Diga-me o que tu comes e te direi de onde és... Se é brasileiro, provavelmente terá uma preferência pela mesa farta – não importa se com o goiano arroz com pequi, o paraense pato no tucupi, o churrasco gaúcho ou a boa moqueca de peixe capixaba. E como o Tocantins é uma colcha de retalhos cultural, formada nestes últimos 18 anos de autonomia polÃtica, festejada no último dia 5 de outubro, por aqui tem tudo isso e mais. É nesse “mais†que pretendo me concentrar. No que existia por essas bandas quase esquecidas do então chamado “norte goianoâ€, que de goiano tinha muito pouco, já que quando mais se distancia do Sul maior a influência exercida pelos estados do Norte e Nordeste.
A mestiçagem do brasileiro – incluindo-se aà o tocantinense - se revela de várias formas, inclusive na mesa. Em artigo publicado na revista “Nossa História†(nº 29/março/2006), Eddy Stols, doutor em História, afirma que a culinária brasileira nasceu hÃbrida e integra produtos e preparos portugueses, indÃgenas, africanos e asiáticos. Junte-se a isso a facilidade de encontrar certos alimentos em determinadas regiões, a capacidade de inventar e reinventar pratos, doses equivalentes de praticidade e religiosidade, misturadas pelas mãos hábeis de mulheres e homens ao longo dos séculos e está dada a receita para a nossa culinária plural.
Em questão de praticidade, poucos alimentos ganham da paçoca de carne seca. Reúne poucos ingredientes, mantém a qualidade por vários dias sem necessidade de geladeira e é razoavelmente fácil de fazer. No Tocantins, a iguaria tem como sinônimo o nome de uma cidade, onde se faz a melhor paçoca do Estado: a histórica Arraias, com 264 anos e localizada no Sudeste do Estado (413 km da Capital, Palmas).
Durante recente viagem a trabalho conheci duas paçoqueiras. Justina Soares da Silva e Aurora Paiva Moreira nasceram e cresceram na mesma região, tomaram rumos diferentes na juventude e hoje trabalham juntas para fortalecer a Associação das Paçoqueiras de Arrais (Aspa). Justina nunca saiu do municÃpio, tem 10 filhos e carrega na pela a origem africana de seus ancestrais – levados a explorar os veios de ouro em um vale onde ajudaram a erguer a pequena vila. Aurora morou 25 anos em BrasÃlia e retornou para cuidar da mãe idosa. Elas tentam explicar por que a paçoca arraiana tornou-se uma espécie de sÃmbolo da cidade que já não guarda as caracterÃsticas arquitetônicas que poderiam elevá-la ao nÃvel de patrimônio histórico.
Segundo elas, a “fama†começou a se formar há cerca de 20 anos, quando o Tocantins ainda era Norte goiano e as cidades montavam barracas na exposição agropecuária da capital Goiânia. Porém, muitas décadas antes disso, o alimento tornou-se popular por uma questão de praticidade: sem energia elétrica e veÃculos automotivos, os viajantes que cruzavam a região a cavalo levavam o alimento estocado no alforge ou na “bruaca†(espécie de bolsa de couro).
A receita simples leva carne seca – de boa qualidade, ensina Justina – cortada em cubos e frita em óleo quente, mas sem excesso. Colocada no pilão (de preferência sem verniz), com acréscimo de alho picado e farinha de mandioca, a carne vai se desmanchando com o bater ritmado das mãos de pilão que se alternam (duas ou três pessoas batendo, conforme o tamanho do pilão). Entre 15 e 20 minutos são necessários para que essa iguaria tão simples conquiste os paladares.
Amor de biscoito
As festas religiosas, em especial a do Divino EspÃrito Santo, são motivadores essenciais do cardápio dos moradores de Natividade (272 anos, 200 km de Palmas), cidade tombada pelo Iphan em 1987. É de lá um biscoito muito especial, uma espécie de sequilho que derrete na boca chamado amor-perfeito. Quem come adora, mas nem imagina a trabalheira para fazê-lo. “Ele requer mais ciência, precisa de um bom leite de coco, polvilho de qualidade, manteiga de leite, açúcarâ€, ensina Tânia Cerqueira, que há 15 anos coleciona receitas tradicionais de sua cidade natal pensando em abrir um restaurante de comidas tÃpicas.
O amor-perfeito também pode se perder com o tempo, explica ela, pois não é fácil deixar a massa no ponto e mais difÃcil ainda é deixar o biscoito no formato peculiar, com pontinhas que ficam douradas quando se leva ao forno. Por isso, durante a chegada das folias e a coroação do imperador do Divino, a mesa farta, repleta de arroz sirigado, paçoca, licores diversos e bolos, o amor-perfeito é cada vez mais raro. Até o Sebrae estadual já fez cursos para incentivar a fabricação, mas o segredo da receita continua nas mãos de poucas mulheres da cidade.
Tânia lembra que mesmo os licores, tão comuns nas festas populares, estavam sumindo da mesa, mas a Asccuna (Associação Comunitária e Cultural de Natividade) se dedicou a manter a tradição entre os festeiros e hoje o licor se faz presente em abundância.
Um bolo chamado borracha
Em Monte do Carmo (160 anos, 89 km de Palmas), a facilidade de encontrar determinados alimentos, a presença dos negros e o sincretismo religioso tornaram-se fundamentais para a criação de uma receita no mÃnimo exótica. Trata-se do bolo borracha, que se encontra em vias de extinção.
A jornalista Marilda Amaral, atualmente à frente da Secretaria de Cultura do municÃpio, há cerca de um mês levou uma equipe de historiadores da Fundação Cultural do Estado até a Fazenda Santo Antônio, no Vale da Mata Grande, cerca de 30 km da cidade. Ali, a famÃlia de Joaquim Carvalho Neves, o Joaquim de Patu, faz questão de manter viva a tradição do bolo, que é servido durante as folias de Santos Reis e do Divino EspÃrito Santo, aos quais é devotado. A esposa de Patu, Floriana Carvalho Rodrigues (dona Flor) desvendou para Marilda os segredos do bolo. “É uma receita sertaneja, que leva ingredientes encontrados na fazenda – ovos caipiras, banha de porco, tapioca - e não polvilho -, leite, o soro do leite, açúcar, sal, cravo moÃdoâ€, conta a jornalista lembrando que a folha da bananeira é cuidadosamente escolhida e tratada e o soro caseiro também traz sua “ciênciaâ€. “O fermento é feito em cuia ou gamela, a vasilha só serve para isso e não pode ser lavada, pois as boleiras acreditam que se lavar o próximo fermento não vai prestar, e a forma de limpar e guardar o recipiente também é cuidadosaâ€, continua ela. A hora de assar o bolo também requer experiência, para não passar do ponto.
Pergunto o sabor. “Não é doce, é meio azedo, eu gostoâ€, confessa ela dizendo que na cidade apenas pessoas de mais idade fazem o bolo borracha, mas em poucas quantidades, somente para matar a saudade entre os familiares. Nada que se compare à s grandes quantidades servidas nos festejos de Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora do Rosário e do Divido, até os anos 60. A partir daà os ventos da moderna facilidade pesaram mais que a tradição.
Receita mais simples, porém não menos tradicional, foi mantida para os festejos da cidade chamada por seus moradores de “principadoâ€. Trata-se do bolo de arroz assado em tabuleiro. “As boleiras preferem o ovo caipira e o fermento caseiro, também utilizam o arroz em casca, que elas mandam limpar; dizem que o bolo fica mais doceâ€, revela Marilda. Outra tradição ainda mantida, porém com menor intensidade, é a reunião das boleiras. Eu mesma presenciei um desses encontros em torno de um forno de barro rústico, há cerca de dois anos, quando fui acompanhar a festa chamada “Caçada da Rainhaâ€. Várias mulheres se unem para assar dezenas de tabuleiros que são servidos a todas as pessoas que fazem o percurso de 2 km a pé seguindo a rainha dos festejos.
Também é servido licor à vontade. O mais popular é o de jenipapo, mas também estão presentes outros frutos do cerrado, como a mangaba, a cagaita, o murici. Marilda lembra que o festeiro depende dos produtos do sertão para fazer sua festa. “A cidade não conseguiria fazer as festas sem ajuda do sertanejoâ€, defende a jornalista enfatizando que em Monte do Carmo as festas religiosas promovem a aproximação entre o sertanejo e o homem urbano. Talvez esteja aà o segredo de sua longevidade.
Texto impecável e com uma precisão nos detalhes descritos que faz a gente sentir na pele esses momentos de comunhão com a nossa cultura. É gratificante encontrar um retrato assim tão fidedigno de nossa realidade cultural e histórica. Zuleide D´Angelo/Palmas-TO
zuleide d´angelo · Palmas, TO 13/10/2006 16:30Muito boa a idéia, é raro saber qualquer coisa sobre o Tocantins, ainda mais sobre a culinária local.
Marcelo Träsel · Porto Alegre, RS 13/10/2006 22:42Eu adoro amor-perfeito...derrete na boca. A sensação é indescritÃvel e o primeiro sempre pede outro e outro....bacana o texto, simples, direto e delicioso, como a culinária local.
Glês Nascimento · Palmas, TO 14/10/2006 12:02Que pena que boas tradições caminhem para a extinção! Fico feliz em saber do trabalho do Sebrae. Gostaria de ver mais trabalhos nesse sentido...
apple · Juiz de Fora, MG 15/10/2006 21:41Adoro licor de pequi! Mas nunca comi o arroz de pequi, que todos elogiam. Obrigado por mais este pedacinho (gostoso) de informação!!
Fábio Fernandes · São Paulo, SP 16/10/2006 17:24
faço um esforço enorme para gostar de pequi, mas não consigo: o cheiro já me deixa tonto...: deve ser trauma da infância nos cerrados de BrasÃlia, ou do dia que tentei comer um risoto de pequi com guariroba (mas adoro pastel de guariroba) naquele restarante regional chique de Goiânia - de qualquer maneira: o texto está uma delÃcia e me deu ânimo para tentar o pequi novamente! de preferência com o bolo de arroz (tudo de arroz é bom - sobretudo arroz-doce) na sobremesa!
ps: que bom ver o Träsel por aqui!
claro que sei que o pequi é mais tipicamente goiano! meu comentário foi mais para o comentário do Fábio
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 16/10/2006 19:20Ih! Como praticamente tudo! Detesto apenas abóbora.
apple · Juiz de Fora, MG 16/10/2006 19:23mas logo abóbora? se você fosse de Omolu no candomblé seria até sorte - filhos de Omolu não podem comer abóbora...
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 16/10/2006 20:59
os franceses criaram a cozinha clássica
os italianos tocaram o barco com maestria
os espanhóis dominam a chamada alta gastronomia
mas nossa comida, a hÃbrida, tão bem descrita por este texto, é a melhor do mundo.
para mim, um fato!
ou uma fatada?
Achei legal nesse relato é a tradição culinária andando de braços dados com a tradição foliã. Acompanhei algumas folias de reis tradicionais em Goiás e não vi esse comes-e-bebes tão "linkado" com os giros das fazendas ou mesmo a reunião final da festa. Será que Goiás não experimentou somar essa tradição culinária com os giros ou eles sempre se deram em outros aspectos, regados com produtos comuns ao dia-a-dia também da culinária dos grandes centros ?
E parabéns S.Fontes por calibrar os detalhes de uma história bacana. Tomara que a coisa por aà tenha longa vida também na cozinha foliã.
p.s - E Hermano, você não está sozinho nessa resistência ao pequi. A guloseima é realmente melindrosa para a maioria dos radicados por aqui. Interessante que quando me deparei com essa iguaria e externei mal estar, insinuaram que eu fosse um mineiro de araque porque para os goianos, assim como eles, todos os mineiros também gostam dela. Ainda hoje tenho que repetir que Minas são várias...
Hiper legal o texto, principalmente quando comenta sobre o "amor perfeito". Quem experimenta nunca esquece. Tive a oportunidade de saborea-lo em Natividade, na casa de dona "Maninha" -se não me falha a memória.
É importante ressaltar que, pra fazer o amor perfeito, não basta ter a receita e os ingrientes na mão, é preciso, acho eu, que de umas boas aulas com quem bastante experiente.
Hermano,
Não gosto de abóbora e uma colega minha não gosta de camarão.
Um colega nosso disse que fará um camarão na abóbora e nos convidará para jantar com ele! Hahaha...
Ele estava brincando, valendo-se da história da raposa e da cegonha.
Na história, a raposa convida a cegonha para jantar. Usa um prato raso para servir uma sopa que, logicamente, a cegonha não consegue comer devido 'a sua anatomia.
Depois ocorre a retribuição do convite. A cegonha, entâo, serve a refeição em um vaso de comprido gargalo...
Edson,
Nâo tem nada a ver falar que mineiro é isso ou gosta daquilo.
Cada pessoa tem seu gosto, sua opinião, seu jeito, ... independendemente do lugar em more.
Hermano,
Esqueci de mencionar que gosto de carne, mas depende do tipo, sabe? Detesto dobradinha, carne de feijoada, ... Argh!
Prefiro um peixe, um frango, um lombo, ...
Agora verduras, legumes, frutas, .... tirando abóbora é tudo bom para mim.
Pra mim foi muito bom conhecer um pouco da culinária do TO, pois estou pretendendo fazer um mergulho no artesanato da região e claro vou experimentar a culinária local. Mais informações sobre a região??? Glória
Glória Mayworm · Rio de Janeiro, RJ 17/10/2006 01:00Legal aproveitar para conhecer o máximo possÃvel...artesanato, culinária, históra, folclore, economia, literatura, música, festividades... Inclusive, dizem que é bom conhecer os lugares em épocas festivas para conseguir visualizar melhor a cultura ... e se divertir, naturalmente.
apple · Juiz de Fora, MG 17/10/2006 07:23
Muito legal! Texto gostoso de ler, com muita informação de qualidade, sobre uma cultura pouquÃssimo conhecida... amei...
E a idéia que fica nas últimas frases, de que a cultura é fluida, móvel, que se transforma junto com a sociedade, não há como manter-se tradições completamente intactas ao passar do tempo.
Parabéns pela matéria!
Abraços!
gostei da materia.
Eu adoro cozinhar e fazer experiências com vinho,ervas e especiarias.
Hermano,
Vc precisa conhecer a pimenta curtida no piqui!
abraços
af
Texto maravilhoso, muito detalhado e bem escrito! Adorei saber como se faz (e como é fácil fazer) a paçoca de carne seca que tanto gosto de comer... e que vontade de comer amor-perfeito, pura gula!
Agora, depois do almoço, um licorzinho de jenipapo iria muito bem =)
Provei o arroz com pequi, mas não gostei. Por aqui temos a rabada no tucupà e o tacacá. Quem vem do sul não aceita bem de primeira, mas, se insistir, pode ficar apegado como eu. A culinária do norte é mesmo fantástica! Deu gosto ler o trecho sobre o amor-perfeito.
Fabiana Mesquita · Rio Branco, AC 17/10/2006 19:21rabada com tucupi é uma delÃcia! tipicamente acreana!
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 17/10/2006 19:23Hermano, lá em cima você foi falar de arroz-doce, que vontade me deu! Realmente tudo com arroz é bom, e arroz é tudo de bom. Arroz-doce com uma pitadinha de canela é coisa de louco.
Fábio Fernandes · São Paulo, SP 17/10/2006 21:05Agora, rabada com tucupi eu nunca comi. Meu pai, aà no Rio, faz uma rabada com agrião e angú que é uma delÃcia (aliás, preciso pedir a ele para fazer da próxima vez que eu for ao Rio).
Fábio Fernandes · São Paulo, SP 17/10/2006 21:06
comi muito amor-perfeito na casa da minha vó em Porto Nacional, adorava o derreter do biscoito na boca... e bolo de arroz da Baixinha, trovão. até hoje minha vó guarda os biscoitos em latas, os que vêm da festa do Monte do Carmo.
já me lembro dela falando no meio da tarde, depois de um farto almoço dominical "minha filha, vem comer, que a merenda tá na mesa"...
oi carô: agora você nos deixou curiosos sobre Porto Nacional! vale um texto sobre a cidade aqui no Overmundo, não vale? pode ser um estilo bem Proust: biscoitos e bolos se derretendo...
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 17/10/2006 23:39
Também não gosto de pequi, mas o maor perfeito é tudo de bom.. não passo por Natividade sem levar um pacotinho.
É iigual quando vou para minha cidade: Xambioá, no norte do Estado. Não dá pra chegar lá e não tomar café com "orelha", um bolo feito com o arroz pilado e fermentado a massa é adoçada e frita. Tuudo de bom! e só encontro lá.
Aqui a gente ainda tem o "bolo cacete".. uma delÃcia com aquele toque de erva doce. "Mangulão" e tantos outros.
Também adoro bolos! Gosto de biscoitos, pães, salgadinhos... Tudo de bom! Adoro massas! Meu ponto fraco...
Se pudesse nem almoçava dia nenhum, só comia essas coisas...
Seu texto sobre Dona Pretinha acabou me trazendo para esse e, sinceramente estou gostando muito de seus escritos. Tenho um irmão que mora em Palmas ( Melck Aquino) que teve uma casa de shows na cidade e que vive elogiando a diversidade gastronômica da cidade. Deu vontade de comer paçoca de carne seca. Conheço a iguaria feita em Porangatu e no Norte de Goiás ela já é uma delÃcia.
Tacilda Aquino · Goiânia, GO 26/1/2007 21:22
Li por recomendação Os Sabores Exóticos do Tocantins. Feliz indicação! Odores e sabores me fizeram as mãos tatear em pedaços de lembranças, à gua na boca e nos olhos. Saudade de minha velha Goiás, onde os sabores, também, compõem com alma a brasilidade. Parabéns pela multiplicação saborosa!
Tacilda, claro que conheço seu irmão! O Melk grande é um parceiro, alguém que como eu acredita na cultura.
s. fontes · Palmas, TO 1/2/2007 20:01Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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