Ouvidos sem muros

Projeto Guernica
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Sergio Rosa · Belo Horizonte, MG
2/6/2006 · 140 · 15
 

Pesquisa multidisciplinar que envolve arquitetos, engenheiros, psicanalistas e historiadores procura entender o que as pichações tentam comunicar

O espaço urbano – ruas, avenidas, viadutos, prédios, muros – é um local de conflitos visuais. Tudo o que vemos nele diz algo a alguém, com interesses distintos. Discutir esse bombardeio de imagens e símbolos nas ruas é o papel do Projeto Guernica criado pela Prefeitura de Belo Horizonte. Ele é, desde a sua criação, um espaço tanto para a manifestação quanto para a reflexão e contextualização da arte urbana.

A discussão surgiu a partir de um ato simples e transformador: escutar. Em 1999, a Prefeitura de Belo Horizonte buscou entender o que as pichações, que tomam indistintamente centro e bairros da cidade, tentavam comunicar. Dessa iniciativa surgiu uma pesquisa multidisciplinar que envolveu arquitetos, engenheiros urbanos, psicanalistas, historiadores, jornalistas.

A cidade é o suporte do grafiteiro. O que ele enxerga como tela não é certamente visto assim por outros. A pesquisa buscou ouvir os diferentes lados desse convívio. “O diálogo entre prefeitura e pichadores foi aberto, pois anos de experiência demonstraram o fracasso contínuo da abordagem repressivaâ€, afirma José Marcius Carvalho Valle, um dos coordenadores atuais do Guernica. Os trabalhos giram a partir do eixo reflexão – ação. "Os meninos só vão para o muro depois de uma conversa. Ou seja, a idéia é manter um canal de comunicação entre o muro, o que os jovens querem dizer e o patrimônio público. E que esse diálogo seja mantido e levado por elesâ€, afirma.

Para a psicanalista Maria Ines Lodi, autora da dissertação de mestrado A Escrita das Ruas e o Poder Público no Projeto Guernica de Belo Horizonte, o Guernica não é um espaço para a formação de grafiteiros. Aos participantes é colocada a pergunta “o que você quer fazer?â€. Cabe a prefeitura oferecer o equipamento e o material. O objetivo é deixar claro que existe “vida†fora do grafite: ilustração, computação gráfica, fanzine, pintura, etc. Na visão da coordenação, o caminho a ser tomado pelos jovens é uma procura que parte unicamente deles. “O Guernica vê o grafite como um meio, não como um fim em siâ€, afirma Maria Inês.

Com o andar do projeto, parcerias importantes reconheceram o talento dos jovens envolvidos e a seriedade do mesmo. Hoje, mais da metade dos componentes da oficina do grupo Giramundo é constituída por artistas provenientes do projeto. Há cada vez mais trocas com outros grupos culturais da cidade. Para Ramon Martins, participante desde o seu primeiro ano, a formação de redes e pontos de produção cultural é uma meta do trabalho. O artista plástico, e ainda grafiteiro, embora não mais integrante do Guernica, já expôs suas obras na Bélgica e na França. “Foi uma experiência muito interessante. Aprendi muito com o projeto, mas agora que estou me formando em artes plásticas, vou seguir outros caminhosâ€, afirma.

A coordenação e os monitores se reúnem semanalmente. Algumas vezes, convidados participam de um debate sobre a relação entre arte e inclusão social. Figuras importantes como antropóloga Alba Zaluar, o urbanista Rodrigo Andrade e o filósofo Moacyr Laterza já participaram de conversas com os integrantes, para uma reflexão maior sobre temas como a violência, o espaço urbano e a solução artística. O objetivo é pensar o grafite/pichação não como um fênomeno isolado, e sim concebê-lo como parte da comunicação visual das ruas.

Pichador ou Grafiteiro?

A dúvida quanto à nomenclatura acabou por revelar um debate mais profundo. Com os contatos que a coordenação fez com outros projetos de arte urbana internacionais, principalmente em Nova Iorque e Roma, observou-se que fora do Brasil não se acentua tanto a diferença entre pichação e grafite. Tudo é chamado de grafite.

Para o coordenador do projeto, tal separação é excludente e discriminatória podendo levar a equívocos tanto na abordagem dos pichadores/grafiteiros como na discussão relativa ao respeito ao patrimônio e paisagem das cidades. "Torna-se pichação aquilo que é incompreensível para nós e que aparentemente não tem nenhum conteúdo. É preciso relativizar este conceito, não só porque atrás do 'picho' temos um dizer e um conteúdo, como eventualmente determinadas peças publicitárias poderão agredir muito mais a a paisagem urbana", afirma Valle.

O monitor Emerson Silva ressalta que não importam quais são os “muros†, a arte é a mesma, portanto o artista também é. “A distinção surge, na maior parte das vezes, por uma necessidade de categorização e rotulaçãoâ€, aponta.

Já Lodi afirma que a diferenciação se dá, principalmente, na formação dos grupos. O pichador seria então a primeira fase do grafiteiro. Apesar de não ser uma delimitação bem definida, as “gangues†de pichação são muito fechadas e competem entre si, já as equipes de grafiteiros (como eles preferem ser chamados) se envolvem mais em trabalhos comunitários e têm objetivos mais “madurosâ€.

* Contato com a coordenação do Projeto Guernica pode ser feito à rua Paraiba, nº 29, 10º andar até o próximo dia 22 de junho. Após essa data a coordenação estará localizada na Secretaria Municipal Adjunta dos direitos de Cidadania , na Rua Espirito Santo, nº 505.

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Sergio Rosa
 

Vou propor o seguinte: dividirei as 48 horas de edição entre duas fotos para ilustrar o texto. De acordo com a reação (se houver) da comunidade, eu escolho a foto que vai ficar.

Sergio Rosa · Belo Horizonte, MG 30/5/2006 23:57
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Helena Aragão
 

Hum, interessante a proposta hein! Gostei dessa primeira. Vou aguardar a segunda para dar meu voto.

Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 31/5/2006 13:05
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Sergio Rosa
 

essa é a opção 2

Sergio Rosa · Belo Horizonte, MG 31/5/2006 23:23
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Thiago Camelo
 

Voto nesta 2º. Achei a 1º meio fora de foco : )

Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 1/6/2006 12:54
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Helena Aragão
 

É... A primeira tinha uma coisa interessante de estudo, de sala de aula, mas esta segunda é bem mais bonita, acho eu...

Por mim fica a segunda também!

Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 1/6/2006 14:22
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Carol Assis
 

Deve ter sido realmente díficil escolher qual a foto para a amatéria Sérgio. Deve ter altos talentos e imagens pra fotografar. Legal!!

Carol Assis · São Paulo, SP 2/6/2006 19:54
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eduardo ferreira
 

fico com muita dúvida ainda sobre a organização e o enquadramento de certas linguagens dentro de uma visão muito correta das coisas. e a transgressaõ, onde fica? e a nossa capacidade de reagir a determinados sistemas de coisas que não queremos e não aceitamos? será que um dirigismo excessivo e enquadramento em, pode aqui, não pode ali, não macularia de vez a rebeldia explícita do cara que pinta, ou grafita, ou picha, como expressão da mais pura liberdade transgressora? será que seremos todos cordeiros domesticados pelas leis do bendito politicamente correto ou vamos deixar as veias pulsando vida e capacidade de negar o status quo? é só uma dúvida que pintou...

eduardo ferreira · Cuiabá, MT 2/6/2006 20:20
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Sergio Rosa
 

Eduardo, seu comentário é certeiro. Essa foi uma questão que me surgiu durante a conversa com os oficineiros e os coordenadores do Guernica (todos eles grafiteiros), eu percebi que eles tinham essa questão até bem esclarecida para eles... bem, a minha impressão foi a de que todos eles não entendiam o projeto como o resumo de suas atividades no graffiti, eles já faziam a arte deles antes e continuariam a fazer depois. E outra coisa bacana do projeto é que os oficineiros (a maioria vinda da periferia) é que coordena e ajuda a decidir os rumos do projeto e eles que lidam também diretamente com os alunos das oficinas (também da periferia).

Por ser um projeto do governo, é claro que há regras e ações bem definidas e estabelecidas... mas essa questão do controle é realmente muito interessante. Pode ter sido algo como "se não consegue vence-los, junte-se a eles".

Sergio Rosa · Belo Horizonte, MG 3/6/2006 13:46
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Dalsins
 

nossa ,materia firmeza ,puta desenho legal!

Dalsins · Campinas, SP 3/6/2006 22:54
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José Marcius
 

Escutá-los? Sempre.
Vence-los? Juntar-se a eles? Não.
Este não é o propósito do projeto.
Aliás, as demandas"politicamente corretas" e o equívoco dos projetos tipo "de pichador a grafiteiro" são discussões tensas e ricas sempre presentes nas reuniões tanto com os grafiteiros como com outros grupos interessados no tema.
E o Projeto Guernica mantem sua posição de não ceder nem a uns, nem a outros, escutando sempre e acreditando na possibilidade de que seus participantes farão suas escolhas e serão responsáveis pelos seus atos.


José Marcius · Belo Horizonte, MG 4/6/2006 11:21
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Sergio Rosa
 

Bacana o seu comentário, Zé Marcius.

Aproveito para explicar o título. Foi inspirado na entrevista que eu fiz com o Zé Marcius para essa matéria, na qual ele citou um famoso graffiti das manifestações estudantis de maio de 68:
""Les murs ont des oreilles. Vos oreilles ont des murs"
(Os muros têm ouvidos. Os ouvidos têm muros)

Sergio Rosa · Belo Horizonte, MG 5/6/2006 11:51
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André Maleronka
 

muito bacana a posição dos coordenadores de colocar a pichação (ou pixação, como preferem os praticantes) e o graffiti juntos. mas talvez uma outra discussão que pode ser levantada é a respeito das próprias formas. não escondo meu apreço pelos pixos, os graffitis costumo encarar mais como ilustrações mesmo, fora belas excessões que confirmam/estragam minha "teoria". assim, discordo da opinião evolutiva (de pixo ao graffiti), já que acredito serem duas coisas diferentes enquadradas no mesmo balaio. e isso é pro bem e pro mal (como o eduardo bem levantou). só queria deixar minhas pulga e opinião partidária aqui, abs!

André Maleronka · São Paulo, SP 7/6/2006 17:52
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Sergio Rosa
 

bacana, André. Concordo com você. Na verdade pra mim até existia essa diferenciacao, mas conversando com quem realmente faz, eu vi que nao há...

o lance da evolução eu quis dizer (ou dar a entender com a materia) nao que seja uma questao de técnica melhor que a outra (pichacao x graffiti) mas por, normalmente, a coisa do pixo surgir com galera de colegio, molecada e etc. E sei que continua depois, mas também rola o amadurecimento proprio da pessoa (ate para ganhar dinheiro, trabalhar, ser "adulto") de comecar mais a fazer graffiti...

e ai surge um lance interessante. pq depois que o grafiteiro vai ficando conhecido, ele nao pode se arriscar a ser pego "oficialmente" como pichador, ja que eh uma parada ilegal. mas eh obvio que os mundos nao sao separados assim. nao quis passar a ideia de substituicao. nem um pouco, voce tem razao.

Sergio Rosa · Belo Horizonte, MG 8/6/2006 00:08
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André Maleronka
 

realmente, isso está nas palavras dos coordenadores, e é legal pq abre pra que discutamos aqui. tenho pilhado constantemente um amigo que escreve sobre artes plásticas a fazer uma matéria dando uma dissecada na tal "street art" de sp, espero que ele faça, e assim seguimos pensando e discutindo essas coisas. tendo apensar que iniciativas são muito importantes e devem ser documentadas ao infinito, aí sim teremos uma base pra poder discutir o que é realmente bom ou não. parabéns pelo texto, que levantou essa bola toda. abs!

André Maleronka · São Paulo, SP 8/6/2006 16:35
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Claudio Marcio Lopes
 

Não só conheço o Projeto Guernica desde o início de suas atividades como também acompanho sempre suas atividades. Trata-se de um projeto de inclusão social de extrema importância para Belo Horizonte e que deveria servir de exemplo para todas as cidades de qualquer porte, sejam capitais ou não. O projeto hoje colhe excelentes resultados, resta-me, portanto, parabenizar ao(s) mentores) do projeto pela iniciativa e aos coordenadores, particularmente na pessoa de José Március, articulador e entusiasta maior do empreendimento.

Claudio Marcio Lopes · São João del Rei, MG 22/6/2006 09:00
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