O ônibus sai da sede do Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB), no Centro da cidade. Às 16 horas deste sábado, muitos ainda se cruzam sob o sol alaranjando no esquadrinhado das ruas comerciais do bairro mais movimentado de Fortaleza. A porta do meio, de uso exclusivo nos terminais de ônibus, abre-se para os viajantes desta tarde. O ônibus é da mesma espécie daqueles que rasgam a cidade de uma ponta à outra todos os dias, levando e trazendo pessoas por um real e sessenta centavos. Hoje, o trocador não veio e, ao invés do nome de algum terminal como destino, traz grafado com letras pretas em uma placa amarela: Percurso Urbano.
Tomo assento em um dos bancos. Todos os sábados à tarde, um ônibus de linha como este, fretado pelo projeto Percursos Urbanos, sai da sede do CCBNB rumo a algum ponto de Fortaleza, abrindo veredas, remexendo os trajetos pré-determinados do cotidiano, cavucando a memória da cidade, tencionando diferenças. “A gente tenta mostrar como é que essa cultura tá acontecendo, como é que ela tá se manifestando e tentamos fazer com que as pessoas percebam com naturalidade essas diferenças, que elas mergulhem no mundo de outra pessoa sem achar aquilo um absurdoâ€, fala Júlio Lira, 47 anos, articulador da Mediação de Saberes, ONG idealizadora do projeto que desde 2005 é tocado em parceria com o CCBNB.
Hoje, o destino é alguns dos espaços da cidade que serviram como pautas para as reportagens da terceira edição da revista Farol, da Fundação de Cultura, Esporte e Turismo da Prefeitura de Fortaleza. A revista, que se propõe a pautar a polifonia urbana através de um jornalismo narrativo muito ligado a oralidade e a memória de moradores de Fortaleza, esteve nos últimos dias no epicentro de uma polêmica. A foto de uma matéria sobre os cines pornôs no Centro da cidade foi considerada por alguns vereadores pornográfica e o debate moralista lançado.
Essa é a curiosidade de dona Nilde Magalhães, quando chega para mais um percurso urbano. “Eu vim hoje mais pela curiosidade dessa históriaâ€. Desde o começo do ano ela assiste ao pôr do sol de sábado em algum lugar desconhecido da cidade. Conta as histórias com a inquietação de quem não pára em casa. “Eu mesmo sou uma pessoa que há trinta anos moro aqui na capital, mas vim do interior e eu entrei na cidade grande, porque tem gente que mora na cidade grande, mas não entra nela. Eu não vou dizer que conheço a cidade toda não, mas eu gosto que assim quando tem uma coisa nova que inaugura, eu gosto de ir, eu mesma verâ€, apresenta-se.
O espaço da polêmica Nilde não verá. Os cines pornôs não estavam no roteiro do dia. Ouve apenas a jornalista Ethel de Paula, editora-chefe da Farol, relatar e argumentar sobre a questão na fala introdutória que antecede todo percurso. Dali, das cadeiras acolchoadas do teatro do Centro Cultural, direto para as cinzas de plástico do ônibus. No caminho: o Lord Hotel, o Flórida Bar e a Cidade 2000.
Se pegássemos um mapa de Fortaleza e nos aventurássemos em tracejar todos os caminhos percorridos pelo projeto em seus quatro anos de existência, terÃamos que pintar minuciosamente cerca de 320 linhas tortuosas. Umas tantas, em vermelho, mais ou menos a metade, saindo ali mesmo do Centro e se esgueirando pelas esquinas da cidade, cruzando extremos, indo aos centros de Umbanda e Candomblé; aos pontos de referência do rock cearense ou da cultura surf; seguindo pelos jardins da cidade, a religião protestante, a história do teatro cearense; ou mesmo percorrendo os marcos da mentira em Fortaleza. Outras linhas, estas em amarelo, saindo de bairros da periferia rumo à s regiões da cidade onde se concentram os equipamentos culturais, públicos, mas desconhecidos de grande parte da população; ou então, ligando de uma ponta a outra ONGs e associações comunitárias conterrâneas, mas estranhas entre si.
Em sua estrutura atual, o projeto realiza mensalmente cerca de oito percursos divididos em duas propostas diferentes, ambas gratuitas. Uma que acontece, como dito, todos os sábados e leva as pessoas aos mais diversos pontos da cidade, sempre sob a orientação de algum facilitador do tema do percurso. Os temas são discutidos pela equipe da Mediação de Saberes e publicados na programação mensal do CCBNB. A outra versão do Percursos Urbanos segue, na maioria das vezes, o sentido inverso. “Nós vamos na periferia da cidade, articulamos com alguma associação e ao invés do ônibus sair daqui (Centro), ele sai da periferia. Em geral, ele faz o movimento para o centro da cidade, para os equipamentos que as pessoas são excluÃdas, ou então o movimento entre organizações. As organizações muitas vezes se fecham entre si, elas são, à s vezes, paroquiais e a gente faz o trabalho de levar uma instituição pra outra. Um coordenador de uma conversa com o de outra e daà surgem novas idéiasâ€, explica Júlio. Esses percursos acontecem todas as quintas-feiras, são discutidos juntos com as instituições envolvidas e as vagas preenchidas por convite. No outro caso, vai no ônibus quem se inscrever durante a semana que antecede o Percurso.
A programação neste mês de setembro trouxe estampados cinco percursos abertos ao público: Dos mercadores aos mercados (a história de Fortaleza através da história dos mercados da cidade); Jardins de Burle Marx em Fortaleza (visita a alguns espaços verdes em Fortaleza através do olhar de um dos maiores paisagistas nacionais); Três casas, uma novidade (visita às Casas Brasil de Fortaleza, projeto de formação e capacitação em tecnologia aliada à cultura, arte, entretenimento e participação popular.); Pelos caminhos de ferro (percurso pela malha férrea de Fortaleza, dialogando com as memórias dos moradores da cidade); e Cidade Revista, este em que estamos percorrendo, seguindo pela Tristão Gonçalves até parar quase na altura do Beco da Poeira, ainda no Centro.
Ali perto, prostra-se o Lord Hotel. Primeiro edifÃcio de apartamentos da cidade, considerado o mais elegante hotel dos anos 1950. Acuado, o Lord hoje está com todos os pontos comerciais do térreo emparedados. Lá em cima, apenas quatro famÃlias ainda ocupam o lugar. Não fossem os latidos de dois cachorros presos e assustados com os cerca de trinta visitantes inusitados ou então os dois meninos atiçados que correm pelas escadas estreitas com uma bola debaixo do braço, a impressão seria de malassombro.
No começo da década de 1990, o namorado de Rita Vieira costumava levá-la ao restaurante que havia nos últimos andares do prédio para tomar alguns drinks e assistir ao movimento da Praça José de Alencar, próxima dali. “A gente ficava lá, tomava um drink e era bonito e agradável. Agora, ver numa situação dessa, sucateado. Gostaria muito que as autoridades resgatassem essa memóriaâ€, relembra.
A instrumentista cirúrgica trocou as tardes de sábado em frente a televisão pela cidade. “A Globo segura muito a gente. É um cabrestinho. Vai puxando você, vai puxando e você fica viciada. Também é cultura porque fala alguma coisa interessante e tal, mas é muito melhor você conhecer sua cidadeâ€, fala segurando uma pastinha azul sobre as pernas. Dentro, a programação do mês de outubro e um caderninho, confidencial, em que anota o que mais lhe impressiona durante o passeio.
Uma das experiências que antecederam o Percursos Urbanos aconteceu quando Júlio trabalhava em São Paulo com crianças de cortiços. O projeto educacional da Prefeitura da megalópole tinha uma grade flexÃvel. Júlio punha as crianças em ônibus ou metrôs e seguia pelas ruas da cidade. “Uma vez por semana eu saÃa para passear com as crianças e tinha essa coisa de leitura da cidade, de andar e tudo. Isso talvez tenha sido a primeira experiência de como passear é uma coisa ricaâ€, conta.
Em quatro anos, o projeto amadureceu sua proposta, conjugando um olhar crÃtico e diverso sobre o espaço urbano e as polÃticas públicas. “A gente elogia a dispersão. Nós temos que estar indo pra teatro, indo pra cinema, lendo bastante, tendo uma visão ampla das coisas pra poder a gente conseguir formar uma visão abrangente também das coisas. Nossa proposta é polÃtica. A gente ia nos fóruns de movimentos sociais e as pessoas eram as mesmas em todos os fóruns. Nós acreditamos que têm que ser criadas novas formas pra pessoa perceber os problemas da cidade, perceber as dificuldades da cidade e depois agir de acordo com isso. E o Percurso surge também pra isso, como uma forma de agregar e politizar. É uma proposta, antes de tudo, polÃticaâ€, afirma Júlio, cientista social com especialização em Urbanismo, mas, como ele mesmo enfatiza, com uma formação "dispersa".
Nos percursos, tenta-se estabelecer o diálogo entre o facilitador que conduz o roteiro e os “passageiros†do ônibus, sempre de linha, para não ser city tour. Como conceitua Júlio, “para as pessoas que estão dentro do ônibus não se sentirem superiores a cidade, para que as pessoas possam virar a cara de um lado pro outro, possam dialogar entre siâ€.
O microfone, ligado a uma caixa de som posta no fundo do ônibus, já passou pelas mais diversas mãos. Exemplo é o primeiro percurso realizado em que o professor do Curso de Geografia da Universidade Federal do Ceará, José Borzachiello, e o rapper Carioca, do grupo Costa a Costa, cruzam a orla de Fortaleza da Barra do Ceará até o Morro de Santa Teresinha, na outra ponta da cidade. “Enquanto o Zé (Borzachiello) dizia um dado técnico, aà o rapper dizia assim: ‘é aqui que minha irmã se prostitui...’ E os dois dialogaram muito bem, nessas duas perspectivasâ€, reconstrói Júlio.
No final de 2006, a Mediação de Saberes foi convidada para apresentar a experiência dos Percursos Urbanos em um encontro latino-americano de iniciativas de artistas que aconteceu em Buenos Aires promovido pelo Proyecto Trama. Do encontro surgiram alguns diálogo como o com a Ediciones Vox, uma iniciativa que mescla intervenções culturais, literatura e artes visuais na Argentina. Um dos integrantes já veio duas vezes a Fortaleza, participou de vários percursos. O intercâmbio continua até hoje, entre as iniciativas está até uma coletânea bilÃngüe de poesia contemporânea de Fortaleza.
Nilde também ficou impressionada com o estado do Lord Hotel. “Nunca tinha visto ambiente igual. Isso tá pior que favelaâ€. Ela, com seus 64 anos, não pode passar por grandes emoções. O médico a proibiu de ir a velórios por razão de sua labirintite. O tratamento da doença e a personalidade inquieta levam-na à reuniões de vários grupos de idosos da cidade e até ao Grupo de Apoio aos Doentes Reumáticos do Ceará, mesmo sem ela ou algum parente próximo ter a doença.
Como suas pernas finas e olhos pequenos, entra na cidade. “Entrar na cidade é você não ficar alienado com o que acontece com a cidade. Não tudo, porque não tem como a gente absorver tudo, né? Eu vou em grupo de idoso, eu vou em num sei o quê. Eu vou no grupo da terceira idade do Shopping Benfica, na última quinta-feira do mês. Ontem eu fui lá na FIC (Faculdade Integrada do Ceará) que teve uma festa pro idoso e hoje eu já to indo aquiâ€, diz orgulhosa.
A nutricionista, nascida em Iracema, interior do Ceará, faz parte de um grupo de cerca de dez pessoas que estão no CCBNB praticamente todos os sábados. “Você vai ter uma dez ou quinze pessoas que fazem uma espécie de curso de Fortaleza. Elas estão em quase todos os percursos, essas pessoas estão meio que viciadas na cidadeâ€, diz Júlio.
No Flórida Bar, segunda parada no Centro, tradicional reduto da boemia fortalezense, o assunto em uma das mesas foi o passeio de trem de sábado passado.
— Tu foste o de sábado?
— Não...
— Foi ótimo.
O ônibus segue para a Cidade 2000, cortando boa parte da Aldeota, centro econômico de Fortaleza, até chegar ao conjunto habitacional inaugurado em 1971 e que hoje virou um bairro com quase oito mil moradores. A noite já se aproxima. A pracinha do bairro, conhecida pelo movimento intenso, ainda está vazia, mas pode-se comprar crepe em uma banquinha armada ainda com sol. Júlio provoca: “Eu quero que cada um bata quatro fotografias mentaisâ€. Memória.
Antes do percurso, eu havia perguntado, depois de uma deixa, para o Júlio Lira: Onde está a alma de Fortaleza? E ele respondeu: “Na memória da cidade, no que as pessoas guardam. Essa memória está guardada em algumas pessoas, em alguns lugares, e só quando ela é transmitida é que essa alma é compartilhada. Eu não tô falando da grande memória, não tô falando do grande patrimônio histórico, isso também, mas tô falando da pequena memória. Tô falando de uma mulher que fala que quando ela era criança, quando ia pra escola atravessava correndo o Passeio Público, sabe? Na hora que essa pequena memória é compartilhada, o Passeio Público não é mais um monumento histórico. É uma criança correndo através dele, entrando por um portão e saindo noutro.â€
Oi, Pedro... Tem algum link desse fotógrafo Bruno Macedo? Fiquei curioso, as fotos são muito boas.
Felipe Obrer · Florianópolis, SC 7/10/2007 15:48
Pedro, excelente contribuição. Estive com você neste percurso...
estou preparando uma reportagem, ela sai logo logo. Tenho uma prima formada em Turismo e que está se especializando em Históra, Patrimonio cultural e Tursimo, enfim... fui com ela um dia desses, percorrer os prédios históricos do antigo bairro da Cidade Alta aqui em Natal. O resultado desta peregrinação estou transformando num roteiro narrativo como o teu.
Um abraço.
Pedro, esse projeto tem uma simplicidade que me encanta. Cursos andarilhos assim deveriam existir em todas as cidades grandes, tomara que sirva de inspiração para projetos semelhantes.
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 8/10/2007 13:27
Obrer, o Bruno tem um fotolog: http://wwwbrunomacedo.blogspot.com/
Helena, o Percursos Urbanos é um projeto tão interessante que chega a constranger algumas pessoas que adoram a proposta, mas não a aproveitam. Eu, inclusive, sou um desses. Vou tentar cada vez mais percorrer curioso Fortaleza nas tarde de sábado.
Vamos caminhar, pegar as coisas com o corpo. Cada vez eu tenho mais certeza de que isso é fundamental para a gente viver melhor, seja entre os outros, seja entre as armações de concreto das cidades.
Vou esperar o relato Filipe.
A informação do 6º parágrafo é admirável mesmo.
O projeto é muito bom. Participei apenas de um percurso, mas gostei bastante. Bom também da idéia ter se espalhado no encontro em Buenos Aires. A auto-consciência sobre o(s) espaço(s) urbano(s) tem(/têm) muito a ganhar.
Parebéns pela matéria, Pedro. Por aqui estamos colhendo boa repercussão. Esperamos contar com presença e contribuições suas e de seus leitores em nossos próximos roteiros. Abraço!
mediação · Fortaleza, CE 9/10/2007 02:22Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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