Quem sabe ler?

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Maldoror · Belém, PA
16/4/2007 · 115 · 9
 

Segundo a Unesco, são necessários três fatores para que existam leitores em um país. 1. O livro deve estar em um lugar privilegiado no imaginário nacional. 2. É preciso que existam famílias de leitores. 3. A escola deve saber formar leitores. Nem é preciso dizer muita coisa sobre o lugar do livro no imaginário do brasileiro. Quem o ocupa é a onipresente (e agora até onisciente) televisão. Quanto à quase inexistência de famílias de leitores, isso parece ser decorrência do fator número 1 somado à própria história da educação no Brasil.

Quem sabe um suposto afastamento dos valores europeus, ao mesmo tempo que uma aproximação à cultura estadunidense, pragmática, televisiva, de massa seja uma explicação para o fato de nossas famílias lerem tão pouco? E olha que não em comparação com os nossos colonizadores europeus, mas até com famílias de países de realidades bem próximas à nossa. Argentina, Uruguai e Chile, por exemplo, consomem, proporcionalmente, mais livros e jornais que os brasileiros. Uma comparação com esses países pode ser útil para encontrar pistas sobre as origens da falta de leitura no Brasil, mais do que analogias com outras realidades ainda mais distantes, tanto geográfica quanto culturalmente, da nossa.

Tudo bem, esses três países têm um histórico bem diferente do Brasil em termos de colonização e educação. Em 1915, de cada três argentinos, um tinha nascido na Europa. Em Buenos Aires, um em cada dois. Diferentemente de quase todas as famílias no Brasil, esses imigrantes receberam terras ao chegar na América. Uma maior base patrimonial fez com que, logo em seguida, essas populações já estivessem exigindo do Estado educação pública, o que não aconteceu no Brasil. Desde os jesuítas, até agora, a história da educação no Brasil pode ser dividida entre educação para a elite (de qualidade e cara) e educação para os pobres (de baixa qualidade e não para todos).

Os resultados desse processo são enfáticos: há um abismo entre o Brasil e nossos vizinhos tão parecidos em termos de (ou falta de) desenvolvimento econômico. Embora pobres como nós, nos anos 90, por exemplo, segundo o estudo do Departamento Intersindical de Economia e Estatísticas Sociais e Econômicas (Dieese), A Situação do Trabalho no Brasil (2002), o Chile baixou sua taxa de analfabetismo de 5% para 4%, a Argentina, de 4% para 3%, e o Uruguai, de 3% para 2%. O Brasil, no mesmo período, diminuiu seu número de analfabetos de 19% para 15%! Claro que esses índices e outros comparativos podem ajudar a explicar os vergonhosos números brasileiros em se tratando de leitura. Num recente levantamento, a Associação Nacional de Livrarias afirma que cada brasileiro lê, em média, dois livros anualmente. Uruguaios, chilenos e argentinos lêem mais de quatro livros per capita/ano, conforme afirmou no ano passado o ex-presidente da Câmara Rio-grandense do Livro, Paulo Flávio Ledur. Em países desenvolvidos da Europa, no Canadá e nos Estados Unidos, a média é de 15 a 25 livros por ano.

Segundo o Anuário Editorial Brasileiro, do Grupo Editorial Cone Sul, o Brasil inteiro, onde vivem cerca de 170 milhões de pessoas, tem apenas 2008 livrarias, o que dá, em média, um estabelecimento para cada 84,4 mil brasileiros! Uma única cidade européia, Paris, tem duas mil livrarias. A Argentina, antes da crise, tinha mais de 950 livrarias (para uma população de 37 milhões de habitantes). Em dois anos, a crise fez fechar 250 desses estabelecimentos. No Brasil, muitas cidades, inclusive no Rio Grande do Sul, não possuem uma livraria sequer. A Câmara Rio-Grandense do Livro e o Clube dos Editores divulgaram há três meses que 75% das cidades gaúchas não têm pontos de venda de livros. A situação é ainda pior em estados do Norte e Centro-Oeste. Roraima, Tocantins e Amapá têm, cada um, apenas duas livrarias em seus vastos territórios. Na Região Norte do Brasil, há apenas uma livraria para cada 215,3 mil habitantes. Sul e Sudeste estão um pouco melhores. Na Sudeste, a média é de uma livraria para cada 64,2 mil pessoas, enquanto que, na Sul, a média é de uma livraria para cada 56,7 mil habitantes.

Certamente, a altíssima concentração de renda brasileira – uma das maiores do mundo – impede as camadas mais pobres da sociedade de terem acesso aos bens culturais, a livros, teatro, música e informação que não venham diretamente da cultura de massa, seguindo a fórmula da indústria cultural: ou seja entretenimento barato, de baixa qualidade, para quase todos. Tanto o fator número 1 (O livro deve estar em um lugar privilegiado dentro do imaginário nacional), quanto o número 2 (É preciso haver famílias de leitores) parecem não ser assim tão fáceis de serem resolvidos, ainda mais quando se vive em uma sociedade conservadora e concentradora, que faz questão de manter as coisas tais como estão.

Para tentar melhorar as coisas, são criados, de tempos em tempos, programas de incentivo à leitura. Implementados pelo governo federal, eles, como se pode ver em diversos dados, têm se mostrado um flagrante desastre. São ineficazes na reversão dos números desfavoráveis, embora o Ministério da Cultura, a despeito de todas as evidências, venha afirmando o contrário. O problema é claro: essa tentativa do governo federal, de reversão nos baixos índices de leitura, fica impossibilitada por suas próprias práticas nos planos político e econômico. Afinal, é um tanto difícil formar “um país de leitores†com campanhas esporádicas, se ao mesmo tempo se implementa uma política econômica que mantém sistematicamente elevadas taxas de desemprego (do início da década de 90 ao seu final, passamos de 10% de desempregados para mais de 20%) e baixíssimo poder econômico às camadas mais pobres da população.

Outras contradições que claramente dificultam esse objetivo é o direcionamento da política educacional para a privatização (que diminui o acesso de camadas mais pobres ao ensino) e a falta de mecanismos públicos que desmercantilizem a cultura (ao contrário, tem havido uma concentração de poder da indústria cultural). Esses são alguns de muitos outros elementos que, sem dúvida, têm relação direta com o preço do livro, o número de livrarias, a incapacidade de as bibliotecas públicas se equiparem, os professores de trabalharem melhor e os escritores de terem uma melhor “competitividade†em um mercado marcado pelo fordismo cultural.

O terceiro fator necessário para a existência de leitores em um país é: A escola deve saber formar leitores. Como se sabe, não bastassem as políticas econômicas excludentes, a história da educação no Brasil é também uma história de exclusão, de fortalecimento de uma elite que se beneficia do que de melhor há em termos de ensino e de uma crescente mercantilização do saber. Segundo David Plank (em Política Educacional no Brasil: Caminhos para Salvação Pública. Editora Artmed, 2001, Porto Alegre), desde o seu início, ainda no século XIX, as políticas educacionais brasileiras, excetuando breves períodos, ainda no começo do século XX, não tiveram como fim o desenvolvimento de uma sociedade menos desigual. Pelo contrário, salientaram as diferenças, promoveram a nítida separação entre uma educação de elite e outra para os pobres. Com a entrada no século americano, o XX, essas políticas educacionais, como se sabe, eram a mera tradução de determinações que os Estados Unidos colocaram em prática em todo o mundo pobre. Decorre daí a pragmatização do ensino, o tecnicismo, direcionamento da educação para a formação de mão-de-obra para o tipo de desenvolvimento que o Império (Estados Unidos e países ricos) necessitava.

O objetivo era formar peças para a máquina capitalista ao invés de seres humanos críticos. E quem é que pagou o pato? O leitor, é claro. É ele o alvo do acordo Mec-Usaid, da reforma do ensino de 1964 e da Lei de Diretrizes e Bases de 1967. De lá para cá, nunca mais teríamos leitores, afinal aquelas reformas ainda não foram de todo revertidas, nem mesmo pelos governos “democráticosâ€. A escola continua sem literatura estrangeira, sociologia e filosofia no ensino médio, o que significa: continua sem leitores. Há pouco Fernando Henrique Cardoso vetou a volta das disciplinas humanas nos currículos. Flagrante contradição de um governo que afirma estar empenhado em fazer do Brasil “um país de leitoresâ€.

Resulta de toda essa história uma escola que é uma verdadeira “máquina de destruir leitoresâ€. E é aqui que está um outro grande problema, talvez o maior, a ser enfrentado. Com o atual estágio de mercantilização e anestesia em que a sociedade brasileira se encontra, parece ser impossível colocar o livro em “um lugar de destaque no imaginário nacionalâ€, assim como não se pode fazer com que as famílias se tornem famílias de leitores. Só nos resta intervir na escola, espaço que está mais perto dos verdadeiros interessados em fazer do Brasil “um país de leitoresâ€. São eles os educadores, escritores, leitores desinteressados, humanistas em geral que sabem: a escola atual é uma máquina de destruir leitores porque “a escola não sabe lerâ€. Por isso, quando vai formar leitores, toma caminhos tão tortuosos que acabam resultando mais no afastamento dos alunos dos livros do que no contrário.

E quais são esses caminhos, ou melhor, quais as engrenagens da máquina de destruir leitores? Vamos a elas. A primeira é a promoção de um recorte utilitarista e pragmático, um tipo de leitura feita na sala de aula que, decididamente, é um empecilho violento à formação de leitores. Esse recorte dá um peso à leitura que ela, quando feita fora da escola, não tem. A leitura feita na escola é chata porque é profissional, porque continua sendo usada para passar ideologias, conteúdos etc. Não se lê na escola com o fim único e exclusivo de formar leitores, e sim para passar português, história, geografia. Assim, dá-se uma “utilidade†a esse hábito que, sem esse conteúdo, ele pareceria não ter. Aí está um primeiro contrapé em que se pode pegar a escola, essa não-leitora. Se ela tivesse o hábito da leitura de literatura, saberia que é na sua aparente inutilidade que a leitura é de fato útil, pois é nessa “inutilidade†que ela discursa contra um mundo prosaico e utilitarista.

Atrapalhada, a escola coloca ao jovem ou à criança não-leitora uma série de entulhos, seja de forma concreta, através do livro para-didático (em que se “usa†uma história para passar algum conteúdo), da utilização da literatura para “enriquecer o vocabulário†ou, o pior de tudo, da mais utilitária das relações: prepará-la para o vestibular. Claro que, chata, pesada, a leitura será uma aventura de poucos (e dolorosos) dias. E a vida “lá fora†- a que Platão diria que de fora não tem nada, que é só o interior escuro da caverna – está cheia de divertimentos garantidos com muito menos investimento. Se quer, de fato, formar leitores, e não, no máximo, vestibulandos, a escola tem que, em primeiro lugar, saber o gosto que a leitura tem. Até agora ela só mostra que não se relaciona com os livros de forma diferente do que a sociedade pragmática e utilitária. E se ela quer ser um diferencial, se acredita que seu trabalho tem alguma especificidade na comparação com o mundo fora dela, tem que ser rebelde, revolucionária também na sua visão da leitura. Não pode olhar para os livros da mesma forma que o mundo prosaico, lá fora.

Um primeiro passo é desvincular a leitura da educação, retirar o peso que o ensino colocou e que transformou essa aventura da leitura num passeio de ônibus forçado, dirigido não pelo leitor, mas pelo professor-motorista. Os leitores não lêem só para aprender. Em primeiro lugar, lêem para se comover, para rir, chorar, vibrar, sentir. É daí que vem o gosto, que nunca mais se abandona. Aprender algo, ou não, é coisa secundária.

É preciso que a leitura leiga entre na escola, esse lugar sagrado demais. Precursores do Renascimento, os goliardos (filhos de Golias) eram grupos de estudantes que iam do interior dos países europeus para estudar nas universidades que ficavam nas capitais. Em sua época, século XIV e XV, as universidades eram clérigas e esses leigos interioranos muitas vezes tinham dificuldade em se adaptar à vida religiosa. Para serem cultos, era preciso ter fé. E isso não é para qualquer um... Por isso mesmo, alguns desses estudantes abandonavam a faculdade no meio do caminho para não perder a laicidade. Sem profissão, muitos iam parar nas ruas, onde viravam poetas, boêmios - um deles era o famoso poeta francês François Villon. Foi nas ruas das grandes cidades que ficou borbulhando um tipo de relação com a leitura que não era clériga nem leiga, mas uma mistura, um meio-termo. O Brasil nunca teve goliardos. A única leitura que se faz aqui é a clériga, a escolada, a utilitária feita entre as quatro paredes escuras da máquina. O resultado todos nós, infelizmente, conhecemos. Sem atacar esse problema, um entre tantos outros, nós nunca vamos conseguir fazer do Brasil um país de leitores.

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Felipe Obrer
 

Maldoror, duas sugestõezinhas de edição:
"Departamento Intersindical de Economia e Estatísticas Sociais e
Econômicas (Dieese)" [Maiúscula em Econômicas]
E, no título, tirar o acento circunflexo da palavra "ler". A menos que seja proposital, por uma opção estilística.

No mais, gostei bastante do texto, coloca em pauta um problema real do Brasil. E, o óbvio: sem ler bem, não se escreve bem. Por isso existem discussões como esta até no próprio Overmundo.

Vou dar mais uma lida depois. Se "pescar" mais alguma coisinha, aviso. Gosto muito dos teus poemas concretistas/visuais.

Abraço,

Felipe Obrer · Florianópolis, SC 12/4/2007 20:59
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Maldoror
 

Valeu Felipe.

Esse é um tema recorrente, mas penso que é sempre bom "tocar na ferida". Fico feliz por gostares de meus poemas. Às vezes nem sei se gosto deles.

Abraço.

Maldoror · Belém, PA 13/4/2007 14:18
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Marcelo Candido Madeira
 

Oi Maldoror, eu sou escritor tenho livros publicados no Brasil e na Suíça e sinceramente não vejo este quadro trágico que pintam sobre os brasileiros, o mercado de livros têm crescido a cada ano e ao contrário do que você afirmou, nós brasileiros lemos mais do que nossos colonizadores portugueses, uma recente pesquisa portuguesa mostrou que a população lusitana nâo lê nem jornal. Por aqui em terras tupinikings é cada vez maior o numero de revistas de ciência, hitória e curiosidades. As pesquisas brasileiras são otimistas. Agora é claro, falta muito pra chegarmos ao nível adequado de educação no nosso país. Moro na Europa e sei muito bem que a situação da educação por aqui não é nenhum paraíso. O problema é mundial. E esse debate é urgentíssimo, parabéns pelo texto!

Marcelo Candido Madeira · Rio de Janeiro, RJ 16/4/2007 09:09
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Darlan
 

Caro MALDOROR,
parabenizo-o pela clareza do texto, ao mesmo tempo em que concluo dizendo que estou de acordo - por pertinente - com o comentário do Marcelo Cândido Madeira (logo acima), a respeito do mesmo tema: Ler.

Darlan · Belo Horizonte, MG 17/4/2007 03:36
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FILIPE MAMEDE
 

Só nos resta ler mais ou "tocar um tango argentino"... bom texto, belo tema. Abraço.

FILIPE MAMEDE · Natal, RN 17/4/2007 08:15
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FILIPE MAMEDE
 

Ah, essa ilustração é muito divertida.

FILIPE MAMEDE · Natal, RN 17/4/2007 08:15
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mbnick
 

Interessante o ponto de vista. Nunca gostei de ler quando estava na escola, só fui me interessar por leitura na faculdade, hoje não vivo sem um livro por perto.

mbnick · Teresópolis, RJ 17/4/2007 10:00
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Claudiocareca
 

Oi Maldoror,

quando vc afirma q não nenhum Goliardo no país você devia conhecer o Figueiredo, Carlos.

escrevi sobre ele e... bom acho que o livro de poesia e a sua postura na vida é de um Goliardo.

aliás ele tem uma pesquisa interessante sobre o assunto. Vc conhece?

Claudiocareca · Cuiabá, MT 17/4/2007 23:45
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bruno balbino
 

e o que vc vai fazer pra melhorar a educação?

bruno balbino · São Paulo, SP 4/7/2007 18:22
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