Praia do Aventureiro: Conflitos e disputas

Anonimo - Internet
Mapa da Ilha Grande
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Guto Mello · Niterói, RJ
28/11/2007 · 25 · 5
 

A praia do Aventureiro: “ Uma introdução”

A Vila de pescadores do Aventureiro fica na parte sudoeste da Ilha Grande, limitada entre as serras da Mata Atlântica e do Oceano Atlântico. Está contida na Reserva Biológica Estadual da Praia do Sul, criada em 1981 e que inclui o Parque Marinho do Aventureiro, as praias do Demo, do Sul e do Leste, além de duas lagoas em meio a um imenso mangue, habitadas por lontras, tainhas, robalos e camarões.
Sua paisagem é riquíssima em belezas naturais que vão desde as belas montanhas em forma de anfiteatro aos mirantes e praias de transparência impressionante.A praia do aventureiro é uma praia de difícil acesso, quando o mar está de ressaca. Nessas circunstâncias, o único jeito para se chegar no paraíso é caminhando a partir da Praia de Provetá, tendo como recompensa estonteantes paisagens que nos fazem esquecer o cansaço da caminhada. A praia do aventureiro apresenta 600 metros de areia fina e prateada, fundo raso e consistente, água límpida e mar agitado.
A praia do Aventureiro está classificada entre as mais lindas praias Brasileiras (segundo as principais revistas de turismo) e possui 54 construções, 42 famílias aproximadamente de 150 a 170 pessoas. Agrega uma modesta vila de pescadores que, trabalha em torno do turismo. Não possui pousada nem estrutura completa para receber os turistas mas, há quartos simples e limpos que são alugados por muitos moradores. Os quintais das casas de pescadores também são alugados para a prática do camping com banheiros de água fria.
A principal atração da Praia do Aventureiro fica por conta do coqueiro mais fotografado do Brasil (o coqueiro deitado), como é conhecido pelos turistas que visitam este pedacinho do paraíso. Ele é a principal referência quando se trata do Aventureiro.
Outra atração desta vila de pescadores é a Igreja de Santa Cruz, apesar de quase não haver missas, ela é um marco importante na história da Colonização Portuguesa na Ilha Grande. A praia do Aventureiro é de uma beleza sem igual, o visitante tem uma visão privilegiada da natureza.


A tutela ambiental: “ As reservas biológicas como mecanismo de controle estatal”

A partir da consolidação do Estado Nacional ocorre uma re-apropriação de todo território nacional. Este passa a ser visto por diferentes concepções. O Estado expande sua área de influência e poder e constrói uma relação de dominação, com o território agora incorporado, baseado na tutela. No caso da Ilha Grande, especificamente da praia do Aventureiro a produção de uma nova concepção do espaço fica clara. Até os anos 70, aquela área era um local isolado e de pouca importância, principalmente devido ao fato de lá existir um presídio. Com a construção da rodovia Rio - Santos já em meados da década de 70 e com a demolição do presídio o local vai aos poucos sendo re-apropriado e ganha uma nova conotação, agora mais positiva, ligada ao turismo. Turismo este que seria o “consumo” da paisagem, tida agora como exuberante, paradisíaca.
A natureza vai ganhando uma representação idealizada e romântica fazendo desta forma com que o território da Ilha Grande passe a ser valorizado. Ou seja, ocorre uma fetichização do espaço pelo Estado. Não só a natureza como também a população passa a ser representados de forma exótica. E a partir deste momento cria-se a necessidade de preservar e proteger aquele local. No entanto, é preciso ressaltar que tal necessidade é criada por grupos urbanos, ou seja, por pessoas que não estão inseridas naquele meio, que são “de fora”. Este constitui o principal ponto da questão: são os grupos humanos que estão “de fora” que atribuem novos valores àquele espaço.O Estado se re-apropria das categorias “caiçaras” e “populações tradicionais”, que até então eram vistas negativamente por estarem associadas à idéia de atraso e as utiliza como estratégia política para construir o ideal de preservação daquele local. Neste contexto, tais categorias passam a ser valorizadas, pautadas na idéia de que se deve preservar a cultura “tradicional”. É importante notar como o Estado cria o que seria o “tradicional”.
Assim tanto o espaço físico, no caso da natureza que antes também não era vista positivamente por estar ligada à idéia de selvageria, ou local onde vivem os selvagens, inclusive para os presidiários que lá habitavam, ela era tida como um obstáculo as suas tentativas de fuga, quanto o espaço social foram construídos pelo Estado. Por isso, os Estados - nações estão sempre ligados às idéias de poder, dominação, colonização do território.
No entanto, o Estado acabou por criar uma relação paradoxal no momento em que resolveu transformar a praia do Aventureiro em Reserva Biológica. Ao introduzir uma necessidade que é urbana de preservar o meio ambiente, o Estado fez com que a população que lá residiam passasse para uma situação de ilegalidade, na medida em que uma Reserva pressuporia uma separação de homem da natureza, pois enquanto Reserva a natureza daquele local deve se tornar “intocada”, sem nenhuma intervenção humana. Porém a população local continuou a habitar aquela área, se tornando “anti-social” (no sentido de prejudicial) em relação ao meio ambiente. “Como Reserva Biológica é uma unidade de preservação integral, e que, portanto, não admite presença humana, criou-se uma situação de ocupação de terra contraditória à lei”. (pg.43) Tal situação permanece sem solução, pois a área se legitimou como Unidade de Conservação e a população local ainda permanece na Ilha.
Pode-se traçar um paralelo com autores como Manuel Correia de Andrade que em seu texto “Territorialidades, desterritorialidades, novas territorialidades: os limites do poder nacional e do poder local” procura apontar a íntima relação existente entre território e poder. Como a idéia de poder está diretamente ligada à idéia de Estado, ele também estabelece a ligação entre território e Estado, na qual o Estado exerce poder, controle sobre o território. Exercendo poder sobre o território, o Estado acaba o construindo, como exemplificado no caso da Ilha Grande.
Assim como no texto de Manuel Correia de Andrade, Marcelo José Lopes de Souza no texto “O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento” também procura analisar o conceito de território a partir das relações de poder que nele são estabelecidas e que ele próprio estabelece. Desta forma, o autor define território como essencialmente um instrumento de exercício de poder. Território está sempre ligado à idéia de “território nacional”, que por sua vez está ligado à idéia de Estado, este aparece como gestor do território nacional. O caso da Ilha Grande, também pode ser “encaixado” aqui, na medida em que em seu território relações de poder entre Estado e população local são estabelecidas.


O processo judicial: “ A criação da reserva biológica da praia do Sul”


No terceiro capítulo de sua dissertação de mestrado, Gustavo Villela Lima da Costa busca analisar o discurso empregado no processo Judicial ambiental realizado para a criação da Reserva Biológica da Praia do Sul, na Ilha Grande. Este processo judicial não diz respeito apenas às regras de utilização do espaço mencionado acima, mas faz parte de um empenho direcionado a diversas outras áreas. Assim, através da análise e interpretação de leis, o autor busca compreender a significação dos vocabulários empregados e das categorias usadas para tornar legítimas certas ações. A Constituição Federal e os termos de suas leis dizem respeito à normatização de condutas e idéias, são a expressão máxima das crenças e paradigmas sociais que são a origem da criação de regras institucionalizadas. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) prevê regulamentos com relação às Reservas Biológicas, categoria na qual se enquadra a Vila do Aventureiro. Segundo as leis do SNUC, nestes locais é proibida a ocupação humana, sendo unidades de proteção integral. A visitação pública também é proibida, sendo apenas permitido o ingresso de intelectuais com objetivos acadêmicos e de pesquisa. Este ponto exemplifica a questão da separação entre natureza e homem, nas sociedades modernas. “O mito da natureza intocada”, na definição de Diegues (1996), que encontra veracidade justamente na parcela da sociedade que vive nos centros mais urbanizados, acaba por incitar mecanismos de proteção ambiental que excluem o homem do espaço a ser preservado. As Reservas Biológicas são criadas, portanto, segundo lógicas que não dizem respeito às populações que ali já habitavam. Estas lógicas são expressas e legitimadas através da Ciência, e a presença do cientista como representante da natureza é visível nos próprios termos das leis do SNUC, já que, como já mencionado anteriormente, a presença de pesquisadores é permitida nas Reservas Biológicas. A noção de paisagem também é extremamente importante para a definição das áreas a serem preservadas. Através do julgamento estético, escolhe-se o que deve permanecer “inalterado”. A própria legislação brasileira estabelece diferenças de status (segundo a beleza do local) que são expressas na hierarquização de alguns ecossistemas considerados como patrimônios nacionais. Tal é o caso da mata Atlântica e da Amazônia, em oposição ao Cerrado e à Caatinga (status inferior).
Gustavo nos chama a atenção para um outro problema com relação à legislação ambiental, que se estende a diversos outros países. Segundo Lynda Warren, o aumento da importância do meio ambiente na agenda internacional não foi acompanhado de um aumento do conhecimento ambiental por parte dos que fazem as leis e políticas públicas de proteção à natureza. Os conceitos do Direito Ambiental são baseados em conceitos científicos ( provenientes de paradigmas) interpretados por não-cientistas, resultando no questionamento da validade do conteúdo das leis ou a aceitação dos dados científicos sem qualquer questionamento. Isto nos lembra o argumento de Bourdieu de que freqüentemente a autoridade científica é utilizada para fundamentar racionalmente divisões arbitrárias a serem impostas. (1989)
Uma outra questão importante é o papel do campo jurídico na criação da realidade. O direto atribui aos agentes sociais certas identidades que são socialmente reconhecidas. Este é o caso da criação da categoria “sociedades tradicionais”, que são definidas como mantenedoras dos recursos materiais em equilíbrio no meio ambiente, utilizando a natureza de forma sustentável. Estas sociedades também são vistas como tendo um modo de vida equilibrado com a natureza através da manutenção de certo ‘capital cultural’, que diz respeito a técnicas não destrutivas de exploração da terra. Muitas vezes, a presença destas comunidades na terra a ser preservada é permitida justamente com alusão a este modo de vida não-predatório. O que ocorreu no caso da população do Aventureiro, segundo a definição de Parry Scott, foi a “criminalização do nativo”. A população deveria ser remanejada ou indenizada num prazo de 5 anos, sendo proibida a expulsão dos moradores após este prazo. Outra alternativa seria enquadrar a reserva em questão na categoria de Reserva Extrativista,o que, segundo o então subsecretário adjunto de meio ambiente do Estado do Rio de Janeiro, estava sendo realizado com a elaboração de um projeto de lei que visava tal adequação (em 2003). Como o remanejamento não ocorreu, a população passou a viver sob leis desconhecidas, sendo as ifringências a estas leis punidas em menor ou maior grau pelos funcionários da FEEMA. O que ocorre, é que o status legal de classificação desta reserva está em desacordo com a realidade lá observada. Além disso, a imagem dos nativos é julgada de acordo com regras que foram formuladas num processo contínuo de alienação da dinâmica interna do grupo, que muitas vezes é dito como não mais tradicional, de uma forma negativa. Contudo, segundo Raymond Firth, que analisou os processos de mudança social em sociedades camponesas, as metamorfoses são resultado da interação social com outros grupos, parecendo-nos, portanto absurdo a condenação dos nativos por parte de grupos que não estão ‘de fora’ neste quadro de transição.
Há um trecho deste capítulo onde o autor expõe a seguinte frase de um de seus informantes, com relação à chegada da televisão no Aventureiro: ‘o mundo chegou ao Aventureiro. E o que é que esses caras querem? Que a gente volte pros tempos difíceis?’(pp. 78) Esta passagem nos remete novamente ao estudo de Raymond Firth sobre as mudanças ocorridas em sociedades camponesas – ou tradicionais. Segundo este autor, os camponeses adquirem bens materiais que passam a desempenhar papéis importantes nas atividades diárias por eles desempenhadas. Eles vêm para substituir formas materiais utilizadas antes, passando a haver a sensação de necessidade desses bens. Em muitos casos, o objeto sofre uma resignificação, não só os da cidade, mas também os do campo. A questão é que a responsabilização pelas mudanças vistas como promovedoras de aculturação – segundo os termos colocados por um dos fiscais da FEEMA – é direcionada, muitas vezes, às populações locais, como o caso da Vila do Aventureiro. Uma análise ‘justa’ verificaria que as cidades e os agentes sociais do meio urbano desempenham um papel tão central nas mudanças quanto os agentes sociais que as vivem.Além disto, as próprias imposições legislativas contribuem para a deterioração da antiga forma de vida da população da Vila do Aventureiro. Como é proibida a construção de novas moradias no local, há a aglomeração de muitas pessoas numa unidade familiar. A antiga tradição de construção de moradias no território familiar é agora sujeita à fiscalização e multas ambientais. Por isso, a FEEMA é mal vista pelos moradores, que freqüentemente aludem à questão de já estarem ocupando a terra no momento da construção da reserva. Este panorama de disputas ideológicas com relação à utilização da terra gerou muitas vezes a falta de punição por parte dos fiscais da FEEMA, com o intuito de manter uma boa relação com os moradores. O que muitas vezes ocorre nestes casos é a utilização de um aparato legal chamado Accountability Horizontal, Nos termos definidos por Guilhermo O`Donnel (1998). O Ministério Público é acionado para punir os mandatários que fazem ‘vista grossa’ às infringências às leis cometidas pelos moradores. A crença na eficácia da atuação do Ministério Público fica clara ao analisar--se os discursos de oficiais da FEEMA e outras instituições de proteção ao meio ambiente. No entanto, segundo o autor, a neutralidade da atuação deste órgão - que deveria defender os interesses difusos da sociedade civil – é questionável. Os funcionários do Ministério Público estão imbricados numa rede de relações interpessoais, o que compromete a neutralidade de atuação dos procuradores. Além disso, estes ‘interesses difusos’ dizem respeito a certas camadas sociais que dispõem de um diferencial de poder, não sendo tão difusos assim, e estando em nítido contraste com os interesses internos da sociedade local.

Um importante fator de mudança na organização da população da Vila do Aventureiro foi a criação de uma associação de moradores. Em 1998, diante da coação judicial realizada por órgãos ambientalistas, já se articulava a criação de uma associação, que se consolidou em 2000, após a instauração do processo judicial. Segundo a ex-presidente da associação, no início não havia pessoas ‘de fora’, mas ao desenrolar-se o processo judicial, obtiveram ajuda de professores e alunos da UERJ e da ONG SAPÊ, que atua há mais de 25 anos na região. A associação tem utilizado desde então um discurso que tenta valorizar o papel dos moradores na conservação da paisagem do local, buscando adequar as reivindicações sociais às novas demandas ambientais. Além da questão da posse legal das terras, a AMAV (associação de moradores do Aventureiro) tem tido novas preocupações, tais como a exigência de maior segurança, coleta de lixo, instalação de luz elétrica, telefone, médicos, etc. A AMAV estabeleceu um novo canal legítimo de disputas e participação popular, representando uma mudança contrária ao típico assistencialismo do Estado brasileiro às populações. Esta mudança obteve a ajuda de intelectuais formados em universidades, que intervêm como novos mediadores, mesmo que indiretamente, entre o Estado e a população local.

Finalmente, o autor cita Mario Fucks para elucidar o privilégio dado ao Estado e às classes média e alta com relação à definição do que é danoso ao meio ambiente e o que deve ser feito para sua preservação. Este autor defende que a heterogeneidade social brasileira agrava o desencontro entre os valores universais das leis ambientais e os interesses de grupos específicos. Assim, não circulam diferentes versões sobre as questões ambientais no debate público, criando-se uma restrição da disputa ao campo simbólico (sem a consideração de questões práticas, como as disputas geradas por leis incoerentes com a realidade observada em dado local), e concentrando as questões sob a visão de uma pequena parcela da sociedade.


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Guto Mello
 

Galera esse texto foi uma produção conjunta de quatro pessoas ... Eu, Bárbara,Camila e Yuli

Guto Mello · Niterói, RJ 26/11/2007 11:42
1 pessoa achou til · sua opinio: subir
Guto Mello
 

Viva o Copyleft !!!

Guto Mello · Niterói, RJ 26/11/2007 11:43
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Malue
 

Muito bom, se senti nesta ilha.

Malue · Gurupi, TO 28/11/2007 18:58
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Barbara Santos
 

Guto Mello
Gostaria de informá-lo que parte deste texto foi retirado do site ilhagrande.org
Lembramos que a reprodução parcial ou completa possui direitos reservados.
Favor consultar seu colaboradores e colocar os créditos do texto para os verdadeiros autores.
Atenciosamente
Barbara Santos
www.ilhagrande.org

Barbara Santos · Rio de Janeiro, RJ 26/1/2008 14:41
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Grotti
 

Estive na Praia nesse final de semana passado. Ainda não a conhecia e fui a convite de um amigo. simplesmente me fez parar e rever todos meus conceitos e universo. É necessário fazer-se algo em função da comunidade Aventureiro.Não sei ainda como, mas já estou pesquisando por aqui... Posso dizer com toda certeza que essa comunidade nos ensina, com grande sabedoria, como o ser humano pode conviver com a natureza em total afinidade...Afinal, o ser humano também é fruto dela, puxa! Viva a Comunidade Aventureiro!!

Grotti · São Paulo, SP 17/11/2010 14:20
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