Domingo, pouco mais de 10 horas da manhã. Primeira anotação: o céu de Pentecoste (103 km de Fortaleza) é impressionista. O azul causa espanto, as nuvens parecem borradas. A segunda: na “sedeâ€, como é chamada a zona urbana da cidade, quase nenhum movimento. Bares vazios, barracas de feira desmontadas e empilhadas sob um espaçoso galpão. Alguns comércios atendem a clientela local. Uma senhora caminha devagar, outra costura na calçada. Aqui e ali, motocicletas cruzam os estirões calçamentados. Na pracinha em frente à Dr. José Borba, principal avenida de Pentecoste, silêncio. Sob o cajueiro, o vendedor de picolés descansa. Olha o peixe esculpido ao lado do coco e do caju de concreto e suspira. O calor na cidade espanta qualquer forasteiro. As histórias contadas pelo grupo de jovens que teima em vencer a pobreza e driblar a censura atraem.
“Onde fica a rádio do Avelino?â€. Repetida algumas vezes, a pergunta nos leva à Rádio Difusora Vale do Curu, que transmite na amplitude modulada 1560 Khz. De lá está sendo veiculado, naquele instante, um dos produtos radiofônicos do Programa de Educação em Células Cooperativas (Prece). No pequeno estúdio da rádio, EdÃlson Costa, 25 anos, comanda o Coração de Estudante, que vai ao ar das 9 à s 11 da manhã. “A gente fala de polÃtica, discute a realidade da nossa comunidadeâ€, explica.
O Prece, que nasceu e foi criado em Cipó – comunidade localizada na zona rural, a 18 km da sede de Pentecoste –, tem, hoje, além de uma hora de programação diária, outras tantas atividades que, somadas, vêm mudando a cara da realidade de muitos jovens do Vale do Curu e regiões próximas. Desde o seu surgimento, em 1994, o cursinho pré-vestibular, por exemplo, já aprovou mais de 140 estudantes na Universidade Federal do Ceará (UFC). Ciências Sociais, Pedagogia e Agronomia são, de longe, os cursos mais procurados. “Houve um tempo em que era quÃmica, por influência do Manoel, criador do projetoâ€, fala EdÃlson. Seja em quÃmica ou matemática, todos os anos, desde 1996, quando Antônio Alves Rodrigues conseguiu um primeiro lugar em pedagogia, abrindo uma brecha e tanto no paredão do vestibular, aproximadamente 20% dos alunos inscritos por meio do projeto conseguem vencer a peneira do certame. Entram na universidade, se formam e voltam nos finais de semana. Alguns, durante a semana também.
Caso de Jocélio SimplÃcio, 21 anos, estudante de Ciências Sociais. Terminou os estudos na Escola de Ensino Fundamental e Médio Tabelião. Conheceu o Prece no último ano do ensino médio, em 2003. O grupo havia criado uma célula na zona urbana de Pentecoste. A aprovação não demorou: seria engenheiro de pesca. Com o tempo, percebeu que aquela não era a sua praia. “Tinha começado a me envolver com polÃtica, discutia no grupo. Queria Ciências Sociaisâ€, explica. Novo vestibular. Por pouco, não entra de primeira. No ano seguinte, outra tentativa. Desta vez, com sucesso. Hoje, tantas as idas e vindas, Jocélio sabe de cor o cenário que margeia a estrada que leva a sua cidade. Pentecoste tem um Ãmã que atrai esses meninos e meninas.
Marciano é outro. Manoel, o primeiro a deixar a comunidade do Cipó para estudar na capital, ainda nos anos de 1960, também. Hoje, formado em agronomia, Marciano cursa o mestrado da UFC. Manoel Andrade, quÃmico e fundador do Prece, realiza os estudos de seu pós-doutoramento nos Estados Unidos. Ambos mantêm laços estreitos com o projeto. Marciano apresenta um programa de rádio à s segundas-feiras, das 13 à s 14 horas. Fala de questões agrárias, divulga informações importantes e estimula a produção dos pequenos agricultores da região. Dos Estados Unidos, Manoel tem cadeira cativa no programa apresentado por EdÃlson.
DE CIPÓ PARA O MUNDO
“O campo é um lugar atrasado, não por ter que ser atrasado, mas por falta de polÃticas públicas; ele pode ser diferente, isso só depende de nós. Em São Paulo, por exemplo, as pessoas não precisam sair de Campinas para ir morar na capital, não precisam sair de Americana para morar lá. Aqui nos EUA você tem uma cidade com dois mil habitantes que tem tudo, boas escolas, hospitais, boas universidades. Isso depende de nós, é possÃvelâ€, incentiva Manoel, durante a sua participação no Coração de Estudante do último domingo, 3 de junho. EdÃlson provoca a discussão; ele devolve: “Se eu tivesse a oportunidade de falar para todas as pessoas de Pentecoste, a primeira coisa seria acreditar que é possÃvel. É não acreditar que tudo é uma fatalidade, coisa do destino, que o bom está em outro lugar. As pessoas costumam dizer que os polÃticos têm força. Eu acho que o povo tem força, os polÃticos têm influênciaâ€.
O Prece comprova a validade das palavras de seu criador. Hoje, são 13 Escolas Populares Cooperativas (EPCs) espalhadas por Pentecoste e municÃpios vizinhos, atendendo a cerca de 700 estudantes. Em Fortaleza, dois bairros contam com células do projeto: Benfica, onde se localiza o Centro de Humanidades da UFC; e Pirambu, um dos bairros com maior Ãndice de criminalidade da capital. Além das células escolares, o Prece também desenvolve trabalhos na área da governança e controle social, comunicação, esporte e cultura. Segundo Manoel, o movimento gerado a partir do grupo que deu inÃcio a tudo vai muito além do simples ingresso no ensino superior. “O programa vai além. A iniciativa maior advém da transformação da comunidade, resgatando a melhoria da qualidade de vida de quem nada tem além de coragem, esperança e força para mudarâ€.
ARANDO A VIDA, CULTIVANDO SONHOS
Fazer um programa diário é tarefa das mais complicadas. No rádio, ao vivo, as dificuldades se intensificam. Numa cidade do interior, onde esses veÃculos encontram-se invariavelmente sob o mando de polÃticos, é quase uma missão impossÃvel. Daà a importância do trabalho desenvolvido por jovens “precistasâ€. Marciano, Gleison, Clara, Elvis, EdÃlson e Jocélio são apenas alguns deles. Problemas técnicos que surgem no meio de entrevistas com polÃticos de oposição, pedidos excêntricos vindos da coordenação da rádio e a já costumeira falta de verbas também são apenas algumas das dificuldades enfrentadas pela equipe que produz, diariamente, o programa Coração de Estudante.
Anunciar a inauguração de uma praça em São Gonçalo, municÃpio vizinho a Pentecoste, em homenagem ao pai do dono da rádio. Jocélio anota o pedido, feito pelo próprio coordenador da rádio. O veÃculo pertence a um deputado. Anota tudo, letra após letra, e o homem vai embora, satisfeito. O programa acaba, e nada de inauguração de praça. “A gente não faz esse tipo de coisa. Eles sabem disso, mas ficam insistindoâ€, conta Jocélio. Apesar das dificuldades financeiras, eles cortaram a publicidade e passaram a pagar um pouco mais no final do mês. “A gente pagava R$ 300. Com o corte, passou para R$ 350. Essa publicidade se chocava com o que a gente dizia, com os nossos comentários no programaâ€, emenda Marciano.
Os causos envolvendo o dia-a-dia na rádio se sucedem. Uma tarde apenas é muito pouco para ouvir o que têm a dizer os jovens comunicadores, suas preocupações, seus problemas. E também para falar do espanto e da alegria que sentem ao ouvir o primeiro programa de rádio produzido por Overmundo. “Volta aà de novo, só pra gente ouvir aquela abertura que ele fezâ€, pede Marciano. Marcelo Rangel e Eduardo Ferreira, sem saber, passaram uma tarde inteira dando toques sobre locução e outras coisas para o grupo. No final da oficina de rádio realizada por estudantes de jornalismo da UFC no último domingo, o pedido. “Deixa o programa gravado aà no PCâ€. E a promessa: “A gente grava outros e manda num CDâ€.
EDÃLSON, O LOCUTOR
EdÃlson é moreno, aproximadamente 1 e 65 de altura. Nasceu em Cipó. Tem 25 anos. DifÃcil sorrir. Aos quatorze, mudou-se com os pais e a reca de irmãos – doze ao todo – para a sede. Completou os estudos. Conheceu o Prece ainda no ensino médio. Ouvia falar dos alunos, sete no inÃcio, que estudavam debaixo do juazeiro ou na antiga casa de farinha. “Quando vi, estava freqüentando o grupo todos os fins de semana, indo de pau-de-arara mesmoâ€, conta.
A viagem até Cipó é difÃcil. De pau-de-arara, são cerca de duas horas através de estrada carroçal. “A viagem era uma tormenta. SaÃa de casa na sexta-feira e só voltava na segunda, de madrugada. A gente, uns quarenta estudantes, chegava lá suado e coberto de poeiraâ€, conta. Depois de um ano estudando no Prece, EdÃlson Costa, ex-agricultor, prestou vestibular. Entrou para o curso de Pedagogia da Terra, ministrado pela Faculdade de Pedagogia da UFC em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).
Henrique, muito obrigada por nos apresentar o Prece. E, por favor, dê os parabéns por mim a essa galera pelo belo trabalho que desenvolve por aÃ. Mais interessante ainda é por manterem-se fiéis à s suas raÃzes - com a desconstrução da idéia de que é preciso migrar pra cidades maiores em busca de oportunidades.
Quanto à edição, fica só um toque: falta uma letrinha em "cultivando", num dos subtÃtulos.
Abraço.
Beleza, tetê. mando o recado, sim. E valeu pelo toque da edição.
Henrique Araújo - Grupo TR.E.M.A · Fortaleza, CE 6/6/2007 00:17Henrique, voltei pela terceira vez agora para votar e me ver, lã no meu gilbués, extamente assim debaixo daquele pé de juazeiro, lá seria um jatobazeiro, ou ... legalzão.
Andre Pessego · São Paulo, SP 7/6/2007 21:19Muito bom, Henrique. Ver trabalhos como esse do PRECE é ótimo para a gente não perder as esperanças. Parabéns pelo texto, pelo tema e parabéns à galera do projeto.
Ilhandarilha · Vitória, ES 8/6/2007 09:28Fala Henrique. Sempre acho tão bonito o que e o modo que vc escreve, cara. Vou escrever um texto amanhã aqui pro Over e é sempre bom ler linhas tão bem feitas por aqui pra servir de influência. Abração!
Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 8/6/2007 16:21
Olha, Thiago, muito bom ficar sabendo disso. Porque eu também sou fã dos seus textos, sempre de arrepiar. Ailás, tem tanta gente por aqui que me faz subir na cadeira quando leio. Cito, de cabeça, a Cida, a Natacha, meu camarada Pedro e você. Claro, existem muitos outros... Duende, Hermano, Helena, Adroaldo... Enfim.
Abraços. Valeu pela leitura!
A informação sobre aprovação de mais de 140 pessoas aprovadas no UFC é empolgante. O PRECE está de parabéns, ainda mais que, a execusão de uma idéia tão grande, vinda de um lugar talvez tão pequeno, não é costume em nosso paÃs. Obrigada pela reportagem Henrique, saber do PRECE foi muito bom!
Jully Anne · Palmas, TO 10/6/2007 01:41Salve parceiro Henrique! Irradiando o Prece por esse mundo a fora. Muito boa iniciativa.
Raquel Gonçalves - Grupo TR.E.M.A. · Fortaleza, CE 11/6/2007 22:10
Também acho Raquel!
Ficou muito legal!
Abraços a todos!
Oi Henrique, "melhor tarde do que nunca" é bem aplicável aqui. Armando esteve por esses dias me pedindo umas fotos do Prece pra diagramar seu texto e, enquanto escolhia, lembrei-me que não havia postado aqui meu agradecimento pelo seu texto.
Gostei muito do seu estilo, até dei uma lida no seu blog. Não sei pq eu nunca fui muito fã de blogs, mas admiro muito quem os faz, acredito que seja um desafio escrever, muito prazeroso, mas um desafio..
Até agora não me encontrei como "jornalista" mas como ser humano, posso dizer que sim. Nossa eu já estou desabafando? o.O Deve ser inveja pelo seu texto.. rs Enfim, abração e obrigada pela força na divulgação! =**
Carol, fico muito feliz com o seu comentário aqui. A experiência em Pentecoste foi muito bacana; ter conhecido todo o pessoal. Encontrei até mesmo um colaborador para Overmundo, o Fábio. Ele quer fazer jornalismo e vem se esforçando pra escrever. Tô aguardando o resultado.
Abraços!
Ah Henrique só um toke, o link pro site, tá errado, tá faltando o "www".. É www.prece.ufc.br. Abraço!
Carol Avendaño · Fortaleza, CE 20/8/2007 10:25Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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