Admiro quem consegue lembrar perfeitamente o que aconteceu há muito tempo. Algumas pessoas bem próximas a mim dizem possuir clara memória de quando tinham dois anos. Penso muito sobre como eu seria se lembrasse dessas coisas. Porque eu não sou assim. Lembro muito pouco da minha infância. Em imagens, na verdade, quase nada. Quase tudo vem em sensações: o dia em que meu pai tentou consertar o freio da mobilete do meu irmão e, falhando na empreitada, andou uns 20 metros com apenas uma roda até bater em um coqueiro da rua onde cresci. Tenho em mente até hoje o riso preso dos segundos anteriores a saber que meu pai estava bem (e estava), mas não me lembro da mobilete, da rua ou do coqueiro nesse dia. Não lembro do depois, da minha mãe correndo, dos meus irmãos preocupados. Sei do que eu senti mas tenho em mim pouco do que vi.
O que eu tenho de concreto é ralo. São flashes de cenas que formam o imaginário do que é uma infância. Nada triste não. Minha infância foi ótima, e tenho como prova factual minha memória sensitiva que expliquei aà em cima. Ela me basta. Mas a pergunta continua: o que seria de mim se lembrasse firmemente do que fiz naqueles tempos?
A questão voltou com tudo neste abril, quando vi na banca a edição especial da revistinha da Turma da Mônica – Lostinho: perdidinhos nos quadrinhos. É porque se não lembro dos churrascos que sei que aconteciam lá em casa, do campeonato de 89 do Vasco (já mais velho, vi o jogo na Ãntegra, certo?), da piscina da antiga casa, do quintal, do cachorro, da pipa, da bolinha de gude, das campainhas tocadas, das ruas corridas, se não me lembro de tudo e tanto, lembro perfeitamente da primeira historinha que li da Turma da Mônica, o meu primeiro gibi e, sem dúvida, uma das primeiras obras literárias com que tive contato: o quadrinho era sobre o Seu Cebola (para quem não sabe, pai do Cebolinha) e de sua paixão por um carro. Curioso, não? Não é todo dia que se vê por aà o Seu Cebola como protagonista da Turma. Bom, o conteúdo (que está bem gravado) não importa muito, porque o que guardo comigo (e vou levar para sempre) é ainda mais valioso – a imagem da minha mãe rindo quando eu disse que o Seu Cebola estava dentro de um "possante". Ela sabia que eu tinha lido a palavra na revistinha, achou graça. E eu, com 6 anos, entendi com clareza sobre o que minha mãe ria. Boa memória a minha.
Sim, boa memória a minha. Não sei se é muito comum com você, mas comigo esse tipo de reminiscência é rara. Não é todo dia que passo por uma banca de jornal e vejo os personagens da Turma da Mônica correndo dos destroços de um avião numa ilha deserta. Muito menos sob a alcunha que para mim já sugere um sÃmbolo de diversão: LOST.
Lostinho é, como o nome já deixa claro, a versão da Turma para a série Lost. Assim como já ocorreu no passado com Batman, Guerra nas Estrelas e Homem-Aranha, os roteiristas tomam emprestado o que é “quente†(nem é tão mais assim) no momento e adaptam à s historinhas. Só que, no caso do Lost, a idéia seguiu outro rumo. Diferente dos quadrinhos baseados no enredo fantástico de super-heróis ou de lutas do bem contra o mal – com apelo natural para crianças –, as páginas da nova aventura da Turma vêm carregadas de citações e referências para adultos. A começar pela escolha do tema. Lost realmente não é para paciência de qualquer um. Exige uma certa dedicação à trama rocambolesca e disposição com a falta de solução para os mistérios. É um seriado adolescente-adulto, e certamente foge ao perfil do público-padrão da empresa do MaurÃcio de Sousa. E a surpresa ainda se torna maior quando se percebe que o desenho da historinha em si opta por manter, digamos, o storyboard original de Lost. Ao se comparar os primeiros planos do episódio 1 da série com os primeiros quadros da revistinha, nota-se uma similaridade reveladora. É praticamente um quadro a quadro. Do olho em plano fechado, do plano abrindo e o cachorro passando, até chegar finalmente aos destroços do avião. Só que com o (genial) detalhe: a equivalência dos personagens - em vez de Jack, Cebolinha; em vez de Kate, Mônica; em vez de Charlie, Cascão. Até Vincent, o cachorro, ganha um igual: o Bidu.
Sobre o conteúdo da historinha, parece-me quase um desserviço entrar em detalhes. É comparável a contar a um amigo o que aconteceu no episódio de Lost ainda não assistido. Cabe chamar atenção para o Cebolinha roubando todas as cenas com o humor irônico e bobo de sempre e a surpreendente participação do Bugu, com muito mais espaço do que costuma ter quando aparece junto aos quadrinhos do Bidu. Mas também tem metapiada, flashback, referência aos Beatles, a desenhos antigos (inclusive com participação dos primeiros personagens do MaurÃcio de Sousa), a filmes recentes e, certamente, a mais um monte de coisa que eu não peguei nem na primeira, nem na segunda leitura.
E por que ler duas vezes a revistinha? Porque não é toda hora que se faz uma ponte entre passado e presente de modo tão natural e sem realizar força. Aliás, por falar em força, vai aqui uma forçada de barra para me fazer entender: qual foi, por exemplo, o último filme brasileiro que você viu que conseguia aproximar com tanta naturalidade o ontem ao agora? Cito assim, com o risco de em breve me lembrar de outro, um: O ano em que meus pais saÃram de férias. O restante daqueles que vi trata o que já passou com um estranho vÃcio de culpa pelo o que não foi feito, um olhar para trás lamurioso. Consigo pensar em Quase dois irmãos, Cabra cega, Cartola – Música para os olhos e, o mais recente, Batismo de sangue, como exemplos de obras que não decolaram devido, principalmente, à dificuldade latente de pensar com a vista de hoje a época que se propuseram discutir.
Voltando aos quadrinhos, vejo a historinha da Turma como quem vê alguém que não tem medo de arriscar. Ela carrega o imaginário de tantos (a minha memória!), mistura à referência pop de Lost, faz alegoria com outros muitos Ãcones contemporâneos e, tudo isso, sem perder a glaça e o chalme de um Cebolinha. Este Cebolinha, por sua vez, ainda alcança a magia que nem Stanley Kubrick em 2001: Uma odisséia no espaço foi capaz de fazer: ao imitar Jack e botar uma gravata de gente grande, o personagem que troca as letras liga passado e futuro numa elipse de tempo com uma imagem só. Liga minha infância ao meu presente também.
Texto muito bacana. Carregado de saudosimo. Me trouxe boas lembranças. Nunca fui muito de ler Turma da Mônica, mas minha irmã lia e então, lá o nosso quarto era gibi pra todo lado. Muiyo bom cara...
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 27/4/2007 08:06
Pura nostalgia, Thiago. Mas eu sempre achei a Mônica uma chata. Hahaha...
Os outros personagens são legais!
Beleza de leitura.
Ótimo texto, como sempre, Thiago!
Engraçado que quando eu era criança não lia turma da Mônica, preferia o Zé Carioca, o PAto Donald. Comecei a ler Mônica depois dos 10 anos, eu acho.
Já minha filha, de 4, não vê a menor graça nos quadrinhos Disney, só gosta da Mônica.
beijo!
:)
cheguei bem atrasada neste texto (estou tentando voltar para o overmundo mesmo com o meu parco tempo livre), mas adorei. só consegui emitir um sorriso. também adorei 'o ano em que meus pais saÃram de férias' e concordo com as observações; era fã incondicional da turma da mônica (eles e playmobil eram as minhas duas paixões), não de lost. não tive paciência.. hehe. talvez um dia.
abraços!
eu gosto bastante desse encadeamento do texto.
e gera várias dúvidas na relação memória vs construção da personalidade.
grande abraço
achei incrÃvel o desencadear do texto mesmo, e esse convite à memória - até lembrei do proust!
CharlieD · Fortaleza, CE 6/10/2008 13:47
CarÃssimos. Sugiro-lhes a leitura do livro "A Misteriora Chama da Rainha Loana", do Umberto Eco. Tem tudo a ver.
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