"BEM DO OUTRO LADO"
Ele atravessa novamente os estreitos corredores da feira de Messejana, parando aqui e ali. São 10h55. A feira parece ter dobrado de tamanho. Inevitáveis encontrões, pisões e outros pequenos acidentes pontuam a travessia.
Cena rápida e curiosa: de um carro ainda em movimento salta um casal metido nuns "panos" muito distintos. Rei e rainha, eles caminham desconfiados até a banca de capas para celular. A mulher, muito alva, pede para ver alguns modelos. O homem, cor de leite, pergunta qualquer coisa sobre o preço da capa. Os feirantes, quase todos marrons, exageram as qualidades do "peixe" a ser vendido. Exatamente como havia saÃdo do carro, o régio casal retorna. E dá no pé. Atrás, um homem comenta qualquer coisa sobre qualquer assunto.
Naquele domingo, a feira tinha três cores: vermelho, branco e azul. Aqui e ali, um verde-lodo casual. O time da casa, o Fortaleza, enfrentaria, dentro de algumas horas, um clube do interior. A euforia, segundo dona Jaira, costuma atrapalhar as vendas. "Elas caem muito em dia de jogo. As pessoas deixam de vir aqui, preferem guardar o dinheiro", diz. Ele pede informações a um e outro. Sentado num banquinho de madeira, o “koreano†responde, sem hesitar: "Do outro lado". Todos, até mesmo o estrangeiro, parecem estar de acordo numa coisa: a goma fica a leste ou a oeste dos seus desejos. Ele segue.
A seção de calções e camisas e calças e bermudas e até mesmo bonés parece não ter fim. Enquanto procurava traçar o menor caminho entre dois pontos, descobriu o antigo mercado da praça. Ele entra e pára diante da loja com muita ferragem e couro expostos. Olha pra cima: um par de chifres enormes sauda a clientela, que se diverte com a brincadeira. Lance "proustiano", o molho de baladeiras de ligas vermelha e amarela tem cheiro de infância e de bicho morto a pedradas. Outros objetos à venda: selas e enxadas e foices e correntes e cordas muito grossas, além de potes de barro e ração para animais. Além, surge a "praça de alimentação". Nela, boxes ensebados, mulheres demolindo pilhas de pratos sujos e, a varar todo o ambiente, um terrÃvel mal-cheiro. Tapa o nariz e vai embora.
NELSON - UM MESTRE NA ARTE DE FALAR A VERDADE
Adiante, uma banca com mil e uma latinhas refletindo furiosamente a luz cega do sol. Eram 11h20. De pé sob o calor de rachar quenga de coco, um velho de barba escassa no rosto e farta queixo abaixo. Os fios, longos e brancos, desciam até pelo menos a metade do peito côncavo. Ele, o velho, lembra cultura de massa. Precisamente: Pai Mei, de Kill Bill. Conversava com uma cliente quando se aproximou. A mesma conversa dos calções, só que com potinhos de pomada, que era, ele dizia, obtida mediante algum processo envolvendo a copaÃba, uma planta natural da Amazônia.
“Serve pra tudo, dores etc. Muito boa pra massagear. Faço por R$ 1,5 o potinhoâ€, tentava convencê-la. Ela enfiou na bolsa duas latinhas do produto.
Pai Mei era, na verdade, José Nelson de Oliveira, nascido, conforme informava a carteira de identidade, em 3 de setembro de 1954. Ele disfarça a intenção, faz rodeios para, finalmente, perguntar: “o senhor usa essa pomada?â€.
Nelson cai numa desavisada gargalhada. Ri tanto que fica vermelho, roxo e violáceo, tudo a um só tempo. Contrai a barriga, tenta respirar, olha fundo nos olhos do ex-cliente e, sem cerimônia, arreganha a boca e ri ainda mais. “Se eu dissesse que sim, estaria mentindo. Se eu disser que não, fica complicadoâ€, resume, nesses termos, o seu dilema. Ele entende. Entende de dilemas.
Além da pomada da copaÃba, o velho – que mora nas Goiabeiras e sente orgulho de já ter percorrido quase todo o interior cearense oferecendo o seu produto multi – também vende a de peixe elétrico. “Essa eu nem sei como é feitaâ€, admira-se. “A da copaÃba também não...â€, completa, envolto em segredos. “Quer dizer, eu estou lá na Amazônia vendo o fulano cortar a árvore certa pra fazer a pomada? Não estouâ€, confessa, ar de honestidade, e mergulha em nova onda de risos frouxos.
RASTROS DA FABULOSA GOMA DE CASCAVEL
Ele estava próximo. Para ser preciso, segundo as indicações dos feirantes, estava no lugar certo: ao lado de um paredão nos fundos de uma escola da prefeitura de Fortaleza chamado solenemente de Memorial do Feirante. Inscrita no memorial, a poesia de Edmar Freitas reza: “Como é grande a luta do feirante. Tão grande que é quase desumana. Luta sem trégua, sem paz, cotidiana†e por aà vai. Se pensarmos em Nelson e em dona Jaira, faz todo sentido.
Mais corredores, desta vez na seção de carnes e verduras e legumes e outros itens classificados como “produtos da terraâ€. Incluem-se manteiga e algumas raÃzes. Ele avança sobre o ladrilho coberto de escamas e guelras de peixes. Aqui e ali, borras de sangue eternizadas no cimento da praça. Dos peixes?, interroga-se. À frente, balcões de madeirame. Atrá de cada um deles, bailarinos, dúzias de vendedores acionam os músculos na dura tarefa de descamar carás, cavalas, curimatãs e pargos. Sobre os pés, pequenos montes de vÃsceras. E mais escamas.
Após ter dado algumas voltas e topado com um cabeleireiro improvisado nos fundos da feira, bem ao lado do setor de pescados e dividindo o espaço com meia dúzia de caprinos, ele retorna para o memorial. Num relance, enxerga, entre algumas barracas, aquela que poderia ofertar o que procurava: goma de Cascavel.
Pois lá estava! Sob pesadas lonas de couro e guardadas em grandes sacas, quilos da mais famosa goma cearense esperavam por ele. Ou ele por ela, tanto faz. Uma mulher o atende. Ela não sorri, apenas atende. O final da feira aproxima-se. Ele tenta jogar mais iscas; ela não cai. Ele pergunta o preço da goma. “R$ 2,25 o quiloâ€, ela responde. Ele tira dinheiro da carteira e o entrega. Recebe o troco e vai embora; pra ele, a feira perde certo encantamento.
Peixe elétrico, goma do encantado (Parte I)
Legal, estes tipos são sempre mais ricos em Fortaleza, andre.
Andre Pessego · São Paulo, SP 26/5/2007 12:25
caro
o texto é rico em detalhes, histórias, mas o desencadeamento é muito rápido. O leitor tem dificuldades de ler e saborear a leitura ao mesmo tempo. Gostei muito, mas por exemplo, da idéia da moça comprando a capa do celular, passa rápido pelo local da comida e depois já entra na pomada da copaÃba. Felicidades
Muito bacana o texto, "dei uma caminhadas" pela feira e fiquei com vontade conhecer os poemas de Edmar Freitas. Já aguardo o III...
esmuniz, meu caro, a idéia da cena da mulher comprando a capa para celular é essa mesma: até grifei o trecho "cena rápida e curiosa", que abre o parágrafo. Alguns cortes são pensados exatamente pra que o leitor sinta essa espécie de descolacamento no local, ainda que apenas no nÃvel da leitura.
Era isso. Abraços aos que já leram e aos que ainda pretendem ler...
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