e “A Luta II”. Nessas trinta horas há uma síntese completa da nossa história como seres humanos, pertencentes à Humanidade, como brasileiros, e como seres pulsantes, cheios de tesão, de dores, de amores, de ambições e quimeras, de maldades e momentos de ternura. Há um sentido profundamente shakespeariano na obra, quando trata da luta do homem com o seu destino, essência da tragédia. Para quem conhece Shakespeare, é um prazer sem igual desfrutar das referências e interpolações, estabelecendo essa ponte viva entre o homem shakespeariano, hamletiano, renascentista, e o homem de hoje, proposto e desejado pelo teatro de Zé Celso, um homem renovado, refeito, renascido, “desmassacrado”. Zé Celso explica que, um dia, cansados, esgotados de trabalho, os atores pensavam que iam fazer um espetáculo fraco. Mas nada disso aconteceu. “Atingimos no ser-estar, serestando nos sertões nesta noite uma tranqüilidade na execução da peça, um estado de inocência criativa com o público junto que nos fez experimentar sem poder definir ainda o ‘desmassacre’, ou mais precisamente, o início do desmassacre. Dentro deste mundo sob o Terror, o nascimento de um sentimento novo, o fim absoluto da paranóia, do estresse, para a continuidade desta felicidade guerreira.”
E o “desmassacre” não acontece somente com os atores. O público que está ali, durante as seis horas que dura cada um desses espetáculos, é incorporado em uma experiência cheia de epifanias que faz o tempo voar. Começa às seis horas da tarde, e quando você vê é meia-noite, o espetáculo terminou, todo mundo dançando e celebrando, e você não quer ir para casa, quer ficar ali, morar ali, incorporar-se àquela trupe de loucos, como o vigia do estacionamento que virou ator e é uma das mais belas figuras do espetáculo. Uma “rave” movida a endorfinas, movida a Tesão, movida a Alegria, movida a Arte.
O público que vai a “Os Sertões” é completamente diferente daquele que vai a ver “Sweet Charity” o musical onde Claudia(canta-dança-sapateia-e-representa)Raia oferece às platéias de novos-ricos que pagam R$ 60,00 para ver esta edulcorada história de amor. No Teatro Oficina pagamos R$ 30,00 (eu, como sou da classe teatral, só paguei R$ 10,00) mas a quantia é irrelevante para a qualidade da vivência que temos ali. Nada tenho contra o teatro de entretenimento, sobretudo quando é de boa qualidade, como provavelmente deve ser o espetáculo de Cláudia Raia. Mas o teatro, enquanto Arte, tem outros objetivos. O teatro, em sua acepção mais profunda, tem como finalidade levantar o véu que separa o visível do invisível e deixar-nos ver dentro de nós mesmos, ainda que por um instante, quem somos, de que matéria somos feitos. Isso o teatro de Zé Celso faz com maestria.
Se quisermos, podemos sair do nosso banco e entrar em cena junto com os atores, como figurantes da construção do arraial de Canudos, ou situações outras propostas pela peça. Podemos entrar em cena, nos misturar à ação, experienciar com vividez o que está acontecendo, como no antigos rituais dionisíacos onde os homens experimentavam diversas alteridades, incluindo a divindade. Ser deus por um minuto, quem não gostaria de? Mas nada disso é obrigado. Se você, como público, quer ficar sentado no seu lugar, ninguém lhe aborrece, nem lhe obriga a nada. Mesmo assim, o véu se levanta e a pessoa que entra naquele espaço e comunga com aquela ação jamais sai dali a mesma. Sai se conhecendo mais, integrando suas experiências num outro nível, entendendo melhor seu semelhante, desfrutando mais dos seus momentos de Alegria e Tesão, sabendo-se homem, mulher, “demasiadamente humano... para a produção de uma paz sem pieguismo, uma paz de criação por devoração antropofágica e de vitória sobre o mais forte, não em poder de estrutura, dinheiro ou armas, mas em poder da presença trans-humana. Aqui se luta pelo apaixonamento da condição contraditória humana, através do re-apaixonamento pelos homens do seu planeta quase inviável, em sua Terra.”
Nota: os trechos entre-aspas foram tirados dos programas das peças, que podem ser lidos na íntegra, junto com outras informações, no site http://www2.uol.com.br/teatroficina/
Clotilde Tavares, escritora
clonews@digi.com.br
www.clotildetavares.com.br
Clotilde, excelente seu texto!!! Concordo totalmente com você, as pessoas do mundo inteiro deveriam ao menos uma vez na vida entrar no Oficina brincando de roda ou cantando "Meu cavalo tá pesado" com o elenco, é de encher a alma e o coração. Me aperta o coração saber que Os Sertões estão chegando ao fim e eu não conseguirei mais re-re-rever as cinco partes...
Só dois comentários... o chão do Oficina não é mais de terra (uma pena) e a duração das peças agora oscila de 3h30 a 6h30...-
Engraçado... Depois que você falou, vi que tem razão. Penso que misturei "os chãos" do antigo Oficina com o de dezembro de 2006, que foi a última vez que entrei lá. E também da última vez que vi o espetáculo durava seis horas, sem contar a folia posterior no estacionamento afora que durava bem uma hora!
Clotilde Tavares · João Pessoa, PB 30/3/2007 19:45Não existe melhor rito de iniciação sobre o Brasil, em todo o seu potencial orgyastico, do que o Oficina. Ele é o símbolo e o signo de tudo que deveríamos ser.
ronaldo lemos · Rio de Janeiro, RJ 31/3/2007 02:50
Clotilde, teu tratamento do tema foi muito coerente: escrito com tesão!
Abraço.
O Oficina , a Lina Bo Bardi, o Zeh Celso enfim ... eh teatro celebração !!! Um Maracanã de emoções e sensações !
Vale a pena ressaltar a Luta Real do Oficina para não ser esmagado por mais um shopping-cassino dos SS (Silvio Santos) , entra prefeito sai prefeito e pendenga judicial continua , ateh quando São Paulo ????
Aih Ronaldo Lemos taih uma boa causa !!!
dudavalle · Rio de Janeiro, RJ 1/4/2007 21:45Minha gente, estou grata pelos comentários e pela leitura, pelos votos e pelos overpontos. Que bom que o teatro ainda tem esse poder de mexer com as pessoas!
Clotilde Tavares · João Pessoa, PB 2/4/2007 15:40Clotilde, "coisa superantenada", parabéns por mais esse tributo ao seu tema de paixão. maria olga (JPB)
maria olga · João Pessoa, PB 2/4/2007 18:04Ontem foi a apresentação derradeira d'A Luta II em São Paulo. Diariamente passo em frente ao Oficina no caminho de volta pra casa, e hoje foi triste ver que já tiraram o pôster de Os Sertões. Resta esperar para ver o que mais de bom Zé Celso deve estar trazendo por aí...
Maurício Alcântara · São Paulo, SP 2/4/2007 21:39Vi todas as partes de "Os Sertões" (algumas na estréia ou mais de uma vez); já fiquei mais de oito horas lá dentro, sem cansar. É imperdível, somos privilegiados em poder acompanhar este trabalho.
Marcelo V. · São Paulo, SP 2/4/2007 22:40Não vi "Os Sertões " mas participei de uma oficina com Zé Celso em 1980 em Rio Branco, Acre e o Zé já tinha o projeto de fazer um TE-ATO tendo como base Euclides da Cunha. Estamos em 2007 e Zé mostrando Os Sertões, isso é bárbaro!
Silene Farais · Rio Branco, AC 2/4/2007 23:39
Pra quem ainda não leu Os Sertões recomendo uma edição integral de bolso baratinha da Ed. Martin Claret.
As primeiras páginas ("Preliminares") do livro são chapantes!
Excelente texto!!! Jamais havia lido algo sobre Zé Celso que misturasse razão e emoção de forma tão equilibrada. Quero ir a São Paulo e assistir!!!!!
Amanda Maia · Salvador, BA 18/4/2007 07:49Olá, Clotilde dos florais, do teatro ,da tribuna e da Tribuna e de Natal tb... visceral é isso . Abraços.
analuizadapenha · Natal, RN 1/5/2007 11:46
Minha querida, não quero votar no seu texto sem lhe dizer uma coisa, mania de nordestino, do Paiui, falador...
- Tenho, nem parece possível, uma explicação:(voces têm mil...). Quanto mais a sociedade se degrada, perdendo a capacidade de ser um divíduo, cada um, sumindo-lhe, de cada e no todo o sentir dor, alegria, satisfação, vergonha e coragem; medo e afã... mais o teatro perde a sua importância para o que necessita de "chorar-sorrir" - engrandecer, integralizar-se. Uma sociedade que busca o integralizar-se não se degradará...
- O chow de música, sem se referir à arte, mas ao show, engodo, é como tomar serveja depois de ter se tornado alcoolatra... uma fuga encerrando-se para começar outra. De teatro não vou lhe falar... um abraço, andre.
É sempre maravilhoso ler e saber de alguma coisa sobre Zé Celso Martinez Correa e seu lendário Teatro Oficina essa companhia que ajudou a escreve a história da cultura nacional.
Abçs!!!
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