Caminhos e Re-voltas de Antônio Conselheiro
Durante o mês de novembro e inÃcio de dezembro, o grupo do Teatro Oficina esteve em turnê com o espetáculo Os Sertões no Ceará e na Bahia. A turnê, que em si já seria um grande acontecimento cultural, ganhou muito em mais em significado pelos os locais da encenação: Quixeramobim e Canudos, respectivamente a terra natal de Antônio Conselheiro e o lugar onde este fundou o Arraial do Belo Monte, seu inferno e ParaÃso.
Em Quixeramobim, a Companhia fundada por Zé Celso Martinez apresentou a obra entre os dias 14 e 18 de novembro. De lá seguiu para Canudos onde a encenou entre os dias 28 de novembro e 02 dezembro de 2007. Estive presente nos dois momentos e, sobre isso, passo a escrever agora.
Quixeramobim e Os Sertões de Zé Celso
Muito antes da estréia da peça, o MunicÃpio se mobilizou para receber e participar do espetáculo. Durante dez dias, foram exibidos nas escolas das zonas urbana e rural, documentários sobre a história de Canudos e Antônio Conselheiro, seguidos de debates. As rádios locais faziam entrevistas e escutavam a população sobre as expectativas da peça. A nudez e a linguagem da Companhia eram um dos temas mais abordados.
Os hotéis da cidade ficarm lotados desde o primeiro dia de novembro. Muitos turistas se hospedaram em casas particulares. Tudo para que Quixeramobim comportasse mais de dois mil visitantes durante os cinco dias de espetáculo.
No dia 17 de novembro, um dia antes da estréia, o evento foi aberto com um grande cortejo pelas ruas de Quixeramobim. Os atores saÃram com figurinos do espetáculo e arrastaram uma multidão por diversos pontos históricos da cidade. Na Igreja Matriz, onde Antônio Maciel casou com Brasilina, foi encenado um novo casamento, ao som da Banda de Música Municipal. O final do Cortejo foi na casa onde nasceu e viveu Antônio Conselheiro.
Foi armada uma réplica do Teatro Oficina com capacidade para oitocentos lugares. Todos os dias a casa esteve lotada. Uma romaria de amantes do teatro e Canudos se deslocou para Quixeramobim.
A estréia: A Terra
No primeiro dia, espanto e admiração eram evidentes nos olhares da platéia. Grande parte dela sequer tinha assistido a uma peça teatral. No espetáculo de profunda beleza, são representadas as bases geográficas e naturais do que virá a ser o Sertão. Um ponto de grande destaque foi a encenação do oceano. Um enorme tecido azul entra em cena, desenrolado e conduzido pelos atores. No meio da cena, o tecido foi sacudido por uma rajada de vento que o levantou abruptamente, compondo um belo improviso, como ondas marÃtimas reais levantadas no meio do oceano.
Diante das primeiras aparições de atores e atrizes nus, a reação foi imediata. Olhares seduzidos, outros repelidos, a maioria atenta. No meio da platéia, de repente, pôde-se ouvir alguém bradar: “Isso é um cabaré, um cabaré!â€, era um senhor que em seguida se retirou.
Segundo dia: O Homem I: Do Pré-Homem a Re-volta
O dia seguinte foi recheado de comentários sobre a estréia do espetáculo. Nos bares, nas padarias, nos lugares cotidianos o assunto era o mesmo: a peça e a nudez. Opiniões divididas, mas Teatro lotado. Todos queriam ver. Estima-se que quase a mesma quantidade de pessoas da capacidade do Teatro ficou de fora, esperando alguma desistência.
Lá dentro, a peça contava a fundação e a formação do Homem até as multideterminações étnicas do brasileiro e do sertanejo. “ O tipo brasileiro é um tipo sem tipoâ€, bradavam os atores.
Houve crÃticas a Bento XVI e ironias a Bárbara Eliodora. Parte dos católicos presentes se irritou com a referência (embora cabida) ao Chefe do Vaticano. No entanto, a beleza e o bom humor do espetáculo sobressaÃram-se.
No dia após a segunda parte, os comentários dos quixeramobinenses giravam em torno de muitos assuntos da peça, mas paravam, principalmente, em um só: a Buceta de Pandora ou Oráculo Vaginal, a cena em que uma atriz simula um monólogo com sua vagina enquanto a imagem focada desta é projetada no telão. Na fila para o terceiro dia, o bom humor cearense dava sua marca: “Já vi isso[ a vagina] fazer muita coisa, agora falar foi a primeira vezâ€, comentava um senhor.
Terceiro dia: O Homem II- Do Homem ao Trans-homem
Com a platéia já se habituando à linguagem do Teatro Oficina, o terceiro espetáculo contou a história de Antônio Maciel, de sua transmutação para Conselheiro, da fundação de Canudos, da sua prosperidade e do inÃcio das ameaças de destruição.
As alegorias, as metáforas e citações que desfilaram em cena gerou um inusitado debate entre a assistência: o que é uma verdade. Alguns diziam que Conselheiro não era aquilo, outros contra-argumentavam que tudo era um “como se fosseâ€, uma linguagem figurada. O fato é que a praça de alimentação, na hora do intervalo ou antes do inÃcio dos espetáculos, virava um campo de debates sobre as mais diversas temáticas suscitadas pelas apresentações.
Quarto dia: A Luta I
O começo do fim. Em A Luta I, narra-se a história da Guerra de Canudos, desde o incidente da entrega das madeiras em Juazeiro da Bahia até a Terceira Expedição. Articulando-se à Guerra de Canudos, citações de problemas atuais que são muitos similares ao que significava Canudos para o Brasil. Numa delas, surge Rosinha Garotinho propondo a construção de um muro em torno do Arraial de Conselheiro. Evidente ironia ao que se propôs quanto às favelas do Rio de Janeiro. Nessa direção, aparecem também Condeleeza Rice e Silvio Santos.
Quinto dia: A Luta II
Último dia de espetáculo. Sente-se em Quixeramobim um clima saudoso e doÃdo. Apesar de algumas resistências, a população foi se envolvendo com a história de seu mais famoso filho. “ Esse lugar não será o mesmoâ€, ouvia-se de diversas bocas.
Na quinta noite, o espetáculo iniciou-se fora do Teatro. O público entrava de mãos erguidas e era revistado pelo Exército Republicano. Euclides chegara ao cenário da Guerra. As vicissitudes dos últimos embates são mostradas de modo contundente e emocionante. Conselheiro morre em cena dirigida por Glauber Rocha. Ao final, com muitos da platéia em lágrimas, escuta-se o coro cantar: “ Ah! Sertão/ tão sem ser/ sertão/ Rocha Viva/ Voando,ando/ Ser estando, ser estando.../ Serestando... Tão sem ser...â€
Impressões outras
Os Sertões levou “1968â€, Oropa-França-Bahia para Quixeramobim. Não em um compartimento, mas em uma magnÃfica espiral de tempo. O sertão cearense retoma questões cruciais: a sexualidade, o corpo, a paixão pela vida. Tudo sob uma ótica singular.
Nunca um evento causou tanto impacto na Região. Após Os Sertões, pastores evangélicos foram protestar na Câmara Municipal e nas rádios locais; jovens fundaram um grupo de teatro; todas as edições dos livro de Euclides foram emprestadas da Biblioteca Pública; foram promovidos mais de dez debates na rede pública de ensino sobre a peça e o livro; a sexualidade e o corpo tornaram-se temas centrais nas rodas de conversa da cidade, seja na praça ou nas igrejas.
Definitivamente, Os sertões inseriram Quixeramobim no cenário cultural do Ceará. Passado vinte dias do fim da temporada, a cidade ainda respira o assunto, o que ratifica todas as suspeitas: o espetáculo está para além de um evento, ele ficou entranhado no afeto dos quixeramobinenses, revirando desejo, incomodando morais, fazendo pensar, serestando...
Nos caminhos de Conselheiro: Os Sertões em Canudos.
Depois de Quixeramobim, a última parada de Antônio Conselheiro: Canudos, onde o espetáculo foi apresentado nas três últimas noites de novembro e nas duas primeiras de dezembro de 2007.
Cumprindo o destino recriador de seu lÃder, a atual Canudos é a terceira. A primeira foi destruÃda pelo exército; a segunda está submersa nas águas da represa de Cocorobó. O municÃpio de hoje tem catorze mil habitantes, onze mil a menos do que a primeira Canudos. Sua precária condição econômica é decorrência direta dos fatores que destruÃram as duas primeiras: o descaso do Estado Brasileiro e o desejo de excluir da história tão contundente pedaço de Brasil.
Por outro lado, a região transborda beleza e força. Estar em Canudos, visitar os locais da Guerra e do sonho vivido daquele povo é uma experiência estonteante. Vizinho à atual cidade, existe o Parque Histórico de Canudos, uma gigantesca área de preservação, onde estão sinalizados os locais mais importantes para a comunidade conselheirista, bem como os pontos onde se desenrolaram os episódios da guerra narrados por Euclides da Cunha e outras testemunhas. Exclui-se disso, evidentemente, o núcleo central da cidade, já que este submergiu nas águas do Cocorobó. O que o visitante encontra são os pontos que se situam no entorno da represa: Alto da Favela, Vale da Morte, Pelados, Hospital de Sangue, Alto do Mário, Fazenda Velha, o leito seco do Vaza-Barris, etc. Todos esses pontos são largamente descritos por Euclides da Cunha em Os Sertões.
Para a peça, foi montada a mesma estrutura de Quixeramobim. Desta vez, no Estádio Municipal de Canudos.O Estádio ainda está em construção. Há apenas alguns lances de arquibancada e um gigantesco muro cercando um vasto terreno vazio e plano. Tudo isso no topo de um serrote. Tal arranjo colocava o Teatro e os participantes frente-a-frente com o pôr-do-sol. De todos os pontos da cidade, avistava-se o Teatro-Estádio-Olimpo.Os espetáculos começavam ao cair da noite sertaneja, entre 17:30 e 18:00h. Ao atravessar os portões, a sensação era de penetrar uma tela de René Magritte...
O sol ruge mergulhava na boca da noite estrelada. À esquerda, nuvens escuras contrastavam com um imenso muro que, especular, refletia as últimas luzes do dia vindas do oeste. Adiante, o Teatro Oficina saÃdo de São Paulo e pousado em pleno Sertão. Era noite? Era dia? Não se podia dizer, apenas sentir o cenário perfeito para se contar a história de Canudos, que é a história de muitos sertões.
Os canudenses, assim como os quixeramobinenses, estranharam a linguagem do espetáculo. Alguns diziam não entender o que assistiam. Dona Maria José, 61 anos, afirmou: “não estou entendendo umas coisas mas mesmo assim é bonito de verâ€. Outros defendiam o espetáculo como uma ação cultural necessária para a região: “Zé Celso é isso... E a peça é uma ficção como o livro do Euclides. A gente tem é que aproximar esses espetáculos do Sertão, botar o povo pra pensar. Canudos não é só reza, é pra ousar também. Que outros Sertões venham pro Sertãoâ€, afirmou Gildemar dos Santos, morador de Uauá, cidade vizinha de Canudos.
Para comportar tantos turistas, os moradores da cidade alugavam quartos e até casas inteiras. Entre os visitantes, estiveram as atrizes Mariana Ximenes, Maria Padilha e o Senador Eduardo Suplicy. Mariana Ximenes participou de algumas cenas do Homem II. No dia anterior, sua presença na platéia causou um pequeno alvoroço que chegou a interferir no bom desenrolar de uma cena. Eduardo Suplicy fez conferência na tarde do dia primeiro. À noite, assistiu à peça, participou de uma cena e fez um discurso antes do inÃcio do segundo ato.
Para não finalizar
Cento e dez anos depois do fim da guerra fratricida, uma multidão se reuniu em torno da história de Canudos e da formação do povo brasileiro. Quatro mil pessoas em Quixeramobim, quatro mil em Canudos. Impressiona as paixões que o tema desperta. Passado vinte dias da última apresentação no Ceará, as rádios locais e as escolas ainda fazem debate sobre os tema. Estudantes, pesquisadores, artistas, religiosos, polÃticos se deslocaram para os dois municÃpios para celebrar os feitos de Antônio Conselheiro e rememorar a grande tragédia brasileira. Três grandes imãs da cultura: Antônio Conselheiro, Euclides da Cunha e Zé Celso Martinez. Trinta horas de espetáculo e vidas inteiras reviradas pelo empuxo existencial do Teatro Oficina. Recordemos tudo para que repitamos nada. Quixeramobim não será mais a mesma. Canudos, também não.
Importa saber, ao final, se o Estado Brasileiro continuará de costas para os sertões do norte baiano e para o crime que implementou contras seus filhos. Que o Brasil desmassacre Canudos e Antônio Conselheiro e que a tragédia canudense deixe de se repetir nas favelas, no campo e nas periferias das cidades de todo o mundo.
Maravilhosa análise a passagem do Oficina pelos Sertões, Osvaldo. Que as bibliotecas não dêem mais conta do empréstimos de Euclides e que o teatro e as artes continuem a despertar polêmicas e encantos pelos sertões adentro e dentro de nós.
Ilhandarilha · Vitória, ES 12/12/2007 10:33
arrasôôôôô
osvaldinho.
conseguir digerir tudo aquilo e ainda compartilhar... eu ainda não entendi o que vivi. mas talvez seja isso: uma compreensao no meu proprio silencio.
PARABENS PELA COLABORAÇÃO MAIS QUE IMPORTANTE...IMPORTANTÃSSIMA.
BJUS.
Parabéns!
gostei muito da colaboração.
votadÃssimo!
bjO
Osvaldo! Que maravilha! É de arrepiar o seu texto. Eu como pesquisador de teatro, fico realmente crente nessa arte de transformar pessoas, arte de não ser mero entretenimento, arte em todos os nÃveis de seu significado. Zé Celso é brilhante, um gênio, um icone do teatro brasileiro. Tenho muito orgulho. Se tiverem passando por Mato Grosso, dá uma paradinha por aqui... quero sentir mais.
Jan Moura · Cuiabá, MT 15/12/2007 14:00
genial!!!!
valeu oswlado!!!
depois da volta, vamos a revolta!!!
Lendo, me và lá me deixando seduzir, embarcando na viagem de Zé Celso...
Valeu!
Como sujeito, um dia, resolvi pisar o solo de Canudos, como se precisasse sorver lÃquido uterino... Conheci, lá, Manuel Travessa e algumas nuances. Agora, sua contribuição escancara o espaço que atualiza tudo, como o próprio Euclides. Parabéns., Márcio.
maravestruz · Caiçara do Rio do Vento, RN 17/12/2007 09:35Parabéns pelo grande feito de Zé Celso e sua equipe do Teatro Oficina e obriga Oswaldo, por conseguir dividir conosco tantos sentimentos. Uma lição!
mariana pimenta · Lagoa Santa, MG 5/7/2008 17:12Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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