Profissão de fé

Thiago Camelo
Vocalista do Dr. Raiz canta no Festival de Diversidade Cultural - Tangolomango.
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Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ
12/11/2007 · 176 · 9
 

Um sujeito de perna de pau passa correndo feito o Tiranossauro do filme. Uma roda junta mais Tiranossauros, dois deles lutam com bastões. Os outros batem palmas e estalam os pés de madeira no chão. Fazem barulho. Mais ao lado, uma turma leva um som – guitarra, baixo, baqueta, flauta e sax em mãos. Dentro da roda, um grupo faz passos de dança guiado pela voz forte de um cara de amarelo. Começa uma cantiga de infância que acalma os sentidos: “Meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá...”.

O lugar é um galpão enorme, em Santo Cristo, Rio de Janeiro. O que está acontecendo é o ensaio para 6º Festival de Diversidade Cultural – Tangolomango, que vai ocorrer dali a 48 horas, dia 4 de novembro, no Circo Voador. Aqui no Overmundo, você pode ler como foi o espetáculo em Fortaleza e em Recife, adiantando um pouco a explicação de como se dá o show arquitetado coletivamente por vários núcleos de criação. No Rio, entram na roda a dupla de artistas de rua Irmãos Saúde (DF), os músicos, atores e dançarinos do grupo Dona Zefinha e os Bufões (CE), os malabaristas da Cia. Aplauso (RJ), do Crescer e Viver (RJ), dos Gigantes pela Própria Natureza (RJ) e do Movimento Rua do Circo (DF), as cantoras e os dançarinos do Jongo da Serrinha (RJ), o cantor de coco Mestre Ferrugem (PE) e os músicos da banda Dr. Raiz (CE).

Tia Maria

Centenas de pessoas brincam no local. O Tiranossauro já não assusta, mas ainda impressiona. Sobretudo quando tenta dar uma “parada de mão voltando de invergada” e cai de cara no chão. Marco Aurélio, do Movimento Rua de Circo, está bem. Levanta, faz todo o ritual de novo. Ajoelha e se benze. Apóia a mão no piso, fica de ponta cabeça, curva a coluna e faz uma ponte, umbigo apontado para o ar, perna de pau no solo, ergue-se, agora está de pé. Todos aplaudem muito.

Num cantinho, sentada, Tia Maria acompanha com as mãos o som das últimas palmas. Ela é a matriarca do grupo Jongo da Serrinha, fundado há mais de 40 anos no Morro da Serrinha, em Madureira, Zona Norte do Rio. Muitos dizem que o jongo, canto e dança afros embalados por tambor e trazidos ao Brasil pelos escravos, é um dos ritmos precursores do samba.

Um olhar cruzado já chama para a conversa. Com 86 anos, ela parece realmente ter a idade que tem. Menos pela aparência do que pela vivência, é verdade. É uma velhinha negra com voz firme e boa postura, mas com histórias que entregam o tempo. Sem entrar na questão da origem dos bambas, complicada à beça, Tia Maria – também fundadora da escola de samba Império Serrano – conta, quase sem ser perguntada, a sua relação com os dois estilos:

- Prefiro ir ao jongo. É um grupo menor que o samba, né? A gente se torna uma família. No Império Serrano tem muita gente estranha. Antigamente, era um pessoal mais conhecido. Lá no Império, eu me sinto estrangeira agora. Nem parece que foi a casa que eu fundei. O jongo não, ele é meu. Lá é minha casa.

Outros aplausos. Nem se sabe direito o que houve, mas é possível ver que uma menina ao fundo desce enrolada num tecido. Tia Maria gosta muito de piruetas e palhaçadas. Mas no seu tempo, circo era coisa mal vista. “Quando eu era criança, diziam 'artista de circo vai embora com o circo'. Tinha medo de me levarem”, ri. E pede para a moça ao lado: “Menina, pega as fotos para eu mostrar!”

Os retratos são de uma carreira em ascensão. Shows em outros estados, no exterior, temporada em teatro famoso, CD, DVD, visita ao presidente em Brasília. Quando a foto com Lula chega, Tia Maria abre um sorrisão:

- Adorei ele. Uma simplicidade. Dispensou segurança. Ficou comigo e com as crianças. Para mim, que não estudei, não dá para entender as palavras que poliglota fala. Com ele não. É simpático demais. Tudo o que ele fala você entende, sabe? Não tem palavra complicada – conta. - E sabia que o Jongo vai se apresentar num casamento?

Católicos chamando um grupo de música afro para embalar a festa? Curioso. Até Tia Maria está receosa com o show, no próximo sábado. “Nem vou cantar, vou só para apreciar”, diz. “A Igreja Católica tem essas coisas. Todas as igrejas têm, né? Acham que o jongo é uma religião. Mas não é. O jongo é só um afro. Só que vestimos saia rodada, colar, pano na cabeça. Pensam logo que é umbanda, candomblé. Quando a roda acaba, não tem isso, vai cada um para a sua casa fazer o que quiser.”

Depende mesmo do olhar. Porque logo ali, ainda suado descansando do ensaio, o irmão saúde Ankomárcio fala justamente sobre o Jongo da Serrinha, uma descoberta, para ele, espiritual.

- Estou na estrada desde o início. Em Fortaleza, o show foi de um jeito. Em Recife, de outro. Aqui no Rio já sei que vai ser diferente. Estamos recebendo o Jongo, um grupo que tem uma vertente quase espiritual. Por isso mesmo merece um olhar diferenciado. É uma coisa religiosa, o envolvimento é outro. Nós vamos ter que entender esse movimento de fé para que ele possa ser incluído e envolvido nesse processo. Só de chegar perto da Tia Maria você se arrepia todo – explica Ankomárcio, num sentimento absolutamente compreensível para quem não ouviu a defesa de Tia Maria, ali ao lado, poucos minutos atrás.

Mestre Ferrugem

Fé pode não ser o termo mais adequado para descrever o comportamento de Mestre Ferrugem. Mas chega perto. Se não fala de Deus, o que não falta a ele é crença na palavra . “A palavra do homem é um tiro”, diz, ao ser avisado que não havia, naquele momento, dinheiro para comprar o CD. “Me pague depois, no show de domingo, certo?”

Aos 57 anos, Mestre Ferrugem teve de passar quase uma vida cantando coco para gravar as suas mais de 200 músicas. Mestre quando canta discípulo tem que respeitar (2007) tem 12 músicas e, embora seja de coco de embolada, guarda uma diferença para o estilo – em vez de perguntas e respostas em frases curtas e satíricas, as letras de Ferrugem são grandes e de natureza existencial. Os versos da música homônima ao CD jogam luz sobre a profundidade da filosofia de Mestre Ferrugem:

Eu vou perguntar a meu
mestre
Aonde fica o canal
Meu mestre me respondeu
Fica do lado de lá

É barco de leme no meio
Só para não perder o tino
Parece que estou ouvindo
No outro lado chamar


Derrubada, a última faixa do CD, é um remix. “Coisa do produtor”, dizem. E é mesmo. Pedro Rampazzo, produtor de Ferrugem, conta por que chamou Berna Vieira, ex-integrante dos pernambucanos Bonsucesso Samba Clube e Eddie, e colocou um DJ no palco para dar uma pitada “moderna e contemporânea” ao coco de Ferrugem:

- É uma estratégia de trabalho. Estamos na década do rock em Pernambuco. Por incrível que pareça, depois de tanto sucesso das misturas na década de 90, hoje se nega tudo o que é regional. Isso é feito para inserir o Ferrugem em um circuito, para que ele seja olhado como um artista como qualquer outro.

DJ, remix, modernidade; nada disso parece fazer a cabeça de Ferrugem. Também não desfaz. Sobre a questão, ele responde:

- Gosto mais de cantar solto com o meu grupo. Mas bom, se o pessoal quiser com um DJ, para mim tanto faz. É para fazer eu faço, pronto, acabou. Comigo não tem aperreio não.

Ferrugem se diz um “homem sofrido que nasceu para ser feliz”. Muito desse sofrimento se deve às mentiras que cruzaram a sua vida. “É muito bonito um homem, ou mesmo uma mulher, andar sempre com a verdade. Nada é pior que a mentira”, diz. Na mesma linha coisa de hômi, agora falando sem parar, acrescenta. “Se me derem um tiro, eu quero que seja pela frente. Homem tem que morrer com tiro pela frente”.

Dia do espetáculo

Domingo: cai um toró no Rio. Da água entrar no tênis. Dada a condição da cidade, o Circo Voador até que tem público. Pessoas sentam-se em torno do palco, deixando o espaço onde a platéia costuma ficar para os grupos circenses se apresentarem. Há gente também nas arquibancadas, mais acima. No palco, os cearenses do Dona Zefina, alguns deles integrantes também dos Bufões, fazem a base musical para a turma do picadeiro apresentar o espetáculo. Muito do que foi ensaiado pode ser visto. Tudo mais organizado, é óbvio. São coreografias que parecem ter dado um trabalho danado para aprontar, ainda mais no tempo recorde de dois dias. O Jongo da Serrinha entra, ilumina com três músicas, e sai do palco. Dão lugar ao Mestre Ferrugem, que canta pouquinho e vai embora também. Sargentelli disse uma vez que artista sempre tem de acabar o show um pouco antes da hora esperada, deixando a sensação de “quero mais”. O fim repentino das apresentações, tanto do Jongo quanto de Ferrugem, não parece ter sido proposital. Mas a tática à Sargentelli, para ambos os casos, funciona.

Festa que segue. O pessoal do Dr. Raiz, companheiro do Dona Zefinha no Movimento Cabaçal cearense, assume os instrumentos. Perto do fim, já no bis, o vocalista da banda avisa que vai cantar uma música, mas que àquela altura tudo é improviso. Bom, se é improviso, Tia Maria assume o microfone, interrompendo o animado músico. “Queria pedir licença para cantar uma canção do meu Império Serrano. Porque eu sou do jongo, mas também sou do samba”. E as jongueiras começam o histórico samba-enredo do Carnaval de 1964, Aquarela brasileira : Vejam esta maravilha de cenário / É um episódio relicário / Que o artista num sonho genial / Escolheu para este Carnaval.

Ankomárcio deve estar arrepiado por ali. A fé no jongo (e no samba) de Tia Maria se faz ouvir. Junto, de alguma forma, ela traz no tom a crença na palavra de Mestre Ferrugem. Abençoa todo o evento.

A dívida do CD, claro, é quitada no final do show. A palavra do homem é um tiro.

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Elisa Menezes
 

Thiago,
que sorte a sua encontrar pessoas como a Tia Maria e o Ferrugem, hein?
E ainda acham que é preciso tornar a música deles mais palatável...
Parabéns pelo texto!
(só uma coisa: acho que a "parada de mão" tem que entrar em minículo nas aspas)
:)

Elisa Menezes · Rio de Janeiro, RJ 8/11/2007 17:56
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Elisa Menezes
 

(minúsculo) não dá pra apagar comentários?

Elisa Menezes · Rio de Janeiro, RJ 8/11/2007 17:57
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Thiago Camelo
 

Elisa! Obrigado por ler a matéria. Pra mim foi muito importante conhecer a Tia Maria e o Ferrugem. Afora o (inegável) talento artístico de ambos, são pessoas de uma vivência boa de ouvir. Mudei lá o "parada de mão". Valeu! Beijão!

Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 8/11/2007 18:08
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Thiago Camelo
 

Uma observação: os arquivos postados na seção de áudio são, na realidade, vídeos.

Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 8/11/2007 18:54
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Higor Assis
 

O video saiu sem som.

Higor Assis · São Paulo, SP 9/11/2007 08:32
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Thiago Camelo
 

Opa Higor! Baixei o vídeo em dois computadores diferentes (inclusive com sistemas operacionais diferentes) e consegui ouvir o som tranqüilo. Será que não é nenhum problema de codec no seu player? Isso é bem comum e fácil de resolver. Abração!

Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 9/11/2007 11:26
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André Dib
 

Thiago, Parabéns pela cobertura.

Bom ler sobre o Ferrugem no Rio de Janeiro. Aqui em Olinda nem sempre ele recebe o reconhecimento merecido. Acabei de encontrá-lo na parada de ônibus perto da minha casa. Deixou o ônibus passar batido porque queria contar das coisas do Rio. Disse que foi bastante aplaudido no Circo Voador, e até comentou: "não sabia que eu era de tanto talento".

André Dib · Recife, PE 13/11/2007 03:59
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FILIPE MAMEDE
 

Poxa Thiago, cobertura completíssima; matéria redondinha, contextualizada, dinámica e, sobretudo, oportuna. Gostei muito e isso sem falar das fotografias, todas elas emblemáticas.
Um abraço.

FILIPE MAMEDE · Natal, RN 13/11/2007 10:47
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Sambada
 

Massa Real, Thiago. Obrigado pelo destaque dado ao mestre Ferrugem. Vou imprimir e ler com ele. Tenho certeza q ele vai vibrar. Se precisar de algo do Recife é só mandar. Grande abraço, Pedro Rampazzo.

Sambada · Olinda, PE 13/11/2007 22:04
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Malabarismo no salão. zoom
Malabarismo no salão.
A platéia toma conta do espaço destinado ao pessoal do circo. Rodopios... zoom
A platéia toma conta do espaço destinado ao pessoal do circo. Rodopios...
... E mais rodopios. zoom
... E mais rodopios.
Pirueta e bandas dividem o espetáculo. zoom
Pirueta e bandas dividem o espetáculo.
Entre um show e outro, Tia Maria e Mestre Ferrugem se encontram. zoom
Entre um show e outro, Tia Maria e Mestre Ferrugem se encontram.

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