O jornal "O Globo" publicou uma matéria sobre a reforma da lei de direitos autorais, assunto que certamente está na pauta do ano de 2009. A matéria (que ficou muito boa) foi feita pela jornalista Elis Monteiro e pode ser lida através do seguinte link. Nela, há uma discussão sobre a Carta de São Paulo, documento assinado por uma série de acadêmicos, que estabelece direterizes para a reforma do direito autoral, especialmente em vista do interesse público. No processo de realização da matéria, acabei concedendo uma entrevista para o jornal, com base nas perguntas formuladas pela Elis.
Como o assunto é interessante e está em voga, achei que seria uma boa oportunidade para publicar a Ãntegra das minhas respostas aqui no Overmundo, como forma de dar continuidade à conversa.
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1) De acordo com a "Carta de São Paulo", há necessidade de mudanças na Lei de Direitos Autorais. Você concorda? Acha que ela está em desacordo com os novos rumos da sociedade da informação?
A lei de direitos autorais no Brasil é uma das mais restritivas do mundo. Isso é um desafio para a produção cultural e cientÃfica no século XXI. O direito de citação, isto é, o direito de utilizar partes de outras obras (sempre com a identificação da fonte original) é uma necessidade fundamental da produção do conhecimento e da cultura. Quando ele é exercido no papel, não há grandes problemas. A questão surge nessa nova geração de criadores que são totalmente multimÃdia. É fundamental garantir os mesmos direitos de citação válidos para textos também para as criações multimÃdia, assegurando a possibilidade de usar trechos de filmes, sons, músicas, imagens em novos trabalhos. Esse é o primeiro passo para a geração de um produção cultural e cientÃfica que possa efetivamente dar conta da complexidade da informação e das linguagens do século XXI. E para isso, a lei de direitos autorais precisa ser modificada para assegurar de forma clara e precisa esses direitos, o que não acontece hoje.
2) A internet mudou a forma como os autores controlam suas obras. Há uma forma de harmonizar o relacionamento entre quem consome uma obra e aquele que a cria? Ou a internet, por suas caracterÃsticas anárquicas, não aceitaria uma relação de respeito à obra?
Um dos desafios atuais mais importantes é a reinvenção dos sistemas de autoria, reputação e certificação. A internet está reorganizando essas idéias, mas não vai acabar com elas. Nesse sentido, é preciso lembrar que a barreria entre quem consome o conhecimento e a cultural que quem os produz está se tornando cada vez menor (é o chamado "prosumidor", o consumidor que produz, para usar o termo que Alvin Toffler inventou ainda na década de 70). Essa confusão entre produtor/consumidor do conhecimento demanda outras formas de se lidar com a autoria. Nossa lei de direitos autorais ainda não está preparada para lidar com a figura do "prosumidor", que se tornou central neste novo séculto.
3) A Carta pede, em seu primeiro tópico, "permissão da cópia integral sem finalidade de lucro". Mas como é possÃvel controlar isso, uma vez que a própria Carta pede o não uso de ferramentas de cerceamento de liberdade, como o uso de ferramentas de DRM?
É curioso que o que a Carta pede nada mais é do que o retorno à lei de direitos autorais que vigorou no Brasil de 1973 a 1998. A antiga lei de direitos autorais que vigorou nesse perÃodo permitia expressamente a cópia integral sem finalidade de lucro. Quando a lei mudou em 1998, bem quando a internet e a tecnologia digital se espalhavam no Brasil, houve um retrocesso. Esse direito de "cópia privada" foi simplemente revogado. A lei passou a permitir apenas a cópia de "pequeno trecho", para uso privado, sem intuito de lucro e quando a cópia é feita pelo próprio copista. Como não há definição do que vem a ser um "pequeno trecho", passou a reinar uma grande confusão na interpretação dos limites da lei. Isso distanciou a lei brasileira da realidade. Por exemplo, pelo texto da lei, não é permitido copiar um cd adquirido legitimamente em uma loja para o seu tocador de mp3 (como o iPod). Ou transferir as músicas de um cd para o próprio computador. Isso torna a lei de direitos autorais distante da realidade, abalando sua legitimidade.
4) Há como a Lei definir o que é uso "comercial" das obras e uso "não comercial"?
Há várias tentativas de se fazer isso. A mais avançada é conduzida pelo Creative Commons, que deu inÃcio a uma pesquisa global, envolvendo mais de 40 paÃses, sobre o conceito de "uso não comercial". Os resultados dessa pesquisa serão divulgados em breve. Atualmente existe um questionário que pode ser acessado aqui, que permite a participação de qualquer pessoa no esforço de se encontrar uma definição para esse termo: http://creativecommons.org/weblog/entry/11045
5) Um ponto polêmico é a inclusão, na carta, de pedido de "permissão da conversão de formatos e suportes das obras protegidas, de forma que instituições possam armazenar as obras em diferentes dispositivos, assim como os usuários comuns. Acha isso viável? Como manter o controle das cópias, que acabam indo parar na internet (vide a quantidade de livros, por exemplo,que ainda não caÃram no domÃnio público e estão disponÃveis para download em qualquer site de P2P...)?
Existe uma lacuna na lei brasileira. PaÃses como a França possuem a chamada "exceção cultural", que permite aos arquivos, aos museus da imagem e do som e outras instituições semelhantes realizarem a digitalização de obras para fins de arquivo e consulta. A nossa legislação não possui nada semelhante. Com isso, o resultado é que existe um imenso número de obras deteriorando-se juntamente com seu suporte fÃsico, que ficam impedidas de serem no mÃnimo digitalizadas. A situação que existe hoje é, assim, paradoxal. Enquanto as redes de P2P e sites como o YouTube acabam oferecendo um enorme número de obras protegidas por direito autoral sem a autorização dos seus titulares, instituições de interesse público como arquivos e outras iniciativas sem fins comerciais ficam impedidos de fazer o mesmo, pois seriam alvo fácil de processos por violação de direitos autorais.
6) A Carta pede redução do prazo de proteção do direito de 70 anos para 50 anos. Como isso impactará a publicação de obras na internet? Esses 20 anos fazem mesmo muita diferença?
O prazo de proteção do direito autoral no Brasil é excessivamente longo. Considerando que a expectativa de vida no paÃs é hoje de 71 anos, isso significa que o prazo tem um potencial de proteção que na maioria absoluta dos casos irá durar no mÃnimo um século. A função do direito autoral é incentivar a criação e permitir o tempo de exploração exclusiva necessário para que se recupere economicamente o investimento feito na criação da obra. Ninguém irá deixar de criar se o prazo for reduzido de 70 para 50 anos após a morte do autor. Esse prazo é mais do que suficiente para isso. Ao mesmo tempo, esses 20 anos certamente farão uma diferença significativa, pois irão reduzir o número das chamadas "obras órfãs", que são aquelas cujos autores não recebem qualquer proveito econômico, apesar do prazo de proteção autoral continuar valendo e com isso permanecer a impossibilidade de qualquer uso criativo ou de arquivo e preservação da obra. É importante lembrar que uma pesquisa feita nos Estados Unidos mostrou que apenas 2% das obras com mais de 55 anos de sua publicação retêm qualquer valor econômico. Isso indica que 98% das obras se tornam "órfãs" depois de 55 anos de sua publicação. A redução do prazo tornaria mais próxima a integração dessas obras ao patrimônio comum, permitindo novos usos ou no mÃnimo seu arquivamento para fins de preservação.
7) Outro ponto polêmico é o item 7 - "Remoção do artigo que proÃbe o contorno de travas anti-cópia e a introdução de uma proibição da inserção em equipamentos eletrônicos de qualquer dispositivo anti-cópia (chamados de DRM e TPM) que impeça aos usuários de exercer qualquer direito legal de que sejam titulares, como os direitos de acesso previstos nas limitações e exceções ao direito autoral, e a visualização e cópia de obras cujos direitos autorais já se extinguiram ou foram renunciados por seu titular". Você concorda com o item?
Sou favorável à remoção do artigo que proÃbe o contorno de travas anti-cópias (artigo 107 da atual lei de direitos autorais) e também sou favorável a criação de um artigo que exija que as travas tecnológicas empregadas se tornem compatÃveis com os direitos de uso legÃtimo assegurados pela legislação (as chamadas "exceções e limitações" ao direito autoral). O que acontece hoje é que as travas tecnológicas acabam por revogar na prática todos os direitos de acesso concedidos pela lei e que ao meu ver são direitos fundamentais. Um exemplo é o direito de citação. Como professor, posso querer extrair um trecho de um DVD para exibir em sala de aula, dentro de uma apresentação sobre outros temas. Mesmo que a lei me conceda esse direito, a trava digital poderá impedi-lo na prática, já que cotornar a mesma está proibido (proibição esta feita pelo artigo 107). Além disso, as travas tecnológicas trazem um enorme problema para o arquivamento de obras. Em primeiro lugar porque elas continuam valendo mesmo quando o prazo do direito autoral terminar. E mais importante, porque os formatos empregados nessas travas tornam-se rapidamente obsoletos. Em dez anos, é possÃvel que a maioria dos sistemas capazes de ler os dispositivos protegidos pelas travas tecnológicas de hoje tenha saÃdo de circulação ou se tornem dificilmente encontráveis.
8) Como você acha que entra a questão do copyleft e do Creative Commons no pedido de revisão da Lei? Eles são uma saÃda para o impasse?
O papel do Creative Commons é importante, ainda que de forma indireta, para esse debate. O que acontece é que o Creative Commons, em seus 5 anos de existência, demonstrou na prática duas lições importantes. A primeira é a necessidade de simplificação dos processos de licenciamento de direitos autorais. Nesse sentido, hoje em dia, tentar obter autorização para usar qualquer obra, mesmo que para finalidades de interesse público ou usos não-comerciais, é praticamente um inferno. O dispêndio de tempo e dinheiro é imenso. Em termos econômicos, isso significa que há um elevadÃssimo "custo de transação" para o direito autoral, o que faz com que o sistema todo se torne ineficiente. O Creative Commons demonstrou que é possÃvel simplificar isso, criando um sistema de licenciamento que é rápido, intuitivo, acessÃvel a qualquer pessoa e que indica de modo claro o que pode ou não ser feito com a criação intelectual. A segunda lição do Creative Commons é que é possÃvel trabalhar com novos modelos de negócio que não dependem da necessidade de escassez gerada pelo direito autoral. Assim, é possÃvel ser viável economicamente com uma economia da abundância e não apenas com uma economia da escassez. Acho que essas duas lições podem ser úteis ao se pensar a reforma da lei de direitos autorais.
9) A internet já provou, à s gravadoras e editoras de livros, que o controle é quase impossÃvel. Muitas acabaram se rendendo e, hoje, até cresceu o movimento de adesão destas à distribuição (paga) via internet, em alguns casos. E gratuitas, em outros. A internet acaba criando suas próprias regras?
O que aconteceu na verdade foi uma mudança muito mais sutil e interessante. No século XX inteiro, prevalecia basicamente um único modelo de negócios para a produção da cultura, do conhecimento e da informação. Em geral, o criador intelectual cedia a totalidade dos seus direitos para um intermediário, que por sua vez explorava economicamente a obra, distribuindo-a e repartindo os resultados. Atualmente, em vez de existir basicamente apenas um modelo de negócios, existem inúmeros. O que aconteceu não foi a destruição do modelo anterior do século XX, que continua existindo, mas teve seu papel seu papel reduzido. O que ocorreu foi o surgimento de várias outras possibilidades de exploração de obras intelectuais, várias matizes e nuances de licenciamento e gestão da obra, que deram inÃcio a novos modelos de negócio.
10) Por último, não é necessária uma campanha de conscientização dos internautas de respeito à obra? Porque há uma cultura, ainda mais aqui no Brasil, de que o que está na rede é de domÃnio público. Como isso é em comparação com outros paÃses? O desrespeito ao direito de autor é maior aqui?
Esse é talvez o principal desafio daqui para frente. Reinventar a idéia de integridade, reputação e autoria. Já há sinais de que essas possibilidades reinvenção já se materializam. Um exemplo é a Wikipedia, em que a autoria se manifesta nos fóruns de discussão subjacentes a cada verbete, mas não no verbete em si. Mas isso é apenas um pequeno passo e apenas uma pequena dimensão do problema. O que é importante é o surgimento de uma nova ética, de preferência uma ética discursiva e baseada em soft rules, que são voluntariamente compartilhadas pelas diversas comunidades da rede. Vejo isso acontecendo em um ou outro site, mas não de forma geral. O desafio maior é que será muito difÃcil reestabelecer essas regras de cima para baixo. Ou participamos na reinvenção delas, ou a chance é que a anarquia irá durar até que algo muito grave aconteça e a própria arquitetura da rede precise ser revista, o que não acho que seja algo positivo.
Saudações! O Creative Commons é uma alternativa, o autor é que tem que ter o controle total de sua obra. É preciso questionar se as muanças não irão favorecer as grandes Editoras e Gravadoras, acredito que qualquer mudança será válida se colocar o autor como o centro, se o bem estar do mesmo for atendido, e isso é que tem que ver se irá acontecer. Chega de escravidão autoral! Eu como autor quero a minha liberdade!
Muito bom o texto de Ronaldo Lemos.
Mas falta saber se a pirataria vai ser combatida, de que adianta ficar mudando leis se estas não são cumpridas. Em frente ao Correios de Paulicéia, SP é vendido CD e DVD piratas e nada acontece, eu não consigo produzir um CD mais barato do que os CDs piratas, smplesmente porque eu faço legalizado, então para que sere a lei dos direitos autorais se de fato não é aplicda e não tem como fazer a aplicação da mesma!
Volto a repetir, como autor quero a minha liberdade garantida para veicular e comercializar as minhas obras.
eu quase desisti de tentar entender o que a legislação fala sobre o uso de samplers na música (assunto que, na função de produtor de rap, fala diretamente aos meus interesses).
é muito difÃcil levantar qualquer informação que fuja do princÃpio da negação: sampler? é ilegal, não faça!
curioso é esse descompasso entre a lei e a realidade. todo mundo que faz rap sampleia. somos todos ilegais. mas, e ai?
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